De repente fez-se silêncio entre as cerca de 60 pessoas que têm ocupado uma das salas de audiências do tribunal de Santarém. Aproxima-se do microfone destinado aos arguidos um homem alto, encorpado, vestido de blazer escuro. É João Paulino, o ex-fuzileiro e empresário da noite que é visto pelo Ministério Público como o mentor do assalto aos Paióis Nacionais de Tancos. O arguido pede desculpa por ser mau com datas e de o tempo que passou ser inimigo da memória, mas chuta logo com uma promessa: “Quero esclarecer toda a verdade, há muita coisa mal contada”. Era o depoimento mais esperado desta terça-feira.
O coletivo de juízes, presidido por Nelson Barra, escuta-o com atenção. O procurador do Ministério Público e as duas dezenas de advogados, separados por barreiras em acrílico, acompanham sem se perceberem reações de maior. Paulino começa nervoso com um raciocínio difícil de acompanhar, mas o juiz vai fazendo perguntas com o que consta na acusação do Ministério Público. As primeiras relativas ao facto de ser um traficante de droga e de, pelo menos, oito arguidos sentados ao seu lado serem os seus colaboradores.
Ele recusa. Sim era consumidor de haxixe e cocaína, mas não traficava. Reconhece, porém, que a 25 de setembro de 2018, quando foi detido numa casa em Tomar, tinha consigo uma quantidade razoável de droga. É que pouco antes, por coincidência, um conhecido seu — que não identifica — tinha-lhe pedido para arranjar umas bolotas e haxixe. E ele falou com um amigo de Lisboa porque podia assim fazer algum dinheiro.
Nesse dia, pelas 7h00, a PJ bateu-lhe à porta. Em casa tinha cerca de 60 gramas de cocaína, o que equivale a 207 doses, segundo a acusação. Era “para consumo e para amigos meus, para festas, não tinha nada a ver com venda”, responde ao juiz. “Depois do furto andei um bocadinho mais stressado, não andei com o norte acertado”, confessa, e por isso consumia mais. Tinha também haxixe, e esse sim era o tal para vender: 1o placas de haxixe, perto de 1 quilo de peso, e 29 bolotas de canábis.
— Mesmo assim 207 doses é muito, disse o juiz presidente Nelson Barra
— Não sei como são essas contas. Uma dose é uma grama por isso eram 60 doses, respondeu.
Além da droga em casa, tinha no carro 5.780 euros em dinheiro. No tribunal Paulino disse que esse valor ainda era uma tranche do pagamento do bar que acabara de vender. Um bar em Ansião, o JB, que explorou ao longo de cinco anos com o amigo Fernando Santos, também arguido no processo.
Quando o juiz lhe perguntou, então, se era falso que ele ia de vez em quando a Aveiro ter com o arguido Jaime, cozinheiro numa pizzaria, para lhe dar droga à consignação, o ex-militar disse que era completamente “falso”. O que lhe levava “era garrafas de vinho, algumas em miniaturas”, que ambos colecionavam. Perante a recusa de ser traficante de droga, o magistrado decidiu saltar a restante acusação, que descreve vários encontros semelhantes, e passou para aquele que foi considerado o assalto do século.
Como soube das fragilidades de Tancos
Foi precisamente nessa pizzaria em Aveiro que, numa noite, ouviu o amigo Valter Abreu — que prestou declarações em tribunal esta segunda-feira — falar de algumas confidências do sobrinho. Filipe Sousa, o sobrinho, era militar do Exército e cabia-lhe fazer algumas rondas nos Paióis Nacionais de Tancos. Uma noite acabou por desabafar à mesa sobre a falta de condições de segurança no local. O tio Valter reproduziu-as. “Disse que as câmaras de videovigilância estavam todas partidas, que não se faziam rondas, que aquilo não tinha segurança nenhuma”, contou.
João Paulino quis ouvi-lo de viva voz. Dias depois Filipe acabou a beber um copo com ele no seu bar em Ansião. Filipe Sousa contou em tribunal que o fez porque o tio alegou que queria apresentá-lo a um amigo. O Ministério Público, por seu turno, diz que Filipe sabia das intenções de Paulino e que Valter participou, depois no assalto. Os dois arguidos negaram saber do crime e Paulino corroborou a sua versão. “Não sabiam de nada. O que está na acusação é uma versão apresentada pelo Valter que é uma palhaçada”, disse. “Não sei onde ele foi buscar isso”, atira.
Os amigos que foram reconhecer o local, mas que acharam arriscado assaltar
Pouco depois, sem precisar quando, Paulino estava no bar com o sócio Fernando e o amigo Gabriel Moreira, quando chega António Laranginha. “Um amigo meu falou-me de uma situação para ir roubar que dá para ganhar um bom dinheiro”, disse-lhes, ao mesmo tempo que os convencia a entrarem no carro para lhes dar mais informações. Entraram os quatro no carro e pelo caminho Paulino disse-lhes para onde iam: os Paióis Nacionais de Tancos. Nessa altura foram ao local fazer “um reconhecimento”. Ele ainda os deixou lá enquanto andou de carro à volta. Os amigos perceberam que não havia patrulhas e que a entrada podia ser fácil, mas já no regresso recuaram no plano. Era demasiado arriscado. “Não acharam a minha ideia engraçada”, disse. O Ministério Público acusa-os, no entanto, de terem estado no dia do crime.
No final desse mês o sócio Fernando acabaria mesmo por vender-lhe a parte dele e ir trabalhar para outro lado. Estava farto daquele negócio.
Paulo Lemos, o Fechaduras, apoiou a ideia, mas depois deixou de atender o telefone
Na versão de Paulino, a ideia não morreu. Dias depois foi até ao Algarve, onde passou a infância e onde a mãe ainda vive. Estava em casa de um amigo, de nome Fernando, que vivia com Paulo Lemos, conhecido por “Fechaduras”. “O Paulo é uma pessoa que fala muito abertamente e conta muito da sua vida, que abriu fechaduras e cofres, até de tribunais. E veio-me à ideia…” a história de Tancos. Lemos apoiou, disse que “podiam ir lá e ter algum lucro”. E Paulino não perdeu tempo. Foi a Espanha por dois dias e comprou a ferramenta que Lemos lhe indicou ser perfeita para arrombamentos: uma saca cilindros.
Pelos menos a 16 de março de 2017 Paulino estava em Espanha. Tem uma imagem no Instagram que lhe aviva a memória. “É uma peça circular, parece um tubo, uma coisa que vai para a frente e para trás, engatam-se lá uns parafusos que são aparafusados numa fechadura seja ela qual for e com uma chave puxa a fechadura para fora”, descreveu perante o olhar atento do coletivo de juízes.
Sem parceiros para o crime, arranja outros. Recompensa: mil euros
“Falei várias vezes com o Fechaduras, porque ele era para vir fazer o assalto. Ele às vezes evitava, havia ali uma incompatibilidade de encontros. Andava a evitar-me. Deixei de o questionar”, conta Paulino. Mal sabia ele que por aquela altura já Fechaduras tinha denunciado à polícia que estava a ser preparado um assalto a umas instalações militares do país. Uma denúncia que não chegou a ser investigada e que só foi tida em conta já depois do crime.
Já em Tomar, Paulino acabaria por desafiar para o crime dois outros amigos: Hugo Santos, um motorista de pesados, e João Pais, mais conhecido por Caveirinha. Segundo descreveu em tribunal, prometeu-lhes mil euros e avisou-os pouco antes de que o crime se iria concretizar. A noite do assalto, naquele junho de 2017, não foi escolhida ao acaso, segundo disse. Estava escuro e nevoeiro e era difícil serem vistos.
Encontraram-se em Tomar, onde estava a viver por se estar “numa relação tremida” com a mãe do filho. O Hugo ficou com a carrinha Mercedes de Paulino, enquanto ele e João se enfiaram numa carrinha de caixa aberta que pedira emprestada. Chegaram às traseiras dos paióis, Hugo ficou vigiar — e comunicava com um walkie talkie se fosse preciso. Paulino e João entravam. “Fui eu que cortei a rede com um alicate”, assumiu Paulino — corroborando a tese de Valter, que diz que nunca ali esteve. Embora a acusação o ponha como o autor deste corte.
— Mas já ia com a informação do que havia no interior?, pergunta o juiz
— Já fui militar e sei que um paiol não tem la ramos de rosas nem chupa chupas, responde
Ele e Paulo levaram carrinhos porta cargas e começaram a tirar dos paióis tudo o que podiam. “Não dava para ver bem o que estávamos a carregar. Eram muitas caixas assim muito extensas. Estava escuro. Carregámos algumas”, lembra. Entraram em dois paióis, nos quais arrombaram as portas com o saca cilindros, depois carregaram tudo até à rede e da rede até à carrinha. Ninguém os viu.
— Senti muito nervosismo e queria sair dali o mais rapidamente possível, disse Paulino.
Dali levou, sozinho, o material para um terreno que tinha em Penela, onde escondeu todos os explosivos. O pior foram os dias seguintes. Quando começou a ver as notícias do crime e as relações com o terrorismo que estavam a fazer. Ficou aflito. “Quero que fique bem claro, quero virar esta página na minha vida e pôr tudo atrás das costas. Isto nunca teve a ver com nenhum grupo terrorista. Nunca teve nenhum ligação com a ETA”, afirma.
Por isso a sua intenção foi logo devolver tudo. Como depois o fez irá contar na próxima sessão, esta quinta-feira no Tribunal de Santarém. Aqui, segundo o Ministério Público, entra a atuação da Polícia Judiciária Militar, acusada de atuar à revelia da Polícia Judiciária civil e com o aval do então ministro da Defesa, Azeredo Lopes.
O caso Tancos envolve 23 arguidos. No capítulo da acusação do assalto estão dez arguidos envolvidos, embora um deles, Filipe, não tenha estado no local e outro, Jaime, seja apenas acusado de tráfico de droga. Agora Paulino diz que só ele e outros dois efetivaram o crime. Entre os restantes 13 arguidos, acusados de uma operação ilegal que culminou na recuperação das armas, estão militares da Polícia Judiciária Militar, entre eles o ex-diretor, militares da GNR e o ex-ministro da Defesa.