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O silêncio da Farfetch, que vigorava desde 28 de novembro, foi finalmente quebrado. O grupo sul-coreano Coupang, conhecido como a “Amazon coreana”, anunciou esta segunda-feira a intenção de comprar o negócio e todos os ativos da Farfetch Holdings. A poucos dias do Natal, a empresa criada por José Neves recebe no “sapatinho” a garantia de uma injeção de 500 milhões de dólares (458 milhões de euros) para enfrentar as dificuldades financeiras mais imediatas.
A compra da plataforma de moda de luxo e dos seus ativos vai ser feita através de uma parceria limitada, chamada Athena Topco LP e com sede no Delaware, em que entram a Coupang e a companhia de investimentos Greenoaks. Caberá à Athena Topco disponibilizar um empréstimo temporário à Farfetch, com uma taxa de juro anual de 12,5%.
Grupo sul-coreano Coupang anuncia planos para comprar Farfetch
No âmbito do acordo, a Farfetch deixará de ser uma empresa cotada em Nova Iorque, cinco anos após ter feito uma oferta pública inicial (IPO). Os últimos dias foram especialmente atribulados para a Farfetch: se em 2018 estreou-se em Wall Street com ações a 20 dólares, na última semana nunca conseguiu ficar acima de um dólar. Embora não sejam conhecidas as contas mais recentes da empresa – a apresentação foi cancelada a 28 de novembro – é dito pela Farfetch que, caso a venda não seja concluída, “há uma dúvida substancial da capacidade” da empresa para continuar a operar como aconteceu até aqui.
Também foi anunciado que quem tiver ações de classe A ou classe B da Farfetch não vai recuperar os investimentos que foram feitos. É esperado que, depois de a empresa sair de bolsa, seja liquidada. Caberá ao JP Morgan divulgar os vários ativos da empresa, em nome da Farfetch, eventualmente para serem estudadas possíveis vendas.
O anúncio da compra pela Coupang foi feito na primeira hora de negociação em Wall Street. Desde as 9h17 locais (14h17 em Lisboa) que as ações da empresa de José Neves estão suspensas. Na sexta-feira, fecharam no vermelho, a cotar nos 0,64 dólares.
Até agora, José Neves só é citado no comunicado da Coupang, onde destacou “as provas dadas e a profunda experiência” da companhia sul-coreana. “Estamos entusiasmados em fazer parceria com uma empresa tão respeitada que integra a Fortune 200 e que está comprometida em investir em inovações que transformam todos os aspetos da experiência de cliente da Farfetch.”
Quem é a Coupang, a criadora das “entregas foguetão”?
A Farfetch vai ser adquirida por uma empresa três anos mais nova, que em várias ocasiões já foi apelidada de “Amazon da Coreia”. É uma gigante de comércio online no país asiático, onde gosta de expressar a sua missão “como é que vivíamos antes sem a Coupang?”.
O império começou a ganhar forma pelas entregas no próprio dia. Nos primeiros anos, a companhia foi notícia por permitir aos atarefados trabalhadores de escritório coreanos fazer encomendas à noite e recebê-las nas primeiras horas do dia seguinte. O conceito ganhou nome e a empresa começou a ser associada a “entregas foguetão”, com a maioria dos clientes a receber os produtos em menos de 24 horas.
Depois das compras, veio a entrega de refeições, através da Coupang Eats; os pagamentos, com a Coupang Pay; e mais recentemente o entretenimento, através do lançamento do serviço de streaming Coupang Play.
A Coupang foi criada em 2010, em Seul, por Bom Kim mas atualmente está sediada em Seattle, nos EUA – curiosamente, a cidade onde nasceu o quartel-general da gigante de compras online criada por Jeff Bezos. Além da Coreia do Sul, opera também em Taiwan, em Singapura, na China e na Índia.
Bom Kim, o fundador e CEO da Coupang, nasceu em Seul, na Coreia do Sul, mas foi viver para os EUA com os pais quando ainda era criança. Concluiu uma licenciatura em artes e ciências na Universidade de Harvard. Voltou a Harvard para tirar uma especialização na área de negócios, que não chegou a concluir. Trabalhou em consultoria (tem no currículo passagens pelo Boston Consulting Group), mas transformou-se num empreendedor.
Em 2004, criou uma startup de media online nos EUA, chamada Vintage Media, que vendeu em 2009. Um ano mais tarde, regressou à Coreia e aproveitou para pôr em prática o que aprendeu com a sua startup norte-americana. Ao longo dos anos, foi conquistando apoios de peso para a Coupang, como o grupo SoftBank, a capital de risco Sequoia ou o gigante BlackRock.
A Coupang começou a dar nas vistas e a dar projeção internacional a Bom Kim, que aos 45 anos terá uma fortuna estimada de 2,9 mil milhões de dólares, segundo números da Forbes.
O tipo de negócio e a localização da sede não é a única semelhança entre a empresa coreana e a Amazon – também a Coupang é alvo de críticas devido às condições de trabalho dos seus funcionários. Em março de 2021, quando entrou em bolsa, as condições laborais foram uma nuvem negra a pairar no que, para Bom Kim, devia ser uma ocasião afortunada. De acordo com o Financial Times, só em 2020 houve registo de oito trabalhadores da Coupang que morreram por excesso de trabalho.
Em dezembro de 2022 a Coupang tinha 63 mil funcionários e era o terceiro maior empregador da Coreia do Sul, apenas ultrapassada pela Samsung (112.157 pessoas) e a fabricante automóvel Hyundai (68.837 funcionários).
O que quer a Coupang da Farfetch?
Nas entrelinhas do anúncio da empresa sul-coreana ficaram algumas pistas sobre o interesse da companhia no primeiro unicórnio com ADN português (uma empresa avaliada em mais de mil milhões de dólares).
A Coupang transmitiu que, com a compra da Farfetch, acredita que fica “posicionada como líder num mercado de 400 mil milhões de dólares do segmento de bens de luxo”. Atualmente, a Coupang não é o primeiro nome a ser associado a um portal de comércio de luxo – mais facilmente se pensa noutras opções de rivais da Farfetch, como a Net-a-Porter ou a alemã MyTheresa. A Coupang sugere que quer explorar essa área, notando que a Coreia do Sul “tem os maiores gastos per capita do mundo em bens pessoais de luxo”.
A companhia sul-coreana descreveu a empresa luso-britânica como “um marco no panorama de luxo”, que terá de se “voltar a dedicar a disponibilizar a experiência mais elevada às marcas mais exclusivas do mundo”.
Inicialmente, o principal negócio da Farfetch estava ligado ao marketplace com o mesmo nome, que tornou acessível que clientes em qualquer parte do mundo comprassem produtos de luxo sem sair de casa. Só mais tarde é que o negócio se diversificou até à disponibilização de tecnologia a marcas (a Farfetch Platform Solutions, FPS) e à aquisição de marcas (a New Guards Group ou a Stadium Goods).
Acordo com a Coupang dita fim do negócio com a Richemont
Pouco tempo depois de ser conhecido o negócio entre a Coupang e a Farfetch, foi posto um ponto final na relação cada vez mais distante entre a suíça Richemont e a empresa de José Neves.
A dona da Cartier e da Montblanc emitiu um comunicado aos seus investidores, onde explicou que o negócio com a Farfetch não vai avançar. A empresa luso-britânica tinha anunciado em agosto de 2022 a intenção de ficar com a participação de 47,5% no capital da Yoox Net-a-Porter (YNAP), que pertencia à Richemont.
Dados os planos da Coupang para comprar a Farfetch, foi anunciado que a “Richemont, Farfetch e a Symphony Global”, esta última o terceiro vértice do negócio, que representava o magnata Mohamed Alabbar, terminaram o acordo.
A Richemont transmitiu que “é razoável esperar que os 300 milhões de dólares de obrigações convertíveis emitidas” pela Farfetch em novembro de 2020 à Richemont “não sejam pagas”. A 30 de novembro, o valor destas obrigações representava 218 milhões de euros, indicou a companhia suíça.
E, tal como já tinha dito num comunicado no fim de novembro, quando surgiram as notícias sobre a saída de bolsa da Farfetch, a Richemont lembrou que “não tem obrigações financeiras para com a Farfetch”, reiterando que não tem planos para fazer empréstimos ou investir na companhia. Agora, o grupo suíço explicou que vai “reavaliar as opções para que a YNAP possa tirar partido dos seus pontos fortes e de uma potencial nova liderança”.
Mais uma vez, foi salientado que a YNAP não tinha adotado a tecnologia de plataforma eletrónica da Farfetch e “que continua a operar a sua própria tecnologia”. Também as várias marcas do grupo dispensaram a tecnologia desenvolvida pela empresa de José Neves.