É esta a frase chave do filme “O Feitiço de Tempo” (“Groundhog Day”, no original): “Phil Connors está a viver a vida como se não houvesse amanhã, porque não há”. Em 1993, o tal Phil Connors era interpretado por Bill Murray, num filme que acompanhava um jornalista meteorológico que acorda sempre no mesmo dia e vive as mesmas situações, outra vez e outra e outra vez. Realizado por Harold Ramis (“Caddyshack”, “Caça-Fantasmas” ou “Uma Questão de Nervos”), “O Feitiço do Tempo” transformou-se num clássico da comédia e num dos momentos maiores da carreira de Bill Murray — ele que passa os dias em repetição a tentar conquistar o coração de Rita, interpretada por Andie MacDowell.
[O trailer de “O Feitiço do Tempo”:]
Esta quarta-feira, dia 1, o filme pode ser visto no cinema Nimas, em Lisboa, numa sessão dupla, às 21h30 e às 23h30 — é mais uma data das Sessões de Culto, com seleção de Filipe Melo. E quinta, dia 2, celebra-se — de facto — o Dia da Marmota nos EUA. A data é especial porque é neste dia que, em muitas localidades americanas, uma marmota escolhida de acordo com critérios muito especiais sai da da sua toca para apreciar o tempo. Se estiver nublado, o animal deixa-se ficar e ficamos certos de que a primavera vai chegar mais cedo. Se estiver sol, a marmota foge e volta rapidamente para casa (supostamente porque assusta-se com a própria sombra). Isso significa que teremos mais seis semanas de inverno à séria.
Danny Rubin pegou nesta tradição para contar uma história que há muito queria ver no cinema: a de um dia que não acaba e de alguém que de repente é imortal. Tão existencial como humorístico, o filme fez escola e Rubin (que adapatou o argumento ao cinema em conjunto com Ramis, para depois ganharem um BAFTA pelo Melhor Argumento Original) chegou mesmo a escrever um livro sobre o seu trabalho em “O Feitiço do Tempo”.
Falámos com ele ao telefone. Disse-nos que está sempre disponível para regressar ao filme de 1993 e perguntou também se ainda há bilhetes para as sessões do Nimas. Dissemos-lhe que aparecesse. “Achas, Diego?”. Não é Diego, é Tiago. Mas tudo bem, é um engano que se repete.
Como surgiu a história do “Feitiço do Tempo”?
De um processo normal, durante uma altura em que estava à procura de histórias que pudessem ser transformadas em filmes e que pudessem ser divertidas de escrever. Esta era uma das ideias que tinha, nem sequer era a primeira em que estava a trabalhar, nessa altura tinha umas outras duas, talvez, que para mim eram prioritárias. Mas parei quando me lembrei que seria realmente interessante contar a história de alguém que vivesse para sempre. Que tipo de vida seria a de alguém imortal, como é que mudariam, como seria crescer assim? E pareceu-me de imediato uma ideia difícil de concretizar.
Como é que resolveu esse dilema?
Cruzar a história com outra ideia mais antiga: a de alguém que vivia sempre o mesmo dia, uma e outra vez. Ambas falavam da mesma questão: uma vida infinita, em que o tempo deixa de ser uma linha reta mas passa a ser um círculo. O que não é assim tão disparatado porque todos nós, apesar de não vivermos sempre o mesmo dia como acontece com o protagonista do filme, sentimos muitas vezes que estamos presos no tempo, que vivemos numa espécie de repetição. Além disso, pareceu-me muito divertido tentar perceber o que pode uma pessoa fazer quando já tem informação sobre o futuro.
Onde é que o Dia da Marmota se cruza com tudo isto?
Bom, isso aconteceu quando já estava a escrever a história. Uma das coisas que tive de decidir foi o dia em que aquilo ia acontecer, qual a data que seria repetida vezes sem conta. Pensei que podia ser o aniversário de alguém, ou então o dia 29 de fevereiro, que é meio mágico. Abri o calendário e o primeiro feriado que vi surgia dois dias depois, a 2 de fevereiro: o Dia da Marmota. Perfeito, ótima ideia. Sabia que havia uma cerimónia numa terra pequena e que alguém que apareça de fora pode aborrecer-se com muita facilidade. Tudo isso era ideal. Mas quem poderia ser essa pessoa? Um jornalista, a fazer uma reportagem sobre as festividades.
Quando é que Harold Ramis decide realizar o filme?
Escrevi o argumento sozinho e depois tentei vendê-lo. As pessoas gostaram muito do que escrevi e consegui vários trabalhos por causa desse argumento. Mas não havia gente interessada em transformar aquela história em filme. Fui trabalhando no que conseguia arranjar até que a dada altura o Harold leu o argumento e decidiu que queria fazer um filme. E quis fazer um filme de acordo com o estilo dele, mantendo a imagem que ele já tinha usado em filmes anteriores. Depois ajudou-me a adaptar o argumento para que pudesse ser filmado.
Punxsutawney, na Pensilvânia, acolhe uma das mais populares celebrações do Dia da Marmota e é lá que tudo acontece. Foram a Punxsutawney?
Para escrever a história devo confessar que não fiz muita pesquisa, limitei-me a fazer alguns telefonemas, fiz perguntas. Pouco antes de começarmos a rodar o filme, o Bill Murray ligou-me e diz-me “Danny, acho que devíamos ir a Punxsatawney”. Fomos os dois, vimos a cerimónia e a partir daí acabei por mudar muitas coisas no filme, tive novas ideias para algumas cenas, por exemplo a cena do leilão de solteiros, a das esculturas de gelo… percebi a cidade, como funcionava, como as pessoas da própria cidade entendiam aquela tradição da marmota como algo meio tolo mas, ainda assim, mantinham-na, com toda a seriedade possível. Um dos meus grandes cuidados foi mesmo o de não gozar com as pessoas daquela terra. Pelo contrário, procurei celebrar a sabedoria delas e a forma como viviam a terra que construíram.
Ainda não sabia que Bill Murray seria o protagonista quando escreveu a história…
Quando comecei a trocar ideias com o Harold Ramis sobre uma adaptação ao cinema, uma das questões que ele me colocou foi “quem é que poderia interpretar o papel de Phil Connors?”. Disse que imaginava uma espécie de Jimmy Stewart mais novo. Mas o Harold já tinha trabalhado com o Bill e sabia que ele era ideal para o papel.
[quantos dias passa Phil Connors preso no mesmo dia?]
https://www.youtube.com/watch?v=HYAx9RX1OmY
Quando o filme saiu, foi um sucesso?
Foi um sucesso financeiro, pelo menos isso, fez muito dinheiro para o estúdio nesse ano [a Columbia Pictures]. Mas as críticas não foram unânimes. A maioria dizia que era uma comédia boa de sábado à tarde com o Bill Murray. Na altura o Roger Ebert deu-lhe duas estrelas e meia, com um texto pouco simpático, ao jeito dele. Dez anos mais tarde escreveu uma nova versão da crítica, dizendo que era um filme muito bom. Enfim, eu e o Harold tínhamos a certeza de que era um filme muito bom. Não sabíamos que tipo de relação ia estabelecer com as pessoas, muito menos esta que acabou por estabelecer.
E porque é que isso aconteceu?
Porque é um filme que de alguma maneira deixa um sentimento de força, esperança e olhar positivo sobre a vida. É um filme que vai contra o cinismo com que muitas vezes encaramos os dias. Porque consegue de facto reflectir algo que todos sentimos. E depois, aquele simples mas importantíssimo aspecto: Phil consegue sair daquela prisão do tempo e dar seguimento à vida e todo o poder que é preciso para o conseguir depende só dele. Quem vê o filme percebe que não vale a pena estar à espera que as coisas mudem, temos nós que mudar as coisas, temos que nos mudar a nós próprios para conseguirmos mudar o nosso mundo. Ver isso numa história divertida é uma conjugação difícil de superar.
Tem uma cena favorita?
É difícil… mas talvez a ideia do Phil em seduzir a Rita, toda a sequência em que ele vai reunindo informação sobre ela de cada vez que o mesmo dia se repete. Foi uma das primeiras coisas em que pensei quando tive esta ideia e sabia que podia resultar muito bem. E resultou. Nunca tinha visto nada assim e quando vi o resultado final… ainda hoje fico espantado.
Porque é que a preocupação de Phil foi conquistar a Rita e não outra? Por exemplo, enriquecer estupidamente?
Bom, ele fica rico, mas só nesse dia. Mas o romance surge como um sinal para quem está a ver o filme, um sinal da transformação de Phil. Ele tornou-se amável. E era essa a melhor maneira de mostrar a mudança dele, de transformar o protagonista. Como é que chegamos à conclusão que ele deixou de ser um tipo insuportável, como é que sabemos que ele mudou o suficiente para que a vida possa avançar? Com romance. Optei pela pessoa que não o conhecia e que se apaixona por ele num só dia. Porque o coração consegue ver o que realmente interessa.
Quando o Phil acorda, todas as manhãs no mesmo dia, à mesma hora, acorda ao som de “I Got You Babe”, de Sonny & Cher. Foi ideia sua?
Sim. Queria que ele acordasse sempre ao som de uma canção alegre, feita de amor e esperança, uma coisa pop que toda a gente gostasse. Ao mesmo tempo, queria que fosse uma canção que, depois de ouvida muitas vezes, nos possa enervar. E essa pode.
[todas as vezes que Phil Connors acorda ao som de “I Got You Babe”:]
Não é a história mais tradicional para um filme produzido por um grande estúdio. Tiveram dificuldades em manter o argumento?
O estúdio queria uma forma concreta para Phil entrar naquele loop temporal, queriam uma espécie de mecanismo. E eu lutei muito contra isso, para que não fosse assim. Isso seria fazer um filme muito mais trivial. O filme e a situação. Quando não sabemos como ele ficou preso, isso fica mais próximo daquilo que nos pode acontecer. É mais fácil relacionar-mo-nos com essa ideia e para mim, como argumentista, é muito mais interessante. Se existisse uma máquina do tempo, um buraco negro ou uma maldição, o filme teria sido sobre isso, sobre como se meteu nisso e como vai sair. Seria sobre o processo e não sobre ele. Foi uma batalha difícil mas conseguimos ganhar. Mas é normal: Hollywood gosta de trabalhar ideias que as pessoas já conhecem.
Essa relação é complicada, entre quem faz o filme e quem o paga?
Será sempre. Escrever argumentos para Hollywood é uma arte comercial. Não me importo de viver essa relação, mas haverá sempre tensão entre quem cede e quem exige, haverá sempre limites para ambos os lados, entre o artista e quem paga. Quando esta diplomacia não resulta é quando acontecem as más decisões que geram maus filmes. Nesta situação, os representantes do estúdio estavam a trabalhar de boa fé, por isso foi um processo criativo.
Escreveu um livro sobre “O Feitiço do Tempo”. Porquê?
Por um lado porque muita gente me pergunta coisas sobre o filme. Não me importo, de todo. E também foi uma forma de fazer uma viragem no meu percurso, como se fosse um balanço de tudo aquilo. Nem sequer fiz muito para o promover, só queria que existisse.
Sente-se prisioneiro do filme?
Já houve dias assim, confesso. Mas é algo muito mais positivo do que negativo, não há comparação possível entre as duas realidades. Neste momento estou em Nova Iorque a trabalhar no musical da Broadway [onde se estreia a 17 de abril]. Estou aqui por causa da marmota, por isso só tenho de agradecer.
O que aconteceu a Punxsutawney depois do filme?
Turistas e mais turistas… diria que estão em dívida para connosco. A cerimónia que vi com o Bill Murray, naquela altura, tinha alguma centenas de pessoas, muitos estudantes universitários bem bebidos. Depois disso cresceu. E assim continua.