A audição era incomum, ao juntar dois ministros para falar sobre o caso de corrupção na Defesa que uma tutela e o outro liderou até 2022. No centro de tudo, Marco Capitão Ferreira, figura que foi em crescendo na área até chegar a secretário de Estado e que acabou a demitir-se “com a PJ dentro de casa”, como fez questão de descrever André Ventura, do Chega. A sua contratação em 2019, como assessor da Direção-Geral de Recursos da Defesa, está envolta em suspeitas, entre elas a de um contrato feito à medida. E o ministro revelou ter sabido da intenção de contratar Capitão Ferreira para a função mesmo antes de ser consultado o mercado.
A dada altura da audição, na comissão Parlamentar de Defesa, o deputado do PSD Jorge Paulo de Oliveira perguntou ao atual ministro dos Negócios Estrangeiros se, quando estava na Defesa, recebeu um e-mail de Alberto Coelho, então diretor-Geral de Recursos da Defesa Nacional (DGRDN), a mostrar vontade de contratar Capitão Ferreira para assessorar a equipa de renegociação dos contratos de manutenção dos helicópteros EH-101. O ministro confirmou que o seu chefe de gabinete recebeu essa nota, mas que aquela informação não tinha de ser enviada e, no imediato, tentou sacudir responsabilidades relativamente ao que veio depois.
O deputado do PSD detalhou que esse e-mail foi enviado em fevereiro de 2019, mas que em março foi aberto um processo de consulta a três juristas que podiam ocupar o cargo para onde Coelho já tinha dito que queria Capitão meses antes. A sugestão era óbvia: de uma consulta feita à medida de Capitão Ferreira, que acabou por ser mesmo o escolhido. Na resposta, o ministro foi esquivo. Disse que o caso está em investigação, recusou-se a “especular” e garantiu que a responsabilidade “foi única e exclusivamente da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional e do seu diretor-geral, assim como os termos do contrato, seja a duração ou o valor”.
Cravinho confirmou a intenção prévia de Coelho em contratar Capitão, mas fez questão de se colocar à margem de qualquer negociação ou mesmo dos detalhes do processo de consulta: “O contrato não foi enviado pelo ministro nem pelo gabinete, não tenho mais nada a acrescentar.” Acusou mesmo o social-democrata de estar a entrar no “campo da insinuação” e de ter “desconhecimento da realidade do Ministério da Defesa”. “Se o ministro tivesse obrigação de policiar todos os contratos, não fazia mais nada”, atirou.
O contrato tinha uma duração máxima de 60 dias e acabou por não durar mais do que uma semana, mas o pagamento foi integral: 61 mil euros. Um valor que levou a oposição a comparar Capitão Ferreira ao futebolista Cristiano Ronaldo e João Félix.
A atual ministra também foi confrontada sobre o conhecimento que tinha deste trabalho de Capitão Ferreira quando o escolheu — uma opção que assumiu ser sua e baseada na experiência do ex-governante — para secretário de Estado da Defesa. Helena Carreiras garantiu nunca ter “detetado qualquer indício de que não agia no estrito cumprimento das suas competências e no respeito pela lei”.
Além disso, também Gomes Cravinho elogiou o currículo de Capitão Ferreira. “Ao entrar em funções, rapidamente me apercebi de que ele era uma das raras pessoas com conhecimento aprofundado nesta área muito especializada. A sua designação para as funções de presidente da idD [Portugal Defence] ficou a dever-se exclusivamente à sua trajetória académica e profissional, com uma estreita ligação às indústrias de defesa, e o exercício de funções de responsabilidade”, assegurou.
Sobre o momento da saída do seu secretário de Estado, tudo o que Helena Carreiras disse foi que ele “deu as explicações que eram necessárias naquele momento” e que não voltou a falar com Capitão Ferreira, sublinhando que o ex-governante “assumiu a responsabilidade política por ter sido constituído arguido”. “Se houver algo a investigar será investigado”, atirou, frisando que deve esperar-se “mais do que especular” e “dar opinião”. Esta foi uma linha de argumentação também usada por João Gomes Cravinho, que não se cansou de atirar às “insinuações” que dizia virem da oposição.
E na frente socialista, Francisco César acabou mesmo a resumir tudo a um “rolo compressor sobre a presunção de inocência”, com perguntas em que se “induz” a ideia de que Capitão Ferreira é culpado, queixou-se o socialista referindo-se a um caso que ainda está em investigação. Esta intervenção levou a oposição a insurgir-se: Rodrigo Saraiva apelidou Alberto Coelho de “dono disto tudo” e uma “espécie de inimputável”; Joana Mortágua fez questão de usar números para explicar o que está em causa: “Um dirigente responsável pela derrapagem de uma obra no hospital militar de dois milhões de euros e também 180 mil nas obras para a sede da holding com um conjunto de empresas suspeitas de tudo menos de coisas boas.”
Ministra atira reorganização da DGRDN para cima da mesa
O outro cartucho que o Governo socialista trazia como munição para esta audição era uma reorganização da Direção-Geral de Recursos da Defesa Nacional, cuja fusão em 2014 pela mão do PSD (era ministro Aguiar-Branco) classificou de “decisão cega” que representou “uma enorme sobrecarga para recursos humanos e criou riscos que importa mitigar”.
Apesar de não ter dado todos os detalhes, disse que era preciso corrigir “erros da troika” e reconheceu que é fundamental “mitigar riscos” resultantes da alteração anterior que representou uma “enorme sobrecarga sobre os recursos humanos e concentrou em poucos os poderes de direção” — em resumo, a ideia inverter “a fusão realizada no passado entre duas grandes direções-gerais, a de Pessoal e Recrutamento Militar”.
A reestruturação que Helena Carreiras quer levar a cabo tem como objetivo retomar “uma Direção e Controlo efetivos, ao nível dos serviços” em matérias como os recursos humanos, o desenvolvimento de capacidades militares e o património da Defesa Nacional”.
No seguimento do anúncio, o deputado do PCP João Dias ainda criticou o timing, sublinhando que há muito que havia avisos sobre o tema — mas Helena Carreiras acabou por defender que “há um processo de seguimento da lei de programação militar muito mais robusto do que havia” e assegurou que “a defesa funciona”. Porém, o deputado comunista também a tinha atacado por ter pedido as auditorias “a reboque da mediatização” — após a saída de Capitão Ferreira. A expressão de Helena Carreiras a abanar a cabeça em jeito de negação deixou claro que não concorda.
Cravinho autorizou negócio polémico na Defesa que envolve Marco Capitão Ferreira