Um drama orçamental que durou pouco mais de quatro horas mas que fez regressar momentaneamente o fantasma da crise política. Os sociais-democratas surpreenderam esta sexta-feira a oposição ao colocarem em cima da mesa o regresso da redução do IRC em 2 pontos percentuais, tentando obrigar Pedro Nuno Santos a decidir entre uma bênção à redução de impostos sobre as empresas que não queria abençoar e uma eventual crise política. Desta vez, o líder socialista decidiu não dar para esse peditório e acabou o dia a acusar o Governo de “manobra política infantil e irresponsável”.
O resultado prático acabou por resultar numa vitória política do Governo, que assim conseguiu forçar Pedro Nuno Santos a comprometer-se efetivamente com a redução do IRC de 21 para 20%. Ao mesmo tempo, se o objetivo era criar mais um drama existencial no PS, a coisa não correu particularmente bem, uma vez que o secretário-geral socialista resolveu a questão em poucas horas.
Mas não é menos verdade que Pedro Nuno Santos conseguiu isso à custa de um recuo factual nas intenções do partido, que queria objetivamente empurrar o PSD para os braços da direita nessa questão particular. O objetivo mais ambicioso do Governo, esse, ficou mesmo pelo caminho: a redução do IRC não irá mesmo além do 1 ponto percentual.
Pedro Nuno Santos acabou forçado a dar o dito por não dito e a apagar a linha vermelha que ele mesmo tinha traçado à redução transversal do IRC. Foi o socialista que desafiou o Governo até ao fim nesta matéria, que rejeitou modelações, que abandonou a mesa de negociações com o Governo por causa disto mesmo — o que foi lembrado ainda esta sexta-feira pela líder parlamentar. Há menos de um mês, um alto dirigente do partido tinha dito ao Observador que o PS ia votar contra a proposta de IRC e essa intenção manteve-se até dar de caras com esta manobra final do PSD que acabou por levar Pedro Nuno a dar vários passos atrás.
É preciso recuar às negociações entre Luís Montenegro e Pedro Nuno Santos para perceber o que esteve efetivamente em causa. Originalmente, o plano do Governo era garantir já a redução do IRC em 2 pontos percentuais, de 21 para 19%. Depois de muitas idas e voltas, Montenegro acedeu baixar apenas 1 ponto percentual, mantendo a possibilidade de vir a revisitar o imposto nos anos seguintes. Para Pedro Nuno Santos, o gesto não foi suficiente — o PS até admitia a redução de 1 ponto percentual, desde que existisse a garantia de que o Governo não mexia mais no imposto ao longo da legislatura.
Como é público, o acordo entre os dois falhou. Mas o Governo assumiu sempre que manteria essa base mínima de compromisso — este ano, a redução do IRC iria ser de apenas 1 ponto percentual, nos anos seguintes logo se via, sabendo, à partida, que não poderia contar com o PS para seguir essa linha de redução da carga fiscal.
O que estava verdadeiramente em causa
Quando anunciou que estava disposto a viabilizar o Orçamento do Estado, Pedro Nuno Santos disse que o faria apenas e só para evitar nova crise política e convocação de eleições antecipadas. Nessa mesma noite, porém, o secretário-geral do PS acrescentou outra coisa importante, em resposta a uma pergunta dos jornalistas sobre a votação na especialidade: “Não nos passa pela cabeça sermos surpreendidos com votações que unam toda a direita. Estamos a partir de um pressuposto de que temos um Orçamento, mas o nosso voto final global é o mesmo da generalidade”.
Daí para cá, os socialistas foram sugerindo em diversas ocasiões que se o Governo quisesse de facto garantir a redução do IRC na especialidade teria de procurar outros parceiros negociais, nomeadamente o Chega e a Iniciativa Liberal. Ainda esta quinta-feira, num debate com o social-democrata Hugo Carneiro, transmitido pelo Observador, Mariana Vieira da Silva dizia isso mesmo: que o PSD e CDS tinham de encontrar no Parlamento forma de aprovar essa redução do imposto.
Por tudo isto e por garantias que vinham até de dentro do PS , era um dado assumido por todos que o partido votaria contra esta proposta e que o PSD e CDS precisariam necessariamente dos votos de André Ventura para garantir esta redução de 1 ponto percentual. Acabou por não ser assim — afinal, depois de o acordo com o Governo ter caído sobretudo por causa da questão do IRC, o PS acaba a viabilizar a mesma medida que tanta celeuma causou.
No entanto, esta sexta-feira, Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, introduziu um dado para tentar baralhar tudo e reabrir uma caixa de pandora que se julgava encerrada: se o PS chumbasse de facto a proposta de redução em 1 ponto percentual do IRC, então a coligação recuperaria a proposta original e tentaria forçar a redução de 2 pontos percentuais do imposto sobre as empresas, sabendo sempre que a medida contaria com a aprovação das bancadas à direita.
Entre dois cenários necessariamente maus, Pedro Nuno Santos recuou e escolheu o menor dos males. “O Governo quis criar um problema que não existe. [O PS não quis] alimentar as estratégias de distração por parte do Governo da AD, [que vai revelando incompetência e negligência, como o recente episódio da crise no INEM demonstra”, justificou o partido, numa nota enviada à Agência Lusa já perto das onze da noite.
É importante recordar que toda e qualquer proposta é votada individualmente na especialidade. No final, o documento como um todo é submetido a votação final global. Na prática, esta proposta de redução de 2 pontos percentuais do IRC poderia ser aprovada pelas bancadas mais à direita, mesmo com a oposição dos socialistas.
Posteriormente, haveria um momento em que o documento iria ser votado como um todo e em que a abstenção do PS seria essencial para o viabilizar — tal como aconteceu na discussão na generalidade. Ou seja, nesse cenário, se quisessem manter o sentido de voto, os socialistas teriam de validar um Orçamento do Estado com a redução do IRC para 19%.
Esta jogada colocava Pedro Nuno Santos perante quatro hipóteses: ou aceitava a redução de 1 ponto; ou viabilizava, em votação final global, um Orçamento que tem como pressuposto a redução de 2 pontos percentuais de IRC; ou mantinha o voto contra qualquer redução transversal do IRC e deixava o assunto para o PSD resolver com o Chega, na expectativa que possa passar a proposta do Governo (1 pp do IRC); ou então chumbava o documento e o mais provável é colocar-se um cenário de crise política e de eleições antecipadas.
O primeiro cenário seria mau; o segundo seria inaceitável para o PS; o terceiro é empurrar o assunto para um partido que não tem demonstrado especiais preocupações com a estabilidade política; o quarto seria de um enorme risco para todos os envolvidos. Pedro Nuno Santos preferiu o primeiro cenário e aceitou abençoar através do voto a redução de 1 ponto percentual do IRC — coisa que manifestamente não desejava.
Os sinais que antecipavam o recuo do PS
A prudência com que a líder parlamentar socialista, Alexandra Leitão, falou esta tarde sobre a redução do IRC já mostrava bem a delicadeza do tema — falou ainda antes da conferência de imprensa do PSD, mas não chegou a dizer de forma clara que o PS votaria contra o IRC, o que o Observador já tinha avançado citando um alto dirigente socialista.
Ainda assim, é certo que a líder parlamentar apontava precisamente nesse sentido. “O PS afirmou repetidamente que a sua prioridade, a sua visão relativamente ao IRC é de que a economia beneficia de um IRC que tenha reduções seletivas e não reduções transversais. É por causa desse 1% de redução do IRC que não houve acordo entre o PS e o Governo para este Orçamento do Estado”, começou por recordar.
“Não é a nossa proposta. É, aliás, por causa dessa proposta que não houve acordo, não é a solução que nós privilegiamos nem consideramos que é a melhor para a economia portuguesa. Teremos ainda longas reuniões para acertarmos o sentido de voto, mas naturalmente não é essa a nossa visão em termos da melhor fiscalidade para potenciar a economia portuguesa e isso já todos sabem é que assim”, salvaguardou a socialista.
Quando Alexandra Leitão fez estas declarações não era ainda público que o PSD ia forçar de novo o debate sobre a redução do IRC. Horas depois, Hugo Soares explicava ao que vinha: “A AD vai votar contra a proposta dos 2 pontos percentuais, na expectativa de que o compromisso [com o PS] seja aprovado — a tal redução 1 ponto percentual. Se não for [cumprido o acordo], avocaremos [para plenário] a votação da proposta de 2 pontos percentuais e mudamos o sentido de voto.”
O que o líder parlamentar do PSD omitiu é que nunca houve acordo para a redução de 1 ponto percentual do IRC. Mas esse facto era pouco relevante, até porque os sociais-democratas julgavam ter a faca e o queijo na mão: quando anunciou que iria viabilizar o Orçamento do Estado na generalidade e na especialidade, Pedro Nuno Santos nunca falou no IRC, mas antes no interesse nacional.
“Em que é que a redução do IRC em 1 ponto percentual colide com os pressupostos do PS para se abster no Orçamento do Estado? Pedro Nuno Santos disse que o fazia para evitar eleições”, sugeria esta tarde ao Observador fonte da bancada social-democrata. Já esta tarde, Hugo Soares tinha dito algo de muito semelhante: “O PS tem todas as condições para viabilizar a descida do IRC de um ponto, ou de dois pontos, ou nem uma, nem outra, e viabilizar na mesma o Orçamento do Estado”.
Os sociais-democratas sabiam perfeitamente que seria politicamente insustentável para Pedro Nuno garantir a viabilização de um Orçamento que tivesse uma redução de 2 pontos percentuais do IRC, tema que motivou horas e horas de debate e confrontação política. Mas, para o PSD, a coisa era muito simples: se queria assim tanto evitar uma crise política, Pedro Nuno Santos só tinha de manter uma base mínima de compromisso. Nem mais, nem menos. O socialista acabou por fugir do caminho das pedras.
* Artigo atualizado às 23h30, depois da decisão de Pedro Nuno de viabilizar a redução do IRC de 21 para 20%