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Crónica de um desacordo anunciado

O hífen, os acentos e as consoantes mudas poderão voltar a ser o que eram. Pedro Vieira aplaude os regressos ortográficos e lembra que há outros acordos mais importantes na língua portuguesa.

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Está a ver a utilidade daqueles conjuntos de fondue que a dada altura todos os agregados familiares portugueses foram obrigados a ter, por via matrimonial ou outra? Ou daquela app da bússola que vem sempre com os smartphones? Ou ainda a utilidade extrema do cargo de ministro da República nos Açores, entretanto substituído por um Representante? Pois. Em relação ao Acordo Ortográfico (AO) sinto o mesmo. Ultrapassam-me as questões académicas, políticas, económicas ou tão somente voluntariosas que levaram à sua concepção. Encolho os ombros ao nacionalismo e ao sentimento de posse da língua e não sei bem se sinto falta do “p” em Egito. O que sei é que quando escrevo “leitor, para para pensar um pouco neste assunto” quero dizer “pára”. Com acento.

A verdade é que nunca precisei de escrever respeitando o dito do Acordo que está mais ou menos em vigor. E quando o resultado final o exigia, contei sempre com a bondade de estranhos, como no eléctrico (com “c”) chamado desejo, e com a atenção e denodo dos revisores, essa profissão tão desprezada nos dias que correm. Por princípio nada me opõe à mudança, se houver uma lógica discernível por trás da mesma, mas esse não é o caso do AO. Aliás, a palavra Acordo está a ser usada de forma desadequada nesta questão, até porque estamos na presença, sim, da TO. A Trapalhada Ortográfica. Também conhecida como Trapalhada de Santa Engrácia (TSE).

De boas intenções está o Inferno cheio

A chamada TSE tem uma história longa, que vai pelo menos até 1990. Nessa altura Portugal abraçava toda uma nova modernidade proporcionada pela adesão recente à CEE. Numa vertigem de entusiasmo, estávamos dispostos a trocar tudo pelos euros da altura – marcos, francos, florins – inclusive a frota pesqueira ou as oliveiras que haveriam de fazer tanta falta.

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Agarrámo-nos à normalização (o tamanho dos pepinos, o comprimento dos preservativos) e nesse afã procurámos, aparentemente, uma espécie de padrão comum à escrita em português, regulamentando o património mais importante da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. A seguir ao petróleo angolano e brasileiro. E ao cacau de São Tomé. E àquelas espetadas de cabrito muito pequeninas oriundas de Timor-Leste. Ou será Timor Leste, sem hífen? Adiante.

E enquanto Angola ou Moçambique não o ratificarem de vez, sancionando a tal vocação universal da língua portuguesa, os outros países terão de limitar-se a ser espetadores (a sério, espetadores?) de um processo que até agora tem feito as delícias de grupos editoriais e pouco mais.

Referia-me à língua. Esse elo comum que mais tarde haveria de ligar-nos de forma fraterna ao português falado na Guiné Equatorial. Na altura o objectivo era unificar a ortografia entre todos, acabando com as diferenças entre o que se escrevia no Brasil e o que era posto no papel nos outros territórios, aumentando assim o “prestígio do português”, palavra dos promotores da TSE. A verdade é que o conteúdo desta Trapalhada nunca suscitou unanimidade entre académicos, escritores, filólogos, treinadores de bancada, cronistas, jornalistas, professores e políticos, empresários e publicistas.

Que a TSE é fundamental para a pujança económica da língua, um activo com mais de 200 milhões de utilizadores, dizem uns. Que a Trapalhada tem normas incompreensíveis como a supressão das consoantes mudas, agitam outros. Nos dias de hoje é impossível conhecer as reacções provocadas por acordos anteriores, mas pelo menos sabemos que não houve necessidade de fingir consensos ou de fazer petições online, que são quase sempre uma maçada vestida de inconsequência. Excepto no caso vertente.

Golpes de theatro

Até ao século XX, a escrita de português servia-se das suas bases latinas e gregas, sem qualquer Acordo ou TSE ao barulho. Acontece que em 1911, Portugal resolveu dotar a revolução republicana de uma revolução na escrita, aprovando um Formulário Ortográfico que o Brasil esnobou. Ou seja, ficámos a escrever de forma diferente, também na ortografia. É que a escrita dos dois lados do Atlântico teima em ser distinta, e bem, uma vez que a semântica é muito diferente, e essa não se normaliza por decreto.

Inconformados com as divergências, portugueses e brasileiros tentaram novo acordo em 1931, que viria a ser materializado em vocabulários ortográficos da língua portuguesa… diferentes. Portugal publicara o seu em vocabulário oficial em 1940 e o Brasil fizera o mesmo em 1943, registando-se diferenças que obrigaram a uma nova tentativa de acordo em 1945. Aqui no rectângulo adoptámos as novas regras acordadas no ano em que acabou a II Grande Guerra. Mas no Brasil foi tudo por água abaixo e mantiveram-se em vigor as normas adoptadas em 1943. O que significa que é mais fácil terminar um conflito intercontinental que pôs Churchill, Hitler e Estaline à chapada do que chegar a um consenso ortográfico.

Unidos venceremos?

Após décadas de salutar dissensão, a Academia das Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras lá encontraram uma plataforma comum de entendimento em 1990, que acabaria por materializar-se na TSE que ainda hoje provoca celeuma. Nessa altura, todos os sete países da CPLP assinaram o Acordo, juntando-se-lhes Timor em 2004, poucos anos depois da independência arrancada a pherros à Indonésia. Repare, caro leitor. Até a independência da antiga colónia portuguesa, dominada pela ditadura de Suharto desde 1975, demorou menos tempo a conseguir do que o AO a impor-se.

A desdita já dura há 27 anos e o fim não se adivinha próximo, o que se torna verdadeiramente engraçado se nos lembrarmos que o dito AO, tornado TSE, deveria ter entrado em vigor a 1 de Janeiro de 1994. Só que entretanto os vários países tinham coisas combinadas. De 1990 até hoje foram entretanto criados dois Protocolos Modificativos ao Acordo Ortográfico para tentar contornar a obrigação de ratificação por parte de todos os que o assinaram, debateu-se a legitimidade das Academias, abriu-se a boca de espanto com duplas grafias e voltaram a publicar-se várias versões desencontradas de vocabulários ortográficos, claro.

acordo ortográfico manifestação

A manifestação contra o Acordo Ortográfico, em Dezembro de 2015

Espelhando a harmonia na CPLP, instituição com a utilidade do já referido conjunto de fondue, há países que já têm AO em vigor e outros que nem por isso. E enquanto Angola ou Moçambique não o ratificarem de vez, sancionando a tal vocação universal da língua portuguesa, os outros países terão de limitar-se a ser espetadores (a sério, espetadores?) de um processo que até agora tem feito as delícias de grupos editoriais e pouco mais.

Por cá, o inconformismo em relação a um tratado evidentemente manco nunca perdeu o fulgor, somando-se encontros, conferências, cartas abertas e ameaças de mocada ao professor Malaca Casteleiro, paladino da TSE. A mim apoquentam-me pouco as nuances da grafia, pelo menos enquanto não houver multas em jogo, mas continuo à espera de uma justificação convincente que explique porque é que cor-de-rosa conserva o hífen mas cor de laranja não. Uma norma para as flores, outra para a fruta? E se a fruta for de dormir, como a do futebol, mantém-se o sinal gráfico horizontal ou todas as posições são permitidas?

Em Portugal, o Presidente da República quer reabrir o debate, demarcando-se de uma TSE assinada quando o seu antecessor era primeiro-ministro. E a própria Academia das Ciências falou recentemente na necessidade de ver o AO melhorado, tantas têm sido as incongruências e confusões apontadas a esta espécie de cadáver esquisito ortográfico. Na imprensa há jornais e revistas pró e anti-acordo e nos primeiros vemos alguns cronistas brindados com a frase de rodapé “fulano de tal escreve segundo a ANTIGA ortografia”, como se fulano usasse uma espécie de ortografia decrépita e partilhada com os visigodos de Alarico.

E o tal prestígio internacional de que a língua portuguesa poderia vir a gozar, bom, digamos que esse mesmo prestígio ficou um pouco amachucado depois da passadeira vermelha estendida a Teodoro Obiang. E não, “estoy mucho satisfecho” não pode ser considerado português, independentemente do primado da oralidade que o AO impõe à etimologia.

As melhorias

Ciente de que o AO está atolado num campo de batalha social, linguístico e político, a Academia das Ciências de Lisboa veio então a terreiro com o objectivo de pacificar algumas almas. Nesse sentido, a Academia aprovou um documento de aperfeiçoamento que propõe uma espécie de santíssima trindade de consolo ortográfico, defendendo o regresso de consoantes mudas, de acentos agudos e circunflexos e até do tão glosado hífen.

Acontece que a língua há-de continuar mais ou menos na mesma enquanto não houver, digamos, uma política cultural (sem hífen) que incentive traduções, leitorados e circulação de autores. Que promova a literatura e a descoberta mútua de poetas, ficcionista e ensaístas.

Na introdução ao documento, diz a Academia: “Conscientes de que o presente estudo poderá ser alvo de crítica, por contrariar, em certos pontos, a aplicação discricionária do AO90 que tem sido feita e por propor melhoramentos, sobretudo no que diz respeito à recolha de novas colheitas vocabulares, confiamos, ainda assim, que, desta forma, a Academia possa dar um forte contributo, imputado pelo seu dever estatutário, e avance com a sistematização de critérios e orientações, em prol de uma maior regularização e, por consequência, na defesa de um registo adequado à variante portuguesa”.

Uma coisa é certa, a Academia está consciente de que o estudo poderá ser alvo de crítica, o que só o torna mais coerente em sede de TSE. Ora, em que é que isto se materaliza? No regresso do “c” ao já citado espetador (uf) ou no resgatar do “p” cujo desaparecimento podia transfomar receção em recessão pela via da homofonia, o mesmo sucedendo em vocábulos como “corrector” (distinguindo-o de corretor).

No que toca aos acentos, o novo estudo propõe, por exemplo, o regresso do acento agudo a “pára” quando está em causa o verbo parar ou do acento circunflexo a “pôr”, evitando confusões com a preposição “por”, aconselhando ainda a distinção entre “pôde” e “pode”. Que diabo, sempre são tempos verbais diferentes. Já no que diz respeito ao hífen, a Academia defende que o dito é imprescindível em expressões como “maria-vai-com-as-outras”. Sintomático?

Epílogo

Por esta altura há muitos opositores a esfregarem as mãos de contentes, agradecendo o contributo para a confusão, a Associação dos Professores de Português atira-se à jugular da Academia e também temos outros tantos apoiantes da TSE a sonharem com uma grafia unificada que traga proveitos económicos e a tão propalada expansão da língua.

Acontece que a língua há-de continuar mais ou menos na mesma enquanto não houver, digamos, uma política cultural (sem hífen) que incentive traduções, leitorados e circulação de autores. Que promova a literatura e a descoberta mútua de poetas, ficcionista e ensaístas. No entretanto, celebrem-se as diferenças – pelo-me por um bom cafuné –, enterrem-se as acentuações facultativas e os anacronismos e devolva-se o trema à linguiça. Diz que ela lhe sente a falta.

Pedro Vieira é consultor da Booktailors, pivô de televisão e ilustrador relutante.

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