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Portrait Of Dante Alighieri (1265-1321)
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O italiano Dante nasceu em Florença, em 1265, e morreu em setembro de 1321, em Ravenna

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O italiano Dante nasceu em Florença, em 1265, e morreu em setembro de 1321, em Ravenna

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Dante Alighieri: da paixão exacerbada aos 9 anos ao exílio perpétuo, a herança do homem que foi ao inferno e abriu a porta ao Humanismo

700 após a morte do autor de "Divina Comédia", data que é assinalada com uma exposição na Fundação Calouste Gulbenkian, um colóquio e novos livros, qual a herança que hoje lhe reconhecemos?

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Saber enciclopédico, poeta genial, grande fundador da língua italiana, impulsionador da cultura para todos, empenhado em levar a metafísica ao homem comum, defensor da divisão entre o poder político e o poder espiritual, profundamente católico, observador exímio, político ativo, patrono da liberdade, filósofo, amante da astronomia e da geografia, da teologia, da história e da mitologia, espírito fervoroso, conhecedor da Antiguidade Clássica, humanista. É difícil descrever Dante Alighieri em poucas palavras. O homem que nos desenhou o inferno, o purgatório e o paraíso na Divina Comédia era um ser humano agigantado pelo conhecimento, os interesses académicos e a intensa reflexão sobre a condição terrena. 700 anos após a sua morte, ainda grita os caminhos da redenção e os dogmas da punição num julgamento que será de cada homem em cada esquina do universo. O pecado e a culpa, o bem e o mal, o certo e o errado, velhas questões para as quais ainda procuramos respostas.

Portugal prepara-se para celebrar a data, a morte d’il sommo poeta, com um conjunto de atividades com início dia 24 com a exposição “Visões de Dante. O inferno segundo Botticelli”, a inaugurar na Fundação Gulbenkian, em Lisboa. Junta-se um colóquio internacional e vários lançamentos de livros.

Mas é lá, na Gulbenkian, que um rio de sangue a ferver engole pecadores e danados, seres que sempre que tentam vir à tona são alvejados pelas setas dos centauros que nas margens os obrigam ao afogamento. A imagem criada por Sandro Botticelli para ilustrar o canto XII da grande “Divina Comédia” dá corpo a uma galeria dos horrores que se estende na obra de Dante a geografias mais profundas, onde os vários tipos humanos, comportamentos e desvios são descritos com acutilância. Esta é uma imagem do “Inferno”, o primeiro ponto de paragem da grande viagem ao mundo além-túmulo.

A primeira página da impressão original de "A Divida Comédia", de 1472, 150 anos depois de ter sido finalizada

Muitas mais ditam a natureza humana que Dante fez atravessar a cultura ocidental ao longo dos séculos. De resto, é essa condição do homem, que espelha atos e consequências, que atrai a curiosidade dos leitores e dos críticos, leigos e académicos, poetas e artistas. Dante é em si mesmo o protagonista do texto que narra e que o fez chegar até hoje como o maior dos poetas italianos.

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O mundo pagão na cultura clássica

Com data de nascimento incerta, algures entre 21 de maio e 20 de junho de 1265, em Florença, Dante é filho de uma família burguesa da cidade-estado mais disputada politicamente. Uma formação assente na religião, nas ciências e na palavra marca cedo o seu perfil. A paixão exacerbada por Beatriz Portinari aos nove anos de idade define a sua literatura que desponta com Vita Nuova, um conjunto de poemas curtos dedicados à amada que no fim da sua vida o salvará, facilitando-lhe a entrada no paraíso e a visão de Deus em Divina Comédia.

É um jovem politizado, desde logo por um pai empenhado no governo de Florença, que se exalta nos conflitos militares e nas guerrilhas ideológicas. Defende a ideia de uma divisão entre o poder político e o poder espiritual e ataca sucessivamente um papado avesso a delimitações de influências. É Bonifácio VIII que o retém em Roma quando chefia a delegação do seu partido e o impede de voltar à cidade natal, em 1302. Considerado corrupto no desempenho de um cargo político, é condenado ao exílio perpétuo e a uma multa avultada, perdendo todos os recursos económicos.

A fogueira como destino caso regresse a Florença dita uma verdadeira tragédia na sua vida. Os seus últimos 20 anos serão o reflexo de “uma profunda crise pessoal”, como afirma Jorge Vaz de Carvalho”, tradutor da Divina Comédia que a Imprensa Nacional lançará no início de outubro. “Ele vai andar de corte em corte com o papel, a tinta e a pena debaixo do braço, longe da mulher e dos filhos”. A esmola dos grandes senhores passa a ser o seu meio de subsistência a par da proteção dos poderosos, o que lhe permite fazer alguns trabalhos diplomáticos. Sem segurança nenhuma, a solidão será tudo o que lhe resta em cidades como Verona, Lucca ou Ravena, onde morre a 14 de setembro de 1321, no mesmo ano em que termina o “Paraíso”, o terceiro livro da sua Comédia, que já circulava pela península itálica e se tornava um verdadeiro sucesso com direito a leituras públicas em Florença. A fama de grande poeta ainda lhe anima os últimos dias, num reconhecimento sentido entre populares e intelectuais, apesar da recusa da Igreja em aceitá-la.

“Considerado o homem da Idade Média que opera a abertura para a Renascença”, diz a professora de Teologia Teresa Bartolomei, Dante é aquele que vai buscar à cultura clássica o mundo pagão “como fonte de humanismo imprescindível e que tem que ser reconhecido como tal”.

No final de contas, a ideia que sempre defendeu ao longo da vida e que melhor expôs em Convívio, outra das suas obras menores, vingava com estrondo: a cultura deve ser para todos, “incluindo as mulheres”, diz à época, e só a língua vernácula chega ao povo, explica em “De Vulgari Eloquentia”. Daí ter propositadamente escrito a sua obra-prima em dialeto toscano, fundando as bases da língua italiana que hoje conhecemos. Isso explica por que é que a Divina Comédia tenha sido usada ao longo dos séculos, sobretudo no XIX, como um “monumento à união italiana”. De resto, esclarece Jorge Vaz de Carvalho, o texto da Comédia é a única obra medieval que ainda hoje é linguisticamente viva. “Ele transformou o simples falar numa língua, transformou uma fala regional numa língua nacional. O poeta passa a ideia de que a identidade de um povo se sustenta essencialmente na afirmação cultural, que começa por ser uma afirmação linguística. Essa é a grande lição de Dante”, avança o também professor de Português na Universidade Católica. Já Teresa Bartolomei, professora de Teologia na mesma universidade, frisa a capacidade que o autor tem em ultrapassar a divisão entre “o estilo trágico e o estilo cómico”, quando o primeiro correspondia ao latim e o segundo ao dialeto regional. “Uma mistura de registos assente também na utilização, ao mesmo nível, do humilde e do sublime, permitindo que uma pessoa do povo possa ser santa e um rei um danado execrável”, revela ainda a professora. “Só assim se consegue dar corpo à complexidade inerente ao homem”, continua. Lado a lado, na obra de Dante, surgem figuras mitológicas e contemporâneos do autor, homens do povo, políticos, eclesiásticos, personagens bíblicas, seres oriundos de universos culturais muito diferentes.

“Ele não aceita compartimentos fechados. É como se hoje em dia pusesse o Ronaldo a falar com Aquiles. Ou um rapper a cantar o texto. Dante é, de facto, um grande criador de geografias mentais e espirituais.”

Este homem, “que tinha a ambição de dizer que a cultura tinha de dar uma resposta global, um intelectual que não se afastava da realidade e da vida pública e acreditava tanto na partilha do saber, como na cultura como protagonista do crescimento da sociedade”, como explica Teresa Bartolomei, ganhou o calo do mundo entre homens e mulheres, pobres e ricos, aristocratas e plebeus, cidadãos e camponeses, na guerra e na atividade política, nos livros e nos discursos (recorde-se os do radical Savonarola, como chama a atenção o curador da exposição da Gulbenkian, João Carvalho Dias), em privado e em público, entre artistas e poetas. Uma experiência de vida em que pegou para “falar como poucos da natureza humana”, diz João Figueiredo, professor de literatura na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.

Illustration to the Divine Comedy by Dante Alighieri, 1480-1490. Artist: Botticelli, Sandro (1445-1510)

Uma das ilustrações para "A Divina Comédia" assinadas por Sandro Botticelli, obra que também vai estar em destaque no ciclo da Gulbenkian

Heritage Images/Getty Images

“Condensar esse saber na sua obra poética” foi o desafio que agarrou a partir do seu “envolvimento político e ético” na sociedade florentina. E, de facto, a poesia que escreve não deixa de fora as grandes questões éticas e espirituais analisadas à luz da política e enquanto pensador. Veja-se o mal e o bem, ou a vida e a morte. No fundo, o “retomar da tradição clássica da tragédia grega, que fala a todos sobre as questões vitais da sociedade”, continua Teresa Bartolomei. Para trás ficava a sua ideia de que, ao comungar do poder político e espiritual a um só tempo, o Papa “prostitui” a Igreja e torna-se ele próprio corrupto. “Era preciso que a autoridade papal usurpadora voltasse a ter uma iminência espiritual que merecesse a confiança religiosa. Enquanto a autoridade política devia residir na figura do imperador de forma a terminar com as disputas entre nobres e cidades rivais”, explica Jorge Vaz de Carvalho. De Monarchia, o tratado político de Dante, destaca precisamente essa ideia. Não admira que seja considerado um livro herético e que seja queimado na fogueira, tendo estado na lista dos livros proibidos durante muitos séculos.

“Considerado o homem da Idade Média que opera a abertura para a Renascença”, diz a professora de Teologia, Dante é aquele que vai buscar à cultura clássica o mundo pagão “como fonte de humanismo imprescindível e que tem que ser reconhecido como tal”. Essa “escolha revolucionária” do poeta materializa-se aos olhos do mundo na figura do seu guia no “Inferno” e no “Purgatório”, Virgílio, o grande autor da Eneida e o poeta que Dante mais admirava. “Ele escolhe um pagão que na cultura clássica tem um poder cognitivo completamente autónomo do registo eclesiástico” e inova ao deixar para trás os tradicionais guias ao mundo dos mortos feitos anjos, espíritos, cristãos e entidades superiores.

Manifesto da redenção, tratado do juízo final

A viagem ao além-túmulo enceta-se na noite de quinta-feira santa da Páscoa de 1300 e termina na quarta-feira seguinte e é levada a cabo por um homem desesperado e desiludido que procura a salvação por via do amor. Percorre os três estádios possíveis depois da morte, Inferno, Purgatório e Paraíso, como já vimos, e depois de avistar danados e pecadores de toda a espécie e o próprio Lucifer, olhar as almas dignas em purificação e a caminho da redenção, entra no reino do inefável já pela mão da criatura amada que lhe facilita a visão de Deus e a união com Ele, consubstanciando-se o “amor como virtude da salvação”, diz Vaz de Carvalho.

“A escritura da ‘Comédia’ tem um valor apostólico na medida em que tem um valor de mensagem. Uma grande mensagem não apenas cristã e religiosa, mas também cívico-política. Ela é um novo apocalipse no sentido da revelação. Vai recuperar a velha tradição da poesia que é a ideia de que o poeta é também mestre espiritual e a poesia tem uma função pedagógica e moral”, refere Jorge Vaz de Carvalho.

Manifesto da redenção, tratado do juízo final, “cânone escatológico para a figura humana”, como escreveu Vasco Graça Moura, a obra maior de Dante não perde a atualidade apesar de poder ser escrita por um homem “profunda e excessivamente católico”, como afirma Teresa Bartolomei: “Dante tem um tribunal interior que é a sua fé”.

Mas se essa “resistência a pensarmos numa moral cristã, que cria balizas muito rígidas ao nosso comportamento”, existe, ela é “mais do que uma moral religiosa, e sim uma inspiração cristã que é no fundo a transmissão de valores universais. Dante é a coisa mais contemporânea que existe”, considera Jorge Vaz de Carvalho. Permanece sempre a ideia “de uma política orientada para o bem comum”, e prevalecem os conceitos de generosidade, decência, dignidade, honestidade. “Transcende-se qualquer catecismo e apresenta-se os valores que devem nortear a vida do cidadão comum”, continua o professor. De resto, para Jorge Vaz de Carvalho, os três volumes da Divina Comédia podem resumir-se numa simples preposição:

Existe uma vida efémera e existe uma eternidade. O que Dante faz é relembrar a toda a gente muito empenhada nos múltiplos vícios, que não vale a pena tanta sede de poder, tanta cupidez, porque tudo para no momento da morte e tudo vai para a eternidade”.

“A escritura da ‘Comédia’ tem um valor apostólico na medida em que tem um valor de mensagem. Uma grande mensagem não apenas cristã e religiosa, mas também cívico-política. Ela é um novo apocalipse no sentido da revelação. Vai recuperar a velha tradição da poesia que é a ideia de que o poeta é também mestre espiritual e a poesia tem uma função pedagógica e moral”, refere ainda o professor da Universidade Católica. “Dante joga com a realidade e com a imaginação, apresenta factos concretos da história de Florença e faz-se valer de uma dimensão imaginária de um pintor como Bosch, utilizando ainda as dimensões de memória e de profecia. Assim, toca todos os tempos e lugares com uma poesia universal e intemporal”, esclarece Jorge Vaz de Carvalho.

Dante Alighieri (c1265-1321) known as Dante, Italian poet. Portrait c1495 by Sandro Botticelli (c1445-1510) Italian Early Renaissance painter.

Dante Alighieri assume-se como a voz desse Humanismo que entra e irrompe pelo século XIV adentro como a definitiva forma da consciência humana

Getty Images

Esse acertar de contas no momento da morte revela “uma escolha moral profunda”, diz Teresa Bartolomei, tendo o homem nessa escolha a sua liberdade maior. Toda a obra de Dante premeia um “agir humano que tem subjacente um misto de liberdade e responsabilidade”, adianta Jorge Vaz de Carvalho. “Há a consciência de que cada indivíduo tem uma dignidade que deve ser respeitada mesmo na queda, mesmo do maior culpado”, remata a professora de Teologia.

Do Renascimento a Portugal

Refutado pelo artista do Renascimento que já se reconhece absolutamente autónomo em relação à religião, Dante atravessa os séculos até à sua grande recuperação pelos românticos no século XIX. A sua compreensão da ideia nacionalista será determinante para esse regresso à tona, “ele que também lutou por uma Itália unida, que só viria a ser realidade com Garibaldi”, avisa Jorge Vaz de Carvalho. Já no século XX, torna-se poeta de referência para muitos autores, sobretudo no mundo anglo-saxónico. “T.S. Eliot e Ezra Pound são dois dos grandes que recuperam Dante como figura imprescindível para a identidade cultural e consciência poética do Ocidente”, diz Teresa Bartolomei, que cita o alemão Erich Auerbach, o autor de Mimesis, para definir Dante:

O poeta que quer conhecer a realidade do Homem e que descobre essa realidade na sua dimensão ultraterrena”.

Em Portugal, a ressonância dantesca nas letras não se conhece antes do século XIX. Há versões parciais da Divina Comédia, mas a primeira tradução integral do texto data de 1887/88, à qual se juntam no século XX mais três traduções completas, sendo a de Vasco Graça Moura, em 1995, a de maior peso. O século XXI tem já assegurada mais uma versão, a de Jorge Vaz de Carvalho.

Todas reúnem o que de mais rico e complexo existe no nosso universo interpretativo em relação à nossa própria condição e à nossa relação com os outros. Todas nos aproximam da transcendência, aquela auto-superação humana que nos faz falta nos momentos decisivos e nos concede a serenidade final como o maior dos bens. Acima delas, Dante Alighieri assume-se como a voz desse Humanismo que entra e irrompe pelo século XIV adentro como a definitiva forma da consciência humana. Até hoje.

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