O convite de um chefe da máfia não é algo que se possa recusar, como dizia Marlon Brando no clássico ‘O Padrinho’. E assim foi. O chefe de uma das maiores famílias da máfia de New Jersey convidou os seus parceiros de crime para o casamento da filha, num iate em Atlantic City, e disse-lhes que teriam transporte para a cerimónia. Vestidos a rigor, com prendas luxuosas – até relógios Rolex em ouro -, vieram de todas as partes do mundo para celebrar o início desta união.
No mesmo dia, na outra costa dos Estados Unidos, um outro criminoso com ligações ao mafioso de New Jersey marcava uma festa para celebrar o fim da sua união. A mulher tinha descoberto que ele mantinha uma amante e pediu o divórcio, que estava prestes a ser oficial. Para celebrar o fim do matrimónio, uma tradição muito americana, foram enviados convites para uma festa na mítica mansão Playboy.
O dia tinha tudo para ser de arromba, mas nem todos chegariam a celebrar. É que em vez de transportados para o casamento no iate e para a festa de divórcio na mansão Playboy, membros de uma das maiores redes criminosas da Ásia foram levados para a cadeia. O chefe da máfia, o casal e o criminoso na costa Oeste eram, na verdade, todos agentes do FBI. Os criminosos foram enganados e tinham andado a fazer negócios com as autoridades norte-americanas durante quatro anos e meio.
A operação começou no final dos anos 90. As autoridades tinham sido alertadas para a existência de uma rede criminosa que fazia contrabando de tabaco em grande escala a partir da Ásia, tabaco esse que era vendido a pequenos negócios de comerciantes do Médio Oriente, que usavam as receitas para financiar grupos terroristas nos seus países de origem.
Com informadores dentro da rede, o FBI conseguiu colocar os seus homens infiltrados a fazer negócios com o grupo, liderado por uma das maiores famílias do crime da China, a família Hsu. Mas rapidamente as autoridades perceberam que o esquema era muito mais vasto. Além do tabaco – maioritariamente Marlboro -, o grupo vendia roupa de marca falsificada, carros roubados, ecstasy, selos, armas e as melhores falsificações de notas de dólar do mundo.
Bob Hamer, o agente do FBI que liderou a operação Smoking Dragon na Califórnia – agora reformado – explicou ao Observador como entrou na rede criminosa com a ajuda de um informador, vendendo a ideia de que tinha controlos no porto para evitar inspeções aos contentores dos criminosos, e ainda uma rede de camiões para fazer a distribuição dos produtos. Mas quando percebeu que estava a negociar com um grupo com ligação a generais chineses, que tinham como fornecedor a Coreia do Norte, o FBI começou a tentar ir mais longe.
“Quando uma das mulheres me trouxe ecstasy pela primeira vez, disse-lhe que não sabia se conseguia distribuir aquilo, mas que um dos meus clientes tinha um bar em New Orleans e ia tentar fazer negócio. Nessa altura ganhei a confiança deles para pedir mais. Numa das viagens num dos camiões com o meu contacto com os norte-coreanos, perguntei-lhe se não me arranjava armas, porque tinha um cliente com uma empresa de segurança privada no Alabama que precisava de AK-47 para treinar os empregados, que tinham missões em países do terceiro mundo, muitos deles em África. Quando dizia isto estava a passar um camião com um tanque e o meu contacto disse-me ‘se quiseres até te arranjo um destes. Arranjo-te o que tu quiseres, tirando armas nucleares‘”, contou.
Bob aproveitou e acordaram a entrega de 20 contentores com armas, entre elas espingardas e lança-rockets, pagando em troca cerca de 60 milhões de dólares. Já com os Serviços Secretos na operação, Bob voltou a insistir, pedindo notas falsas da melhor qualidade. As supernotas, como as autoridades lhe chamam, eram um exclusivo norte-coreano e tão bem feitas que nem os bancos conseguiam notar a diferença. A razão: eram feitas pelo Estado norte-coreano, com recurso às mesmas máquinas que as dos Estados Unidos, ao mesmo papel e a cores muito semelhantes.
O agente do FBI garantiu aos norte-coreanos que receberiam sempre a sua parte do negócio. O primeiro negócio correu bem e os criminosos estavam contentes: “O representante norte-coreano disse que eu ia ser o seu principal distribuidor nos Estados Unidos e que me daria 40 milhões de dólares por ano em supernotas, as notas de 100 falsas da melhor qualidade no mercado”, disse.
A operação teve de acontecer em simultâneo, porque alguns desses criminosos conheciam-se. Enquanto iam sendo levados para a cadeia em vez de para o casamento em New Jersey, Bob marcou vários encontros ao longo do dia. “Fui preso pelo menos três vezes nesse dia. Marcava um encontro, íamos todos presos. Saía e marcava outro encontro, tudo preso outra vez”, recordou.
Quase 90 pessoas foram detidas e acusadas nos Estados Unidos, Canadá, Taiwan e China, 4,4 milhões de dólares em notas falsas de elevada qualidade foram apreendidos, juntamente com mais de mil milhões de cigarros, ecstasy, metanfetaminas e viagra. O procurador de New Jersey, na altura Chris Christie, acusou os membros da rede de contrabando de dólares, de selos norte-americanos, de cigarros, viagra falsificado, ecstasy, metanfetaminas, heroína, Ak-47, bazookas e lança-rockets, carros roubados e roupa falsificada.
Entre os detidos estava Jyimin “Jimmy” Horng, que, juntamente com o seu sócio Co Khan, também conhecido como “Keith” Tang, organizaram o envio de grandes carregamentos de supernotas e metanfetaminas e ainda tentaram vender aos agentes norte-americanos um autêntico arsenal com a ajuda de dois generais de dois países, da China e da Coreia do Norte. Todos estes produtos eram norte-coreanos.
As autoridades seguiram então o rasto de 1,15 milhões de euros que Horng e Khan tinham recebido até duas contas bancárias que estes detinham num banco em Macau: eram usadas pelos dois criminosos para lavar o dinheiro conseguido com a venda de droga, armas, notas falsificadas e todo um vasto leque de crimes em nome do regime de Pyongyang.
De Macau para o mundo
Há muito que as autoridades sabiam que Macau era usado pela Coreia do Norte como base para as suas atividades criminosas. Em 1983, o enclave português serviu de base para o planeamento da tentativa de assassinato do presidente da Coreia do Sul durante uma visita oficial à Birmânia. O presidente escapou, porque ficou preso no trânsito e a guarda-de-honra birmanesa o confundiu com o embaixador. 21 pessoas morreram, entre elas o vice-primeiro-ministro da Coreia do Sul, o ministro dos Negócios Estrangeiros e o ministro do Comércio.
Em 1987, a agente norte-coreana Kim Hyun Kui foi treinada durante dois meses numa casa em Macau para colocar a bomba no voo 858 da Korean Air, que matou 115 pessoas.
Nas últimas duas décadas da governação portuguesa de Macau, a Coreia do Norte aproveitou o território para lavar dinheiro, exportar drogas e gerir um conjunto alargado de crimes sob a direção do regime: “A Coreia do Norte continua a usar Macau como uma base de operações para lavagem de dinheiro e outras atividades ilícitas. Macau é um intermediário útil, porque dá à Coreia do Norte acesso ao sistema financeiro internacional. Há também registo de Pyongyang usar Macau para lavar notas de 100 dólares falsas e os bancos de Macau têm sido um repositório para as crescentes receitas da Coreia do Norte com a venda de droga”, diz um relatório do Departamento de Estado dos Estados Unidos, datado de março de 2005.
A situação mudaria em 2005, quando as autoridades norte-americanas acusaram o Banco Delta Asia em Macau de ser “voluntariamente um peão do governo norte-coreano”, ajudando o regime durante mais de duas décadas, aceitando depósitos e levantamentos de muitos milhões de dólares de empresas testa de ferro do regime para a lavagem de dinheiro falso e de dinheiro oriundo do tráfico de droga e outras atividades ilegais.
“O Banco Delta Asia tem sido, voluntariamente, um peão do governo norte-coreano na prática de atividades financeiras corruptas através de Macau, uma região que precisa de melhorias significativas nos seus mecanismos anti-branqueamento de capitais”, disse nesse ano o secretário adjunto do Tesouro dos Estados Unidos, Stuart Levey, que era responsável pela parte financeira da luta contra o terrorismo.
Com recurso ao Patriot Act — a lei anti-terrorismo criada depois do ataque terrorista de 11 de setembro de 2001 —, os Estados Unidos proibiram todos os bancos norte-americanos de fazerem qualquer negócio com o Delta Asia e as suas oito filiais, entre elas uma no casino de Macau, outra no aeroporto de Macau, em Hong Kong e no Japão.
“Quanto mais nos concentrávamos na rede criminosa da Coreia do Norte, mais nos começávamos a concentrar em Macau”, lembrou David Asher, responsável pela guerra financeira contra o regime norte-coreano durante a administração de George W. Bush, anos mais tarde.
No dia seguinte à acusação, 40 milhões de dólares de depósitos saíram do banco, levando a Autoridade Monetária de Macau a abrir uma investigação. Dois dias depois da investigação ser aberta, a Autoridade assumiu a gestão do banco e congelou mais de 25 milhões de dólares depositados em 50 contas de norte-coreanos.
Dessas 50 contas, 20 eram de bancos do Estado da Coreia do Norte, 11 de empresas de trading e nove de indivíduos. Entre essas estavam duas conhecidas de longa data das autoridades: a Zokwang Trading Company, alegadamente a base da operação de falsificação de dinheiro da Coreia do Norte em Macau, com várias contas no banco e que fazia circular o dinheiro por Hong Kong; e o Tanchon Bank, suspeito de financiar os vários programas de armamento da Coreia do Norte.
“O Banco Delta Asia prestou serviços financeiros durante 20 anos a agências governamentais e empresas que serviam de testa de ferro à República Popular Democrática da Coreia. (…) Existem provas de que algumas destas agências e empresas que servem de testa de ferro estão envolvidas em atividades ilegais. O Banco Delta Asia desenhou os seus serviços para responder aos pedidos e necessidades da Coreia do Norte com pouca supervisão ou controlo”, diz a ordem emitida em 2005 pelo Tesouro norte-americano.
Segundo as autoridades norte-americanas, o banco com sede em Macau era o principal gestor dos fundos conseguidos pela Coreia do Norte com a venda de metais preciosos; ajudava os agentes norte-coreanos a fazer depósitos e levantamentos de milhões de dólares escondidos das autoridades; e aceitou depósitos de dólares falsos e colocou-as em circulação a pedido do regime.
O principal cliente seria a Zokwang Trading Company. Segundo as autoridades, o banco terá ajudado a empresa a lavar dinheiro oriundo de atividades ilegais como a falsificação de dinheiro, o contrabando de tabaco e o tráfico de droga, durante mais de uma década. Mas não foi a única. E no balanço terá sido encontrada ainda a conta de um conhecido traficante de droga internacional.
A pressão sobre Macau acabou por levar à deslocalização da operação para outro território, inicialmente Zhuhai, na China continental, mas também Hong Kong, onde ainda hoje permanece, e para a Malásia. Mas nessa altura, o empreendimento criminoso norte-coreano já tinha raízes bem estabelecidas em todos os cantos do mundo.
O ‘Rambo’, o gangue de motards e os Narcos à la Coreana
Durante mais de 20 anos, Joseph Hunter serviu os Estados Unidos com distinção. No Exército, liderou equipas de paraquedistas em missões arriscadas, foi instrutor de franco-atiradores, deu treino de pontaria e de táticas. Quando em 2004 deixou o Exército, era um soldado condecorado.
O regresso à vida civil não foi tão fácil. Ainda tentou entrar na polícia – chegou a concluir a formação -, mas o salário não chegava para as suas ambições e decidiu que era tempo de escolher outro caminho: o crime. Juntamente com antigos parceiros, montou uma equipa de segurança privada, aproveitou contactos no continente asiático e durante anos trabalhou para um dos maiores traficantes de droga na mira das autoridades, Paul Le Roux, do Zimbabué.
Joseph, também conhecido como “Rambo”, usava vários nomes falsos para viajar pelo mundo e fazer de tudo um pouco no mundo do crime: serviços de segurança para criminosos, vigilância, tráfico de droga, assassinatos.
O negócio resultou até ao início de 2013, quando conheceu dois traficantes de droga colombianos. Os criminosos estavam à procura de uma equipa que garantisse a segurança dos seus carregamentos e fizesse uns serviços “extra” por fora. “Rambo”, já tinha uma equipa pronta. O primeiro trabalho era vigiar um avião com destino a Nova Iorque quando este estivesse a ser carregado com centenas de quilos de cocaína. O trabalho correu bem, mas “Rambo” queria mais dinheiro e insistiu com os traficantes que a sua equipa estava pronta para os “serviços extra” – que, explicou por email à sua equipa, queria dizer assassinatos.
Depois de vários carregamentos, negócios com traficantes de droga romenos e outros negócios de ‘segurança’ em África e na Ásia, o prometido ‘serviço extra’ chegou. Havia um informador na sua organização e os traficantes colombianos queriam duas pessoas mortas: um informador e um agente da Drugs and Enforcement Agency (DEA), agência responsável pelo combate ao tráfico de droga nos Estados Unidos.
“A minha equipa trata disso… Estamos a falar do capitão [de um barco da organização] e do agente, ou só do capitão?”, perguntou “Rambo” num email. Ambos, diziam os traficantes. “Eles tratam dos dois ‘trabalhos’. Só precisam de boas ferramentas”, respondeu. Outro membro da equipa fez notar o entusiasmo ao seu chefe: “A sério, se aparecerem mais trabalhos destes avisa-me que eu trato disso. É divertido, na verdade para mim é divertido, adoro este trabalho”.
Mas o trabalho não era bem o que parecia. ‘Rambo’ e os seus parceiros, um conjunto de ex-militares norte-americanos, um polaco e um alemão, com experiência em terrenos hostis e formação em forças especiais, tinham sido denunciados pelo chefe de ‘Rambo’, um traficante de droga do Zimbabué. Os traficantes colombianos eram na verdade informadores da DEA. As conversas foram todas gravadas em áudio e vídeo e os emails todos registados.
A história complica-se porque ‘Rambo’, que há anos negociava droga em países com a Tailândia e as Filipinas, tinha sido contratado durante este período por um dos líderes de um gangue de motards na Tailândia chamado Outlaw Motorcycle Club, um esloveno de nome Alexander Lnu. Lnu trabalhava a mando de Ye Tiong Tan Lim, um cidadão chinês com residência em Hong Kong e nas Filipinas, e de Kelly Peralta, um filipino, ambos traficantes de droga.
Lim e Peralta tinham um esquema montado a partir de Hong Kong e das Filipinas para conseguir metanfetaminas de origem norte-coreana, com um grau de pureza sem igual no mercado – superior a 99% – e, juntamente com dois ingleses, também caíram numa emboscada da DEA, quando tentavam fazer um acordo para a venda de 100 quilos de metanfetaminas, providenciar o seu transporte para Nova Iorque através de navios cargueiros que passavam por África e a segurança do transporte, a cargo do gangue de motards de Alexander Lnu, com o apoio da equipa de Joseph ‘Rambo’ Hunter.
Os cinco deste grupo foram detidos e extraditados para os Estados Unidos para serem julgados por tráfico de droga. ‘Rambo’ também foi extraditado da Tailândia para os Estados Unidos, onde viria a ser condenado a 20 anos de prisão por crimes como tráfico de droga e conspiração para cometer homicídio.
Os longos tentáculos do polvo norte-coreano
Da Austrália à Venezuela, passando pelo Egito, Turquia, Bulgária, Filipinas, Japão, Tailândia, Índia, Noruega, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Rússia, Laos, Sudão, Angola, Moçambique, Irlanda, Alemanha, entre muitos outros.
Para satisfazer as necessidades financeiras do regime, numa altura em que o dinheiro escasseava, fruto de uma economia débil e da falta de apoio dos seus patronos – China e União Soviética – o regime começou a recorrer, ainda durante a década de 60, alternativas mais criativas.
Os campos de ópio que os japoneses tinham no território durante a ocupação, que terminou com o fim da Segunda Guerra Mundial, deram o mote para Kim Il-sung retomar a operação. De acordo com os testemunhos de vários desertores do regime, parte da produção agrícola nas zonas montanhosas era reservada para a produção de papoilas de ópio. Essas eram depois enviadas para fábricas do Estado, onde era produzida heroína (as instalações também eram usadas para produzir cocaína), sob a supervisão de especialistas tailandeses.
Os campos, na província de Hamhyong e Yangkang, junto à fronteira com a China e Rússia, estendiam-se até à costa. “Eu ia buscá-la [a droga] e transportava-a até ao porto, onde era levada até ao mar para ser descarregada em navios com destino a Singapura, Hong Kong, Camboja e Macau”, garante um desertor num testemunho perante o Congresso.
Durante anos, o regime produziu, exportou e distribuiu a droga. Mas a distribuição estava a atrair demasiada atenção e a criar problemas, porque a rede de diplomatas usada para facilitar os negócios – e mesmo cometer alguns destes crimes – começava a ser identificada e os seus membros apanhados.
Os primeiros grandes casos aconteceram no final da década de 70, quando mais de uma dezena de diplomatas, incluindo o embaixador na Noruega, foram expulsos da Suécia, Dinamarca, Finlândia, Egito e Malásia por tentarem fazer contrabando de mais de 4000 bebidas alcoólicas, quase 550 quilos de haxixe e de uma quantidade impressionante de cigarros. Outros três diplomatas foram detidos na Venezuela com 174 quilos de ópio. Na Índia um diplomata foi detido com 15 quilos de marijuana. No Laos, outro foi detido com 15 quilos de heroína.
Os casos sucediam-se e, nas décadas seguintes, as apreensões de droga feitas em navios do Estado norte-coreano, ou transportadas por diplomatas norte-coreanos, aumentaram dramaticamente. Em alguns casos, os carregamentos de heroína superavam os 100 quilos.
Mas o empreendimento norte-coreano mostrava-se resiliente e a sua capacidade de adaptação infinita. Os negócios ilícitos estavam sob a liderança de Kim Jong-il, filho do Presidente e futuro líder, numa estrutura do governo chamada Departamento 39, de acordo com as autoridades norte-americanas, sul-coreanas e japonesas. O mais novo dos Kim, na altura, estabeleceu quotas de produção de ópio, mobilizou estudantes para a colheita – como na altura da reconstrução – e diversificou o risco.
A Coreia do Norte continuaria a produzir heroína e cocaína, mas avançaria também para a produção de metanfetaminas – com grande procura na Ásia, em especial no Japão, na Coreia do Sul, na China e nas Filipinas, e com maior margem de lucro. A distribuição passaria a ser feita por grupos criminosos como as tríades chinesas, os Yazuka no Japão, e grupos criminosos em Taiwan e na Coreia do Sul. A droga era muitas vezes trocada em alto mar, em águas internacionais, e os grupos criminosos faziam a distribuição e venda nos respetivos países.
Diplomatas, oficiais do Estado, navios com bandeira norte-coreana (e chinesa) e até responsáveis das secretas eram detidos em flagrante a tentar traficar ópio, heroína e cocaína. Os casos registados eram maioritariamente na Ásia – China, Rússia, Japão e regiões chinesas como Macau (ainda português) e Hong Kong —, mas as drogas chegavam a pontos tão distantes como Estados Unidos, Alemanha, Etiópia e Zâmbia, de acordo com registos das autoridades de vários países.
Aproveitando a rede de diplomatas, os negócios continuaram a ser feitos noutras partes do mundo, o contrabando de tabaco continuou em força e outros negócios juntaram-se ao leque, como a fraude contra seguradoras, a produção de viagra falso, o contrabando de marfim, de animais exóticos e barras de ouro.
As metanfetaminas mostravam-se a grande aposta da nova era e ninguém as fazia como a Coreia do Norte, com uma pureza superior a 99%, graças às instalações e químicos profissionais recrutados para o efeito. Mostra disso, as apreensões que também eram de volumes cada vez maiores.
Em abril de 1999, as autoridades japonesas apreenderam 100 quilos de metanfetaminas transportadas num navio chinês em Sakaiminato, e detiveram dois japoneses-coreanos membros dos Yakuza e um membro de uma rede criminosa norte-coreana. Poucos dias depois, apreenderam mais 300 quilos na mesma cidade. Em outubro do mesmo ano, em Kagoshima, mais 565 quilos de metanfetaminas, desta vez num navio com a bandeira de Taiwan. Três pessoas foram detidas: um cidadão japonês, um chinês de Hong Kong e um taiwanês. As drogas eram destinadas a um grupo criminoso no Japão.
Ligações perigosas
Em 2002, três homens foram condenados a 19 anos de prisão por conspiração para a importação e distribuição de 27 milhões de dólares em notas falsas, a maior quantidade alguma vez apreendida. A qualidade das falsificações era tão alta que o próprio juiz admitiu que era difícil aos bancos perceberem a diferença. Entre estes três homens estavam dois ingleses e um arménio. Seria uma uma história como qualquer outra do género, não fosse o valor elevado e quem estava por detrás deste esquema.
O cidadão arménio era na verdade um ex-espião dos serviços secretos russos, o KGB. O cabecilha do esquema o conhecido membro de uma fação mais radical do Irish Republican Army (IRA), Sean Garland. As notas teriam sido criadas em impressoras oficiais, com tinta oficial, compradas na mesma fábrica na Suíça que as máquinas norte-americanas, mas produzidas pela Coreia do Norte.
O dinheiro chegava ao Reino Unido pela Irlanda do Norte, com a ajuda de Sean Garland. Os criminosos aproveitavam então as casas de câmbios e os bancos do Reino Unido para as trocar, antes de as enviar para Moscovo, de onde o ex-espião do KGB pagaria o dinheiro falso que comprava à Coreia do Norte.
As ligações da Coreia do Norte a grupos revolucionários – alguns deles considerados terroristas – não eram uma novidade para Pyongyang, que dava treino militar e táticas de guerrilha a um vasto leque de grupos desde os anos 60, em prol da causa revolucionária e anti-imperialista.
No caso do IRA, Pyongyang recebeu em 1988 um grupo de seis militantes do grupo, com objetivo de serem treinados em táticas de guerrilha, artes marciais e uso de armas, tudo isto debaixo de um regime de treino muito intenso. De acordo com um dos membros deste grupo, que contou a história a um jornalista da BBC anos mais tarde, os norte-coreanos pensavam que o IRA era um verdadeiro exército que esperava nas montanhas pela altura certa para expulsar os colonizadores britânicos.
Os parceiros neste empreendimento não eram o mais importante. Em janeiro de 1996, um terrorista do antigo Exército Vermelho do Japão – que sequestrou um voo da Japan Airlines para Pyongyang nos anos 70 – foi detido no Cambodja quando tentava lavar 3 milhões de dólares de notas falsas na Coreia do Norte em vários países asiáticos. Yoshimi Tanaka estava a viver na embaixada norte-coreana na capital do Cambodja e foi detido quando tentava sair do país com um passaporte diplomático da Coreia do Norte, num carro com matrícula diplomática da Coreia do Norte, na companhia de dois diplomatas norte-coreanos.
As supernotas norte-coreanas chegavam a várias partes do mundo. As autoridades registaram apreensões nas Filipinas, Sérvia, Etiópia, Peru, Alemanha, Macau, Líbano e até nos casinos de Las Vegas, nos Estados Unidos.
Em paralelo, a operação de contrabando de tabaco crescia de tal forma que, na década passada, as maiores tabaqueiras do mundo fizeram uma avaliação conjunta que apontava para uma perda de 200 milhões de dólares como os negócios paralelos dos norte-coreanos. Os cigarros, produzidos em fábricas do Estado, eram maioritariamente de duas marcas: a norte-americana Marlboro e a japonesa Mild Sevens.
Outros casos, como o da apreensão no Egito de 500 mil lamelas de Rohypnol – também conhecida como a droga da violação – na posse de dois diplomatas norte-coreanos destacados na Síria, ou de um diplomata na Hungria com 55 quilos do mesmo produto no aeroporto de Praga, mostravam um leque ainda mais vasto da rede de contrabando.
As apreensões de droga ligadas ao regime cairiam nos anos mais recentes, em parte pela pressão cada vez maior sobre a Coreia do Norte pelas Nações Unidas e pelo Ocidente, mas também por mérito da rede norte-coreana, que é cada vez mais profissional na prática e dissimulação destes crimes, que também deu mais um passo no desenvolvimento de novas atividades criminosas, como veremos mais à frente.