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Oito e meia da manhã. Sandro Bernardo entrou no posto territorial da GNR de Peniche, acompanhado pela mulher, Márcia Bernardo. Estava “sereno” segundo os agentes que registaram a participação do desaparecimento da sua filha. Um desaparecimento que ambos sabiam tratar-se de uma simulação para ocultar o que realmente acontecera. E o que realmente terão feito. Àquela hora já Valentina Fonseca, de nove anos, estava morta e o seu corpo tinha sido escondido num eucaliptal e tapado com ramos de arbustos.
A versão que contou aos agentes da GNR foi aquela que se espalhou pela população de Atougia da Baleia e em publicações no Facebook replicadas centenas de vezes: a de que a criança teria desaparecido na madrugada de quarta para quinta-feira. Que a tinha deitado às 23h00 e que depois a tinha ido aconchegar por volta das 1h30. E que de manhã Valentina já lá não estava. Mas Sandro Bernando deu também outra informação às autoridades: que não era a primeira vez que desaparecia e que, já na Páscoa do ano passado, tinha fugido da sua casa por ter saudades da mãe com quem vivia a maior parte do tempo — deixando no ar a hipótese de que, desta vez, poderia ter acontecido o mesmo. Mais: disse também que a menina seria sonâmbula.
A história dessa primeira fuga é verdadeira. Mas Valentina foi encontrada, com vida, por um agente da GNR que a viu sozinha na rua e a levou de volta a casa. Algo que fez com que fosse sinalizada pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Peniche. Os pais foram inquiridos e a conclusão a que se chegou — que fora um episódio isolado e que não havia sinais de maus-tratos — levou a que o processo fosse arquivado um mês depois, disse ao Observador fonte da CPCJ.
Desta vez tudo foi diferente. Valentina foi encontrada já sem vida, na berma de um eucaliptal na Serra D’el Rei, a cerca de oito quilómetros da casa do pai. O corpo, deixado debaixo de uns ramos de um pinheiro partido de propósito para o efeito, foi retirado do local no domingo de manhã — três dias depois de se terem iniciado as buscas. Três dias em que o comportamento de Sandro Bernando se foi alterando, mantendo-se ainda assim “sereno”, “tranquilo” e algo “displicente”, segundo quem o foi vendo por perto.
Entre a casa e o café, Sandro vagueou na rua durante as buscas. “Estava despreocupadíssimo”, mas atento aos movimentos das autoridades
Logo nesse primeiro dia do alerta do desaparecimento, a freguesia foi ‘invadida’ por mais de 600 pessoas — autoridades, civis e escuteiros — que se juntaram para procurar Valentina. Nenhuma delas era o pai. É certo que a mãe também não participou nas buscas. “Sentiu-se mal logo no primeiro dia. Desmaiou e foi para o hospital“, conta ao Observador uma vizinha e colega de Sandro, adiantando que, logo de seguida, voltou e permaneceu ali, quase sempre na rua onde a sua filha foi vista com vida pela última vez, a casa do pai, na R. D. Jerónimo de Ataíde. Talvez tenha ido ao Bombarral, onde vive, algumas vezes, para depois voltar e acompanhar as buscas até se confirmar o pior cenário.
Já a madrasta de Valentina saiu de casa nesse mesmo dia. Isolou-se na casa de um familiar, mesmo atrás da sua: foi para lá com os três filhos logo após ter participado o suposto desaparecimento e só saiu de lá diretamente para a Polícia Judiciária (PJ) de Leiria, onde acabaria por ficar detida.
Sandro Bernardo acabou por andar sozinho a vaguear na rua da sua casa, caminhando de óculos escuros entre a residência e a pastelaria “Forno da Vila”, a cerca de 100 metros — foi, aliás, lá que passou grande parte do tempo. “Andou por ali, mas nunca participou nas buscas. Via-o a andar para um lado e para o outro. Ia beber um café. Lá falava com um e com outro, muito calmo, muito sereno. Demasiado calmo — o que foi notado por muita gente”, conta ao Observador o presidente da Junta de Freguesia de Atouguia da Baleia, Afonso Clara, admitindo que ficou até “incomodado por perceber a forma displicente como ele se movimentava e interagia com as pessoas, numa situação daquelas, com a filha perdida”. “Para nós estava perdida, para ele não“, lamenta.
O comportamento de Sandro suscitou até críticas entre a população. No domingo, no dia em que foi detido por suspeitas de ter assassinado a filha em coautoria com a madrasta, ainda alguns moradores falavam disso:
— Estava muito calmo. Estava sempre aqui à porta da pastelaria, sempre aqui à porta da pastelaria…
— Eu vi-o a ele, muito à vontade.
Uma postura que contrastava com a da mãe de Valentina, “sofrida e angustiada”, diz o autarca. “Esteve aqui todos os dias. Todos os dias junto ao posto de operações. Fez muitos apelos no Facebook”, conta ao Observador uma vizinha, notando também aqui uma diferença: ao longo de todos os dias de buscas, Sandro Bernando nunca recorreu às redes sociais para divulgar o desaparecimento da filha.
Mas Sandro mostrou-se interessado na atividade da GNR. “Perguntava às autoridades como é que as buscas estavam a decorrer. Presumo que era para ter bem a noção do desenvolvimento que as coisas estavam a ter”. Em conferência de imprensa, o capitão Diogo Morgado, da GNR das Caldas da Rainha, revelou que o pai foi algumas vezes ao posto de operações para “obter informações sobre a atividade, sobre o que se estava a fazer”. Deu “pistas” que foram recolhidas e analisadas. Mas essas pistas acabariam por ser contraditórias umas com as outras e por se virar contra ele.
As contradições sobre o sonambulismo, a falta de pormenores no discurso e a história do aconchegar os lençóis
Na tarde de quinta-feira, o autarca sentiu a necessidade de falar com Sandro para lhe dar uma palavra de apoio e detetou, logo ali, uma alteração na história. “Puxei-o à parte para lhe fazer duas ou três questões. Perguntei-lhe como é que a menina tinha saído e ele contou aquilo que já se sabia. E perguntei se a menina era sonâmbula e se teria descido as escadas assim”, conta Afonso Clara. Sandro, contrariando aquilo que tinha dito no momento da participação do desaparecimento, terá respondido: “Não, não é nada sonâmbula. Isso deve ser um mal-entendido. A menina não é sonâmbula”.
Foi nesse dia que o pai de Valentina foi ouvido pela PJ pela primeira vez. Na sexta-feira de manhã, as autoridades entraram na casa para fazerem perícias no local onde a criança tinha sido vista pela última vez. E também nesse dia voltou a ser ouvido. No sábado, quando o caso já começava a atrair cada vez mais a atenção da população e dos jornalistas, as buscas continuaram e Sandro deixou de estar tão calmo para começar a mostrar sinais de nervosismo. E foi ouvido pela terceira vez pelos inspetores da PJ que notaram que o homem de 32 anos estava mais inquieto do que o habitual pela noite dentro.
“É natural falar-se várias vezes e que haja um contacto frequente e próximo com a família pelo menos na fase em que os contornos do caso estão mal definidos”, conta ao Observador fonte da PJ, adiantando que os investigadores, ao ouvirem a sua versão dos factos, se focaram em pormenores: os chinelos que a menina levava calçados eram havaianas ou de outro tipo? E o casaco era azul claro ou escuro? Na noite em causa estava frio ou calor? Por que é que foi ao quarto aconchegar a filha? Foi exatamente nesta resposta que o pai terá escorregado, sem saber o que responder, para depois introduzir outros elementos na história.
Não terá confessado que matou a própria filha, mas acabou por dar informações à polícia sobre o local onde a terá abandonado. “Conseguimos informações que foram suficientes para chegarmos sozinhos ao sítio onde estava o corpo. O que não quer dizer que nos tenha sido dito expressamente onde: recolhemos alguma informação que, cruzada com outra que já tínhamos, nos conduziu para a localização do corpo. E depois a localização do corpo deu-nos informação adicional que permitiu fazer mais diligências com os dois suspeitos”, explica ainda ao Observador a mesma fonte da PJ.
Cabisbaixo, máscara na cara e capuz enfiado na cabeça. Sandro funcionou como um robô a mostrar à polícia a sua versão dos factos
Parte dessas “diligências” puderam ser vistas por todos os que se dirigiram ao eucaliptal onde o corpo de Valentina foi deixado. Sandro e Márcia Bernardo foram detidos na manhã de domingo por suspeitas dos crimes de homicídio e profanação de cadáver e, nessa tarde, fizeram a reconstituição dos factos ou, pelo menos, da sua versão dos factos. Ou seja, mostraram aos investigadores como é que os crimes teriam acontecido.
Primeiro Sandro. Chegou à sua casa — o alegado local do crime — por volta das 17h00 de domingo. Movimentou-se seguindo estritamente as ordens dos investigadores. Aguardava um sinal para sair do carro e, até, para dar um passo. Depois, dirigiu-se para o eucaliptal no carro da PJ: sentando no banco de trás, escondia a cabeça enfiando o capuz para se esconder da população que lhe gritava insultos. Lá chegado, entrou eucaliptal adentro, cabisbaixo e ombros descaídos. Entre o arvoredo e sob o olhar atento dos investigadores, ia levantando no ar e pondo no chão ramos de uma árvore, numa imitação do que fizera na realidade.
As 72 horas de buscas por Valentina: o crime e a investigação, passo a passo
Depois voltou para a PJ de Leiria onde está detido e deu vez à mulher, madrasta de Valentina. Também ela se dirigiu à casa e ao eucaliptal para reconstituir os factos. Fizeram cada um a reconstituição do crime individualmente. Aliás, foram separados a partir do momento em que começaram a ser interrogados (na noite de sábado e madrugada de domingo) — para evitar que pudessem, entre eles, combinar o que diriam aos inspetores.
Enquanto decorriam as diligências, a população ia-se questionando. “Não me posso esquecer que ontem à noite falei com ele ali ao pé daquele poste onde foram agora pôr flores. Perguntei-lhe como é que ele se estava a aguentar e ele encolheu os ombros”, diz uma vizinha ao Observador. Falou com ele às 23h00 de sábado: na manhã seguinte seria detido.
Ainda pergunta porquê. Mas, dois dias depois, a população de Atouguia da Baleia já sabe o como: o resultado preliminar da autópsia à criança aponta para uma morte violenta, com lesões em vários locais, incluindo na cabeça, e indícios de asfixia. No entanto, por ser um relatório preliminar, não é possível ainda dizer se alguma destas agressões resultou na morte ou as duas situações em simultâneo.
Esta terça-feira, o casal vai ser presente a um juiz a quem podem decidir prestar declarações e que vai decidir quais as medidas de coação a aplicar. Pelos crimes que estão indiciados Sandro e Márcia arriscam a pena máxima de 25 anos de prisão. Uma pena que pode, no entanto, ser diferente para os dois já que, como disse uma fonte ligada à investigação ao Observador, ambos terão responsabilidade em “graus diferentes” no alegado crime.