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O líder de 85 milhões de anglicanos em todo o mundo resignou ao cargo depois de uma análise independente entregue à Igreja de Inglaterra ter concluído pela sua inação e dos mais altos cargos da instituição religiosa perante a revelação de um caso de abuso sexual de crianças e jovens.
O arcebispo da Cantuária, Justin Welby, e outros membros da liderança anglicana foram informados oficialmente, em 2013, sobre o caso de abusos sexuais e físicos cometidos durante duas décadas em campos de férias por um homem que, no ano da denúncia, ainda contactava com crianças e jovens em contexto religioso. Desta comunicação não resultou qualquer comunicação à polícia e durante mais cinco anos, John Smith, o abusador visado, continuou a lidar com menores na África do Sul. Ao que tudo indica prosseguiu com abusos até ao ano da sua morte, 2018.
Agora, e faltando apenas pouco mais de um ano para a sua reforma formal, que na Igreja Anglicana acontece aos 70 anos do arcebispo, Justin Welby dá um passo atrás para tentar assumir a responsabilidade sobre o caso, admitindo a “vergonha” pela falha da instituição que liderou.
Há vários nomes apontados para lhe suceder, num momento da Igreja Anglicana em que o próximo líder estará sob os holofotes do recente caso e com grande parte da comunidade anglicana, espalhada pelo mundo, a exigir a modernização das práticas religiosas, cerimoniais e a introdução de diversidade nos altos cargos da Igreja.
Porque se demitiu Justin Welby da liderança da Igreja Anglicana?
A principal razão para o arcebispo de Cantuária ter resignado ao cargo da liderança espiritual da Igreja Anglicana foram as conclusões de uma análise independente sobre a forma como a instituição religiosa lidou com as alegações de abusos graves a crianças e jovens cometidos por um voluntário em campos de férias religiosos no Reino Unido.
“Na sequência de desenvolvimentos específicos em 2012, a partir de julho de 2013, a Igreja Anglicana teve conhecimento, ao mais alto nível, dos abusos ocorridos no final da década de 1970 e no início da década de 1980. John Smyth deveria ter sido denunciado de forma adequada e eficaz à polícia no Reino Unido e às autoridades competentes na África do Sul”, destaca-se no relatório.
Desde a publicação da análise independente, na semana passada, que Welby estava a ser pressionado a apresentar a demissão. Nos últimos dias, alguns membros do Sínodo Geral, a assembleia nacional da Igreja Anglicana, criaram uma petição a pedir ao arcebispo de Cantuária que se demitisse, defendendo que tinha “perdido a confiança do seu clero”. A petição reuniu mais de 6.800 assinaturas até ao final da tarde de segunda-feira.
“Tendo solicitado a graciosa permissão de Sua Majestade o Rei, decidi renunciar ao cargo de arcebispo de Cantuária”, disse Welby num comunicado publicado no site da Igreja de Inglaterra esta terça-feira, onde assume que foi informado em 2013 sobre os abusos sexuais, embora ressalve ter sido igualmente informado de que a polícia também tinha sido notificada. “Acreditei erradamente que seria seguida uma resolução apropriada”, assegurou.
Welby considerou ser “muito claro” que tinha de “assumir a responsabilidade pessoal e institucional pelo longo e traumatizante período entre 2013 e 2024”. Além disso, revela que os últimos dias renovaram o seu “há muito sentido profundo sentimento de vergonha pelas falhas históricas de salvaguarda da Igreja de Inglaterra”.
Quem é John Smyth, o homem que abusou de crianças e jovens durante décadas com a proteção da Igreja Anglicana?
O agressor visado pela investigação britânica é John Smyth, um advogado que começou a dirigir campos de férias cristãos evangélicos como voluntário no final dos anos 70 e início dos anos 8o. Durante esse período, em Inglaterra, terá abusado de dezenas de crianças e jovens. Quando os crimes foram descobertos, Smyth mudou-se para o estrangeiro com pleno conhecimento dos oficiais da igreja e continuou a praticar os mesmos crimes.
Diz-se que Smyth submeteu as suas vítimas a ataques traumáticos físicos, sexuais, psicológicos e espirituais, marcando permanentemente as suas vidas. No total, dentro e fora de Inglaterra, abusou de mais de 100 crianças e jovens. Acredita-se que é o abusador em série mais prolífico associado à igreja de Inglaterra.
Na nota de resignação, o arcebispo de Cantuária voltou pediu repetidamente desculpa às vítimas e disse que Smyth “manipulou a verdade cristã para justificar os seus atos malignos”. Entre 1984 e 2001, o abusador viveu no Zimbabué e, posteriormente, mudou-se para a África do Sul. Em 1992, foi mesmo acusado de matar um rapaz de 16 anos que foi encontrado morto numa piscina de um campo de férias onde era voluntário. O caso foi arquivado e depois do desfecho judicial o advogado mudou-se para a Cidade do Cabo, na África do Sul.
Ao que tudo indica, continuou a abusar de rapazes e jovens nos dois países e há provas de que os abusos continuaram até à sua morte, em agosto de 2018, na África do Sul. Segundo o The Guardian, os abusos de Smyth não foram tornados públicos até um trabalho de investigação jornalística da televisão britânica Channel 4, em 2017, ter dado início a uma investigação da polícia de Hampshire. As autoridades planeavam interrogar e extraditar o homem de 77 anos nas semanas que precederam a sua morte.
No entanto, pelo menos desde 2013 que os mais altos cargos da Igreja de Inglaterra foram informados, de forma oficial, sobre as dezenas de denúncias referentes ao período em que o advogado era voluntário nos campos de férias em Inglaterra. Passaram-se mais cinco anos em que o homem, na altura a viver na África do Sul, continuou a ter contacto com crianças e jovens em campos de férias e eventos religiosos.
Qual a ligação entre o arcebispo demissionário e John Smith?
Numa série de artigos já depois de o caso ter sido tornado público, o The Telegraph revelou vários factos em torno do abuso em série de crianças e jovens que apontam para a ligação de Justin Welby ao escândalo. O arcebispo chegou a negar ter estado nos campos de férias onde decorreram os abusos, sexuais e físicos, facto que se revelou falso, com relatos de que os dois se conheciam e de que trabalharam juntos nessa altura.
O agora líder demissionário da Igreja Anglicana garantia que não tinha conhecimento das alegações porque se tinha mudado para Paris em 1978, altura em que os espancamentos a crianças e jovens terão começado, informação que era conhecida entre os que frequentavam e trabalhavam nos campos de férias.
O arcebispo foi então obrigado a repor a verdade, afinal tinha regressado ao campo de férias em 1979. Foi então acusado de mudar a sua versão da história sobre as ligações que manteve a Smyth depois de documentos comprovarem que participou num acampamento de verão quando os primeiros relatos de abusos foram conhecidos.
Em cartas reveladas pelo The Telegraph, de vítimas e testemunhas, Welby foi rotulado de “observador” dos crimes, sendo acusado de saber dos abusos, mas “nunca os ter relatado de forma adequada”.
Assim, sabe-se que Justin Welby trabalhou como oficial de dormitório em campos a que Smyth presidiu de 1974 a 1981. Perante uma carta aberta endossada a Welby por oito alegadas vítimas de John Smyth, que o convidavam a revelar a verdadeira extensão do seu conhecimento sobre as alegações de abuso, o arcebispo insistiu que estava “completamente inconsciente” das acusações contra o advogado até 2013.
O que acontece com a liderança da Igreja Anglicana depois da demissão de Welby?
No regulamento dos gabinetes eclesiásticos estabelece-se que o Arcebispo de Cantuária é obrigado a reformar-se aos 70 anos. No caso de Justin Welby, que quis renunciar antes disso (completaria 70 anos em janeiro de 2026) teve de apresentar a sua renúncia ao monarca em exercício, o Rei Carlos, que lhes concedeu permissão para renunciar.
O monarca e o líder religioso são próximos, como recorda o The Telegraph, e trocaram “palavras privadas” através de conselheiros na manhã de terça-feira. Dando início ao processo formal de demissão do Arcebispo, o rei não expressou qualquer opinião sobre a decisão e simplesmente concedeu permissão para que este se retirasse. Não se espera que Carlos III fale publicamente sobre o assunto até ao momento da partida ou da transferência formal de Welby.
Segundo relatos citados pelo The Guardian, o atual chefe da Igreja Anglicana tinha intenção de cumprir o seu mandato até atingir a idade da reforma, restava-lhe pouco mais de um ano para concluir a missão. Chegou ao cargo em 2o13 e durante o tempo em que liderou os anglicanos britânicos presidiu à celebração do matrimónio entre o príncipe Harry e atriz norte-americana Meghan Markle.
Arcebispo da Cantuária: o filho do secretário de Churchill que vai casar Harry e Meghan
A escolha de um sucessor de Welby ficará a cargo do monarca após sugestão do primeiro-ministro do Reino Unido, que por sua vez segue o conselho da Comissão de Nomeações da Coroa. A comissão acorda dois nomes para nomeação do primeiro-ministro, que podem ser indicados por ordem de preferência. A comissão é um órgão da Igreja de Inglaterra e não da coroa, pelo que o primeiro-ministro não é obrigado a aceitar o seu conselho quando chegar a hora de anunciar um nome.
O antecessor de Welby, Rowan Williams, demitiu-se do cargo em 2012, aos 61 anos. O seu mandato à frente da Igreja de Inglaterra ficou marcado pelas posições liberais do arcebispo sobre a homossexualidade. Durante a sua liderança, a Igreja de Inglaterra esteve perto de se dividir em relação à ordenação de clérigos gays e de mulheres bispos.
Devotos pedem uma mulher ou um negro (ou ambos) para novo arcebispo. Quem pode suceder a Welby?
Com a demissão de Justin Welby, dá-se início à busca pelo 106º arcebispo de Cantuária. O cargo combina liderança moral e espiritual, deveres cerimoniais, um lugar na Câmara dos Lordes e a supervisão das igrejas anglicanas em mais de 160 países.
Para já, a tarefa de assumir a pasta de transição fica nas mãos de Stephen Cottrell, o arcebispo de York, que assumirá a posição temporária de número um na Igreja de Inglaterra até que um novo arcebispo de Cantuária possa ser nomeado. Segundo o The Guardian, o processo deverá durar vários meses.
Muitos na igreja e fora dela esperam que o candidato escolhido seja uma mulher ou uma pessoa negra – ou ambos. Entre os nomes apontados ao cargo estão Francis-Dehqani, nomeada bispo de Chelmsford em 2021, Martyn Snow, bispo de Leicester desde 2016, e o próprio Stephen Cottrell, que vai assumir temporariamente as funções de liderança da Igreja.
Os nomes favoritos à liderança são quase todos vozes progressistas, que apelam à introdução da bênção de casais do mesmo sexo entre os rituais anglicanos, bem como apelam à luta contra o racismo e discriminação. Como aponta o The Guardian, as circunstâncias da resignação de Welby podem fazer com que alguns dos nomes até agora apontados recuem na intenção de liderar a Igreja de Inglaterra. Noutros casos, a intenção de provocar uma real renovação da instituição religiosa pode aumentar a vontade de ocupar o cargo nesta ocasião.