A gestão de Tomás Correia, que saiu da mutualista Montepio no passado dia 15 de dezembro, quase esvaziou um dos fundos mais icónicos da mutualista — o Fundo de Solidariedade Associativa, que é alimentado com os dois euros que são cobrados todos os meses a todos os cerca de 600 mil associados. A um fundo que em 2014 tinha juntado 64 milhões de euros só restavam, em 2018, menos de 6 milhões — um exemplo do tipo de gestão que marcou os últimos anos da maior mutualista do país e com que o Montepio terá de romper agora que passou para a supervisão da Autoridade dos Seguros e Fundos de Pensões (ASF).
O código das mutualistas sempre estipulou que “cada modalidade de benefícios deve bastar-se financeiramente a si própria, pela integral cobertura das respetivas despesas através de receitas próprias, garantindo a respetiva sustentabilidade” — e agora será um supervisor profissional, e não o Ministério do Trabalho, a garantir a aplicação desse princípio. A auto-suficiência financeira de cada fundo não tem sido cumprida na gestão de várias modalidades de poupança do Montepio, designadamente com este Fundo de Solidariedade Associativa, um dos variadíssimos fundos que a associação mutualista Montepio gere, onde se incluem, também, modalidades como as do Capital Certo (renomeado Prazo Certo) e da Poupança Reforma.
Este é um fundo que é alimentado, basicamente, pela quota associativa de dois euros que é paga por todos os mutualistas. Nos casos de associados mais antigos essa quota pode ser de 75 cêntimos ou de um euro (como esta tabela explica), mas a esmagadora maioria dos associados paga os dois euros por mês pela garantia de que, caso tenham um acidente que resulte em invalidez total e permanente ou que morram, será pago um benefício de até 7.500 euros.
A missão principal, porém, segundo o artigo 53.º dos estatutos da associação, era o investimento em “ações de formação e difusão mutualistas e de solidariedade“.
Mas nos últimos 10 anos o montante pago a associados anualmente — os tais capitais distribuídos em casos de invalidez ou morte — nunca superaram os 300 mil euros num dado ano (oscilaram entre os 107 mil euros pagos em 2010 e os 291 mil pagos em 2018). E a dotação para a suposta difusão do mutualismo e da solidariedade nunca excedeu o milhão de euros que vai, anualmente, para a Fundação Montepio. Porém, as receitas do fundo, obtidas com a tal quota de até dois euros mensais, cobrada a 600 mil pessoas, situaram-se entre os 11,5 milhões e os 12 milhões por ano.
Com uma diferença tão grande entre aquilo que o fundo recebe em quotas e aquilo que entregou aos associados (que ficam em situação de invalidez ou morrem) seria de esperar que o valor do fundo aumentasse rapidamente a cada ano — e foi isso que foi acontecendo até 2014, altura em que estavam naquele fundo quase 65 milhões de euros. Mas a partir de 2015 as disponibilidades financeiras do fundo começaram a ser consumidas a um ritmo desproporcional. E sem que se perceba para onde é que foi o dinheiro, ou onde é que foi gasto. Os relatórios e contas simplesmente não dizem nada.
Ir buscar dinheiro onde ele existe
O ano de 2015 foi aquele em que a associação mutualista passou de lucros de 42 milhões para prejuízos de quase 400 milhões, devido ao registo de imparidades relacionadas com a reavaliação do valor das empresas participadas, com o banco e a atividade seguradora à cabeça. Ou seja, imparidades causadas, sobretudo, por créditos que o banco deu e não conseguiu recuperar. Parte dessas perdas foram “cobertas” com os 2 euros que todos os mutualistas pagam, por mês, para este fundo solidário.
Uma análise aos relatórios e contas da associação mutualista nesse ano revela que este fundo foi sobrecarregado com 49,625 milhões de euros em imparidades, ou seja, assumindo uma parte muito maior das imparidades gerais do que a sua dimensão pressuporia — basta ver que o fundo da modalidade Capital Certo ascendia a 1.591 milhões de euros (contra os 68 milhões do fundo solidário) e só suportou 39 milhões de euros em imparidades, menos do que o fundo de solidariedade.
Aliás, é discutível a legitimidade para levar este fundo de solidariedade a registar qualquer tipo de imparidade, um euro que fosse, porque não está nos seus desígnios investir nas participadas, como o banco (como acontece com outras modalidades, em que isso está previsto). Para repetir: o fundo solidário serve, apenas e só, para o pagamento dos benefícios aos inválidos/falecidos e para o trabalho solidário e mutualista.
Outro exemplo de desproporcionalidade está na imputação de “gastos gerais administrativos” num valor de mais de 18 milhões de euros — em rigor, segundo as contas, 18,290 milhões — para um fundo que nesse ano recebeu 11,658 milhões de euros de quotizações dos associados. Ou seja, gastar 18 milhões para fazer o processamento de 11,6 milhões em quotas. O fundo para o Capital Certo, que processou pagamentos de mais de 500 milhões de euros e recebimentos de quase 150 milhões, apenas suportou 14 milhões em gastos administrativos.
O Observador questionou fonte oficial da Associação Mutualista Montepio Geral sobre estas questões, confirmáveis na página 219 deste relatório. “No que se refere ao ano 2015, os resultados das modalidades, rendas e fundos do MGAM, incluindo o FSA, foram afetados pela constituição de imparidades decorrentes das avaliações das empresas participadas”, diz a fonte, sem aludir, porém, à desproporcionalidade no registo de imparidades a este fundo em particular.
Nesse ano, olhando para o total de gastos gerais administrativos da associação mutualista Montepio, constata-se que o total de gastos é de cerca de 43 milhões. Questionada diretamente sobre esse aspeto, a mutualista não explica porque é que foi imputado a este fundo, especificamente, mais de um terço dos gastos gerais administrativos de toda a associação mutualista.
“No âmbito da sua atividade, e considerando as adaptações organizacionais identificadas como necessárias nos últimos anos, foram realizadas um conjunto de iniciativas que resultaram num aumento do nível dos custos. Salientamos, a título de exemplo, a criação e revelação da identidade/marca do MGAM (só em 2015 o MGAM assumiu identidade própria em termos de marca, até então a designação da Associação e da Caixa Económica eram a mesma), ou a constituição da Rede Mutualista, destinada a garantir um atendimento especializado aos associados”, referiu a mutualista Montepio, como justificação para os custos suportados.
A fonte oficial da mutualista também não respondeu à questão direta do Observador sobre quanto valia o fundo no final de 2015, depois das fortes perdas que lhe foram imputadas (61,6 milhões). Mas uma análise às contas da mutualista, na rubrica do valor dos capitais próprios, mostra que o valor do fundo caiu, nesse ano de 2015, dos 68 milhões já referidos para cerca de 6,6 milhões de euros.
Usar uma bomba de ar para encher uma bola rota
Mas esta gestão do fundo de solidariedade associativa não terminou em 2015. Nos anos seguintes, os números mostram que continuou a usar-se este fundo como uma caixa de dinheiro que ajudou a compensar as insuficiências de outros negócios e de outras modalidades. Os prejuízos continuaram: 467 mil euros em 2016, 318 mil euros em 2017 e 3,65 milhões em 2018.
Em 2016, por exemplo, um ano em que se recolheram 11,6 milhões de euros em quotizações associativas, foram imputados a este fundo mais de 6,1 milhões em “gastos administrativos”. Houve, ainda, 4,7 milhões em “outros custos e perdas”, como se pode constatar na página 210 do relatório e contas desse ano, neste link. Em contraste, a modalidade Capital Certo, por exemplo, nunca apresenta montantes significativos nestes “outros custos e perdas”.
Na sequência da resposta já citada, a mutualista acrescenta que “sob a esfera dos gastos e perdas, importa dar nota da importante atividade que a Associação tem realizado com vista ao reforço dos benefícios complementares a associados, em concreto o lançamento do cartão Montepio Saúde, a transformação digital em curso, iniciada em 2016, as publicações periódicas dirigidas à comunidade associativa, as ações orientadas à promoção e divulgação do mutualismo e os apoios atribuídos a projetos sociais”.
Nesse ano de 2016 não houve, porém, imparidades significativas. Mas elas regressaram em 2017 — 3,1 milhões de euros num ano “especialmente exigente” para a associação mutualista, segundo as palavras do próprio Tomás Correia na mensagem que enviou aos associados, em que saíram notícias sobre os processos de investigação a Tomás Correia — fatores que não foram mais do que “imponderáveis fatores exógenos, com origem numa mediatização de leituras tendencialmente distorcidas, por parte de agentes e setores menos esclarecidos sobre o modelo de atividade e de funcionamento das associações mutualistas e da economia social em geral”.
Foi também nesse ano de 2017 que a associação mutualista, à luz do “rigor e transparência que pautam a conduta da gestão do MGAM”, fez “um pedido de informação vinculativa à Autoridade Tributária, de modo a clarificar a situação fiscal da associação”. Foi esse “pedido de informação” que, resultando numa alteração do estatuto fiscal em sede de IRC, levou a que tenham sido atribuídos à associação mutualista ativos por impostos diferidos de mais de 800 milhões, o que permitiu à mutualista escapar à apresentação de prejuízos pesados e apresentar ao mercado, ao invés, um lucro (contabilístico) de 9 milhões de euros.
A “engenharia” contabilística que permitiu à dona do Montepio passar de prejuízos a lucros
Além dos mais de três milhões em imparidades que foram assacadas ao fundo de solidariedade associativa em 2017, registaram-se 7,8 milhões de euros em “gastos administrativos” e 5,7 milhões em “outros custos e perdas”.
E a tendência, em 2018, foi a mesma, apesar de já não ter sido um ano de registo extraordinário de imparidades. O fundo recolheu cerca de 11,6 milhões de euros em quotizações, na linha dos números habituais dado tratar-se de uma rubrica relativamente fixa — mas contabilizou 8,8 milhões de euros em “gastos administrativos” e quase seis milhões de euros em “outros custos e perdas”. Resultado final: um prejuízo de 3,65 milhões de euros no ano passado.
A associação mutualista reúne-se esta segunda-feira, 30 de dezembro, para a primeira assembleia-geral sem a presença de Tomás Correia, que saiu de funções antecipando-se ao que seria uma decisão negativa do supervisor sobre a sua continuidade como presidente do conselho de administração da mutualista.
Ao contrário do que se presumiu inicialmente, porém, Tomás Correia acabou por decidir nem sequer ficar ao leme da Fundação Montepio — depois de o Observador ter noticiado uma proposta que foi apresentada em conselho de administração, pelo administrador Luís Almeida, com Tomás Correia fora da sala, para uma “redefinição” das missões da Fundação, o que envolveria uma multiplicação da dotação para a Fundação. Essa proposta acabou por nem sequer ser votada, sendo morta à nascença pelos outros três administradores: Carlos Beato, Idália Serrão e o novo presidente, Virgílio Lima.
Tomás Correia, afinal, não fica na Fundação Montepio. Vai escrever peça de teatro