“Habituem-se”, “ó senhora, deixe-se”, “oh pá, ó meninos”, “posso-lhe perguntar porque é que ele [Carlos Moedas] não me telefonou a mim quando tive a minha casa inundada”. Em vários momentos diferentes, o primeiro-ministro tem disparado com apartes irritadiços — sobre alguns até já pediu desculpa — em que os mais críticos veem mesmo tiques autoritários. E nem só na oposição.
No PS essa preocupação vai ganhando força, com receios de que o tom que António Costa tem usado em entrevistas, debates parlamentares e declarações públicas possa transformar mesmo a maioria absoluta naquilo que o líder do partido prometeu que não seria — um “poder absoluto”. A falta de debate parlamentar ou a abertura para ouvir oposição alimentam a mesma ideia.
A leitura dos socialistas sobre a impaciência revelada por António Costa divide-se entre o “cansaço” de um “primeiro-ministro que habita num Falcon” e o “temperamento” que muitos já lhe conhecem e que está especialmente vincado nesta altura. “Ainda não parou de estar em crise”, justifica um socialista.
“Foram nove meses de inferno e de correria“, reconheceu o próprio primeiro-ministro na entrevista à revista Visão, onde o tom absolutista foi especialmente notado. E na noite de quinta-feira, no final de mais um longo Conselho Europeu, também foi o próprio que assumiu que estava “com sono” e “irritado” quando disparou com uma provocação a Carlos Moedas.
“Fiz um aparte irritado, peço desculpa”. Costa sobre farpa a Moedas por causa das cheias
Siza Vieira compara Costa a Cavaco Silva
A outra tese é menos benévola. “Não sei se é animal feroz. Mas está muito afirmativo”, atira um deputado da bancada da maioria que não é o único a fazer uma alusão ao “animal feroz” mais conhecido do PS, José Sócrates.
“Sócrates também caiu por aí, por não ter ninguém à volta que lhe dissesse que não”, aponta um socialista que acredita que o primeiro-ministro está muito isolado e “sem quem lhe diga que não — porque não quer — e sem tempo para descansar — porque não pode”.
Mas José Sócrates não é o único primeiro-ministro absoluto com que Costa é comparado – e aqui a crítica surge de onde (noutros tempos) menos se esperaria. Na TSF, o ex-ministro da Economia Pedro Siza Vieira, conhecido por ter integrado o círculo de amigos mais próximos de Costa, não hesitou em comparar o primeiro-ministro a Cavaco Silva.
Siza Vieira chegou mesmo a dizer que a pose “hiper confiante” de Costa transmite uma “sensação de desconforto” a quem lê a entrevista. O antigo ministro, que não saiu particularmente feliz do Governo, também criticou a forma como Costa se refere à oposição, própria de quem acha que “não vem dali nenhuma ameaça que possa pôr em causa a sua situação de poder”.
Mas foi mais longe, antecipando para o Governo de Costa – equipa que antes integrava – um destino próprio das tragédias gregas, graças à postura do primeiro-ministro. “Há muitos indícios que fazem lembrar [o tempo de Cavaco Silva]. Nas tragédias gregas, os que caíam na húbris – a tentação, o sentimento de quem se sentia infalível e punha em causa os deuses –, acabavam por não ter um final muito feliz”. Um socialista faz o mesmo vaticínio à era Costa: “Foi um bom tempo, mas está a passar”.
Há também dirigentes do partido que veem na atitude de Costa, sobretudo na entrevista publicada esta semana, apenas excesso de confiança. “Estava muito desprendido. Quando os estudos de opinião são simpáticos os políticos ficam assim”, atira um dirigente com ironia à mistura, preferindo apontar mais para as sondagens de popularidade que mantêm Costa como favorito, do que para as que aproximam o PSD do PS.
“Está solto”, comenta um socialista. “É um tom estranho“, regista outro deputado do PS especialmente impresionado com a tirada dirigida a Carlos Moedas desde Bruxelas e que fez António Costa vir pedir desculpa horas depois.
“É um estilo de quem teve uma grande vitória. Só espero que a acompanhar o estilo, haja reformas…”, atira outro socialista juntando-se à impaciência já manifestada no verão por alguns socialistas ao Observador quanto à ausência de reformas. “Costa tem empurrado com a barriga. Resultou durante quatro anos com a geringonça. Pode resultar com a maioria absoluta”, ironiza outro membro do partido em conversa com o Observador.
O estilo de sempre. Parte do PS desvaloriza palavras mais duras
A tensão que este registo vai criando preocupa os socialistas e até dentro do Executivo, onde o primeiro-ministro é já conhecido por ser muito interventivo e ter acessos de exigência que esta maioria absoluta não fez abrandar, antes pelo contrário. Quem com ele já trabalhou de perto, avisa que sempre foi assim, não vai parar, e que esta veia se revela mais em “momentos de tensão”. “Precisa de férias”, comenta outro socialista.
Mas na bancada socialista há também quem não se surpreenda: “Ele sempre falou assim. Não estou a ver qual a novidade.” O mesmo deputado disse mesmo ter visto na entrevista à Visão um político “com capacidade para liderar o país”.
O tom absolutista foi mais evidente na entrevista desta semana — onde até usou a famosa expressão de António Vitorino no começo da maioria Sócrates (“habituem-se”) –, mas não é de hoje que a atitude pós-maioria absoluta do primeiro-ministro tem sido notada. Na Assembleia da República, já por várias vezes a maioria foi confrontada com a promessa de Costa na noite eleitoral. “Uma maioria absoluta não é o poder absoluto, não é governar sozinho”, afirmou então o líder socialista.
No último processo orçamental, começou a desenhar-se a narrativa que marca o arranque desta maioria absoluta: oposição em peso – da esquerda à direita – a isolar o PS e a acusar os socialistas de usarem a maioria como “rolo compressor”.
A resposta dos socialistas passava por enumerar as medidas da oposição que iam deixando passar (muito mais do que a maioria de Passos Coelho, mas com pouco impacto orçamental) como provas do caráter dialogante da era Costa. Acabariam por votar o Orçamento do Estado ao lado do PAN e do Livre.
Debates quinzenais continuam sem solução
Depois viria a questão dos debates com o primeiro-ministro, que causa desconforto evidente na oposição – mas também em parte do PS, consciente de que o modelo que o partido propõe, que corta a capacidade de réplica aos deputados que debaterem com o primeiro-ministro, virá reavivar as críticas sobre a forma como o partido lida com a oposição e as acusações de estar a lidar com esta maioria como se esta lhe concedesse poder absoluto.
Na direção da bancada socialista atira-se a culpa para o comportamento do PSD, garantindo-se que os sociais democratas “não querem votar de outra maneira”, para manterem a “lenga lenga” do “rolo compressor”. Pelo sim pelo não, a votação voltou a ser adiada, desta vez para janeiro, com o líder parlamentar, Eurico Brilhante Dias, a garantir que trabalhará para chegar a acordos até ao fim – mas, segundo apurou o Observador, até agora sem fazer novas aproximações às posições da oposição.
E a opinião da liderança não é consensual entre os socialistas. “Não pode instalar-se a suspeita de que o PS quer diminuir a capacidade de escrutínio político do Parlamento. O direito de réplica é imprescindível”, comenta com o Observador fonte do partido, fazendo eco das opiniões que alguns colegas de partido assumiram publicamente, apesar de na reunião da bancada parlamentar socialista desta sexta-feira o assunto ter gerado um debate curto.
Fora das paredes do Parlamento, Francisco Assis afirmava esta sexta-feira, na Renascença, que o modelo de debates “não será boa solução” e defendia até a proposta que consta no projeto de revisão constitucional do PSD (garantir que mudanças no regimento parlamentar só podem ser feitas com uma maioria de dois terços dos deputados), uma posição que foi vista com agrado – e esperança – entre os sociais democratas,
Assis não foi o único a lamentar a falta de debate e discussão parlamentar. Em entrevista ao Observador, no programa Vichyssoise, ainda durante o verão, a ex-ministra Alexandra Leitão — outra antiga governante que saiu em rutura com António Costa — defendeu que tinha sido “um erro” acabar com os debates quinzenais: “Ganhamos com mais diálogo político na sede própria”.
Mas as críticas à forma como o PS gere a sua maioria são mais profundas e, mais uma vez, não chegam apenas da oposição, nem se cingem às declarações de Costa e à questão dos debates. Mais recentemente, num artigo de opinião publicado no Expresso, Leitão elogiava os esforços do PS para fechar os acordos de rendimentos com a concertação social e a função pública, mas avisava: “A celebração destes acordos tem como efeito um certo esvaziamento do Parlamento”.
E, se é “inevitável” que sobre as maiorias absolutas se instale “a sombra de uma certa prepotência”, continuava a antiga ministra, também é verdade que o Governo tem “privilegiado o diálogo com os parceiros sociais” – e não com “os parceiros que não tem encontrado, nem procurado, na Assembleia da República”.
A ex-governante rematava o mesmo artigo com um aviso claro: Portugal tem por base “uma democracia representativa e não corporativa” e o Parlamento tem de ver garantida “a centralidade que a Constituição e a democracia impõem” – “e isto responsabiliza tanto o Governo como os partidos da oposição”.
O recado ficava dado: para provar que dialoga, a maioria não pode olhar apenas para a concertação social – precisa de trabalhar no Parlamento para tentar assegurar alguns acordos mais plurais em tempos de maioria absoluta.
Na bancada socialista revela-se, no entanto, que a abertura de António Costa para ouvir os atuais protagonistas da oposição não tem sido a maior nesta era. A tentação inicial é sempre não abrir sequer a porta a esse diálogo, segundo contam alguns socialistas ao Observador, só mostrando essa disponibilidade num segundo momento. Menos tenso.