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Ou mais carros, com mais poluição, ou mais bicicletas: esta será uma das dúvidas sobre como se deslocarão as pessoas (pelo menos) até haver vacina, dado o receio do uso de transportes públicos
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Ou mais carros, com mais poluição, ou mais bicicletas: esta será uma das dúvidas sobre como se deslocarão as pessoas (pelo menos) até haver vacina, dado o receio do uso de transportes públicos

Abdullah Asiran/Anadolu Agency/Getty Images

Ou mais carros, com mais poluição, ou mais bicicletas: esta será uma das dúvidas sobre como se deslocarão as pessoas (pelo menos) até haver vacina, dado o receio do uso de transportes públicos

Abdullah Asiran/Anadolu Agency/Getty Images

Das bicicletas ao populismo, da economia "Zoom" ao choque de gerações: o que vai mudar no mundo depois da Covid-19?

A Gulbenkian convidou personalidades para pensar o pós-pandemia. Avançamos 3 reflexões sobre mudanças do futuro, de um analista do Financial Times, um reputado ensaísta espanhol e um académico suíço.

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Que impacto pode a pandemia do novo coronavírus ter no funcionamento do mundo, daqui em diante? A pergunta impõe-se cada vez mais, à medida que as populações começam a “desconfinar” e vão tentando descobrir como se materializará, afinal, a ideia do “novo normal”.

Foi numa tentativa de prever o futuro que a organização Fórum Futuro, da Fundação Calouste Gulbenkian, pediu depoimentos a várias personalidades, entre filósofos, ensaístas e investigadores internacionais e jovens portugueses. A iniciativa chama-se “Covid-19: E Depois?” e consiste numa série de vídeos, que serão partilhados na totalidade online (aqui) “ao longo das próximas semanas” e que procuram antecipar uma série de mudanças, conjunturais e estruturais, que a Covid-19 trará ao mundo, a curto, médio e longo prazo e em áreas como o mercado de trabalho, as relações interpessoais, o planeamento urbano e o consumo e partilha de informação.

“Já tinha existido uma conferência sobre o impacto da pandemia. Agora, desenhámos esta nova série de reações rápidas, em que pedimos a pensadores — alternámos grandes pensadores internacionais com jovens — que nos dessem uma ideia de como será o futuro para além da Covid-19”, explica o presidente do Fórum Futuro, Miguel Poiares Maduro. “Os vídeos identificam os desafios que a pandemia traz e abordam os conjunturais e os que poderão determinar alterações estruturais no funcionamento da nossa sociedade, em áreas como a política e a economia”, sintetiza.

Três das personalidades mais reputadas a que a Gulbenkian lançou o desafio de prever o futuro são Simon Kuper, jornalista e analista do Financial Times, Hanspeter Kriesi, professor de Ciência Política, e Daniel Innerarity, filósofo e ensaísta espanhol que é também professor de Filosofia Política e Social. O Observador revela em primeira mão o que o trio prevê para o futuro. Em três vídeos, tentam responder a várias questões: como funcionarão as cidades? O que mudará nos meios que usamos para nos deslocarmos? Que tensões é que a pandemia já provocou e pode ainda provocar nas relações entre os mais jovens e os mais velhos? E para o crescimento dos movimentos populistas, a pandemia terá efeitos benéficos, fragilizando os partidos tradicionais, ou será prejudicial, reforçando a tecnocracia e as decisões baseadas na ciência?

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De “degentrificação” aos transportes: o futuro nas cidades, segundo Simon Kuper

Uma das personalidades que o Fórum Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian convidou a pensar sobre o que pode ser o futuro do mundo depois de este ter sido surpreendido e abalado pela pandemia do novo coronavírus foi Simon Kuper.

Britânico, Kuper especializou-se como jornalista e analista do reputado jornal económico (também britânico) Financial Times. Notabilizou-se na área do desporto, pela visão quase antropológica e cultural — mas também industrial, no sentido económico do termo — com que escreveu sobre o fenómeno, tendo sido ainda autor de livros como Ajax, The Dutch, The War ou Soccereconomics.

Porém, não é apenas sobre desporto que Simon Kuper tem escrito nos últimos anos no Financial Times. Recentemente, tem-se dedicado a refletir e escrever sobre a pandemia do novo coronavírus e sobre o impacto que a Covid-19 está a ter nas cidades, nomeadamente em Paris, com textos como “A Minha Paris: Simon Kuper sobre a vida, o amor e a perda no [bairro] Marais” e “Como o coronavírus vai mudar Paris para sempre” .

Paris não é a única cidade sobre a qual Simon Kuper tem escrito nos últimos anos: tem também publicado textos sobre as mudanças, presentes e que se antecipam para o futuro, em Londres, Joanesburgo e Miami, cidades onde já viveu. Tendo-se especializado também, portanto, nas dinâmicas, modos de vida e alterações das grandes cidades — talvez fruto do seu próprio trajeto de vida, bastante móvel, com estadias anteriores em outros locais como Leiden (Holanda), Califórnia ou Berlim —, Simon Kuper escolheu como tema de reflexão a forma como as grandes cidades podem mudar a médio e longo prazo, referindo-se também às mudanças que já se sentem como consequência da pandemia.

Para o jornalista e analista britânico, pensar sobre o futuro das grandes cidades é decisivo para pensar sobre o futuro do mundo porque “já metade das populações mundiais vivem em cidades”, algo sem precedentes na história, e em breve, quando estivermos com perto “metade do século” cumprida, este número “será dois terços”. Cada vez mais, é em cidades (e em grandes cidades) e não em zonas rurais que os humanos vivem, explica Kuper — e é também aí que “o futuro do clima será decidido” nos próximos anos.

Ninguém consegue prever com exatidão as mudanças que poderão advir da pandemia do novo coronavírus a médio e longo prazo, ou que se poderão vir a acentuar na sequência da pandemia, mas é importante discuti-las. A curto prazo já é possível notar alterações: no vídeo gravado para a iniciativa do Fórum Futuro da Fundação Calouste Gulbenkian, Simon Kuper recorda que vive em Paris e diz que aí, presumivelmente como acontece também em outras grandes cidades mundiais, uma das reações passou pela fuga aos transportes públicos que é notória mesmo com o “desconfinamento”. “As pessoas têm medo, não querem ser infetadas. Na sequência disso, há muito mais carros na estrada, anda-se muito mais de carro e por isso há mais poluição ou dióxido de carbono”, refere.

Para o futuro, o jornalista e analista do Financial Times, Simon Kuper, elenca duas hipóteses de mudança, uma para pior e outra para melhor. O pior cenário: o número de pessoas que usam automóvel privado aumenta e a poluição cresce. O melhor cenário: o uso de carros diminui, devido a teletrabalho, deslocalização de pessoas para zonas mais rurais e/ou políticas de estímulo ao uso de bicicletas elétricas.

Para o futuro, o jornalista e analista do Financial Times elenca duas hipóteses que possam resultar de “mudanças radicais nas cidades”. Uma é mais negativa e passa precisamente pelo aumento do tráfego automóvel no interior dos grandes espaços urbanos: a procura de transportes públicos cai, o número de pessoas que usam automóvel privado aumenta, a poluição cresce e os impactos ambientais serão, à semelhança do que tem acontecido historicamente em períodos que se seguem a grandes recessões económicas, altamente prejudiciais.

Outra hipótese, mais positiva, passa pelo decréscimo da poluição nas cidades — e até por um possível abrandamento do crescimento da concentração de pessoas em cidades e grandes cidades nas próximas décadas.

Sobre possíveis desvios à expectativa de que a larga maioria da população se venha a concentrar cada vez mais, e rapidamente, em algumas cidades, Simon Kuper começa por lembrar que ninguém tem certezas de que uma vacina chegue a breve trecho: “é possível que isto dure apenas um ano, um ano e meio” mas também é possível que “nunca tenhamos uma vacina”, que tenhamos uma vacina “eficiente em muitos mas não na maioria dos casos” ou que só a “encontremos” daqui a por exemplo “cinco anos”, levando “mais alguns anos a ser comercializada”, o que é “muito tempo na vida de uma cidade”.

Se não aparecer uma vacina no período de tempo mais otimista, o analista do Financial Times admite que venha a acontecer um processo de “degentrificação”, com despovoamento das grandes cidades, deslocalização de muitas pessoas para zonas rurais e um recurso muito mais acentuado ao teletrabalho — o que teria nítidas vantagens ambientais.

Simon Kuper admite a hipótese de que venha a existir uma "economia Zoom", em que por exemplo "advogados, contabilistas" e quem tiver "muitos outros empregos na área dos serviços" mudem de morada "para o campo ou para pequenas cidades". Tal "inverteria a tendência dos últimos 40 anos, onde as cidades transformaram-se nos locais mais caros e atraentes" e onde "os preços das casas" dispararam.

Como explica Simon Kuper, não é de excluir a hipótese de que venha a existir uma “economia Zoom”, em que por exemplo “advogados, contabilistas” e quem tiver “muitos outros empregos na área dos serviços” mudem de morada “para o campo ou para pequenas cidades”. Tal “inverteria a tendência dos últimos 40 anos, onde as cidades transformaram-se nos locais mais caros e atraentes” e onde “os preços das casas” dispararam. “Podemos estar num processo de ‘degentrificação’ onde isso se inverte”, diz mesmo.

Mesmo que tendência de concentração cada vez maior de pessoas em grandes cidades não tenha uma inversão nos próximos anos, há possíveis alterações futuras à vida nas grandes cidades que teriam um impacto ambiental importante. Uma delas passaria por um fenómeno que já se nota mas que se poderá acentuar: “muito mais gente a andar de bicicleta”.

Em Paris, lembra Simon Kuper, estão a ser construídos “mais de 600 quilómetros de novas ciclovias”, que liguem os subúrbios à cidade. E esta crise e este receio de utilização de transportes públicos que é por ora evidente podem ser aproveitados para que “governos municipais e o poder local” desenvolvam políticas para que a bicicleta seja um meio de transporte muito mais utilizado no futuro.

"Se vive num subúrbio de Lisboa, Paris ou Nova Iorque, imaginemos que vai de bicicleta. Imaginemos que quer ir, por exemplo, de bicicleta do Bronx até Manhattan, para ir para o emprego. Isso é exequível, 15 quilómetros não é muito numa bicicleta elétrica."
Simon Kuper

Nesta possível mudança no recurso a meios de transporte, a bicicleta elétrica pode tornar-se fundamental. O analista recorda desde logo que apesar do “furor” dos carros elétricos nos últimos anos, “na verdade o veículo elétrico mais vendido na Europa nos últimos dois ou três anos foi a bicicleta elétrica”. Considerando-a uma opção “revolucionária”, Simon Kuper detalha um exemplo prático da sua utilidade: “Se vive num subúrbio de Lisboa, Paris ou Nova Iorque, imaginemos que vai de bicicleta. Imaginemos que quer ir, por exemplo, de bicicleta do Bronx até Manhattan, para ir para o emprego. Isso é exequível, 15 quilómetros não é muito numa bicicleta elétrica”.

Se o futuro fosse este, seria mais verde: “Podemos transportar mais pessoas e de forma mais verde se dermos prioridade às bicicletas elétricas. Mas isto tem de ser feito às custas do carro, devido ao espaço limitado das cidades. Temos de escolher: ou carros ou bicicletas elétricas”.

Populismo pode ganhar força e em especial no sul da Europa, acredita Hanspeter Kriesi

Outro dos convidados a abordar o que poderá ser o futuro do mundo depois da pandemia da Covid-19 foi Hanspeter Kriesi, professor de Ciência Política que atualmente trabalha no Instituto Universitário Europeu em Florença mas que já lecionou em Amesterdão, Zurique ou Genebra.

Hanspeter Kriesi, antigo vencedor do prémio da Fundação Mattei Dogan para Sociologia Política Europeia que foi também autor de um estudo recente (publicado em 2019) chamado “Partidos políticos europeus em tempos de crises”, decidiu escolher como tema a abordar neste Fórum Futuro precisamente o impacto que a pandemia pode ter na política internacional e na política europeia. Mais especificamente, antevê aquilo que pode ser o impacto da crise na ascensão e reforço ou não de discursos e partidos populistas, tema de que aliás se têm ocupado vários investigadores e académicos desde o início da Covid-19.

No vídeo gravado para o Fórum Futuro da Fundação Gulbenkian, o académico suíço começa por notar que “à primeira vista” e numa fase inicial, o impacto da Covid-19 no populismo parece ter sido prejudicial à ascensão e reforço de retóricas e partidos populistas em países nos quais estes não são Governo, nomeadamente na Europa. Isto porque “numa primeira reação os povos europeus uniram-se em torno da bandeira, isto é, dos seus líderes”, não tendo fomentado ou valorizado tanto a oposição política, nomeadamente a populista. De um modo geral, aliás, “a popularidade dos partidos tradicionais e dos governos compostos por partidos tradicionais tem aumentado”, refere o especialista em Ciência Polícia.

À união entre governantes e eleitores numa primeira fase de resposta à crise de saúde público, acresce o peso ganho por “especialistas científicos”, que tornaram-se “mais influentes para os decisores políticos”, levando em contraste a opinião pública a mostrar-se menos recetiva a uma retórica populista que tendencialmente “ignora e menospreza os especialistas científicos” e que “confia e é mais recetiva ao senso comum das pessoas”.

Apesar de o populismo poder ter "ter sofrido nas primeiras fases da crise", o mais provável é que este "eleve novamente a cabeça ao entrarmos na fase seguinte de gestão da crise", prevê o professor de Ciência Política do Instituto Universitário Europeu em Florença, Hans Peter Kriesi.

Ainda assim, as expectativas de Hanspeter Kriesi quanto ao impacto da pandemia da Covid-19 nos sistemas políticos, nomeadamente nos sistemas políticos europeus, são tudo menos otimistas. Isto porque apesar de reconhecer que o populismo poderá “ter sofrido nas primeiras fases da crise”, o mais provável é que este “eleve novamente a cabeça ao entrarmos na fase seguinte de gestão da crise”, aponta o professor de Ciência Política.

Uma tendência que o académico suíço encontra já numa primeira reação política e ideológica à Covid-19 passa pelo reforço do eurocetismo. Lembrando que a crise de saúde “levou ao reforço do Estado-nação e das suas fronteiras económicas, culturais, administrativas e polícias”, Hanspeter Kriesi refere que “em países como Itália a culpa é posta na Europa” e que “o eurocetismo tem crescido nas últimas semanas”, sendo provável que “esta tendência seja reforçada e que reforce os populistas do centro, como o Movimento 5 Estrelas em Itália, ou de direita, como o Liga [Liga Norte] italiano ou o Vox espanhol”.

Tendencialmente, as consequências políticas de um momento histórico como uma grande crise ou uma grande recessão demoram algum tempo a sentir-se, refere ainda o académico, recordando investigações anteriores que assim o sugerem. “O consenso inicial entre os eleitores vai-se dissipando à medida que esta crise se arrasta e as suas consequências se agravam” e por isso é expectável que o impacto da Covid-19 nos sistemas políticos seja futuramente muito distinto daquele que é atualmente, numa fase ainda algo embrionária das consequências da pandemia.

Se na Alemanha "o coronavírus provocou proporcionalmente menos mortes" porque "o país tem um sistema de saúde bem gerido e bem financiado e tem um Estado e uma liderança competentes", os países do sul da Europa foram atingidos "de forma particularmente pesado", diz Hans Peter Kriesi. Daí a seguinte previsão: "A repercussão populista será particularmente pronunciada no sul da Europa".

Desta vez, porém, Hanspeter Kriesi acredita que as repercussões possam surgir “mais rapidamente” do que em momentos anteriores, dado que a base da qual partiram movimentos e partidos populistas era mais reforçada (eleitoralmente e na notoriedade mediática dos movimentos) do que em crises antecedentes. E deverão surgir de forma assimétrica, dado que “os países foram atingidos de forma desequilibrada [diferente] pela crise”.

Se na Alemanha, por exemplo, Kriesi vê limitações ao crescimento de movimentos populistas porque “o coronavírus provocou proporcionalmente menos mortes” e “o país tem um sistema de saúde bem gerido e bem financiado e tem um Estado e uma liderança competentes”, a Covid-19 “atingiu de forma particularmente pesada os mesmos países do sul da Europa que já haviam sido atingidos de forma pesada pela última crise económica”. Assim, o especialistas em Ciência Política acredita que “a repercussão populista será particularmente pronunciada no sul da Europa”.

Nos sítios em que estes movimentos e partidos já estão implementados e têm poder reforçado, como acontece na Europa de Leste e em países como Hungria e Polónia, a Covid-19 poderá ter um impacto potencialmente explosivo politicamente, acredita ainda o académico: “Os aspirantes a autocratas nesses países estão a usar a crise do coronavírus para aumentar novamente o seu poder. Na Hungria, Orbán [já] está a usar a crise para se tornar um verdadeiro ditador. Esta é a consequência política mais preocupante da crise da Covid-19 na Europa até agora”.

Daniel Innerarity vê aumento de tensão entre jovens e idosos e quer “um novo contrato intergeracional”

Ao contrário de outras personalidades que foram desafiadas para analisar aquilo que pode vir a ser o futuro depois da pandemia do novo coronavírus, o filósofo e ensaísta espanhol Daniel Innerarity, que é também professor de Filosofia Política e Social e que dirige o Instituto de Gobernanza Democrática em São Sebastião, não fez apenas uma previsão futura daquilo que pode ser o mundo na ressaca da Covid-19. Ao invés, deixou também algumas sugestões sobre as mudanças sociais que a pandemia poderia e deveria provocar.

O filósofo e ensaísta basco, que colabora também ocasionalmente com o Instituto Universitário Europeu em Florença, que já foi professor assistente na universidade Pantheon-Sorbonne em Paris e na London School of Economics and Political Science e que tem tido uma carreira premiada (recebeu por exemplo o III prémio de Ensaio Miguel de Unamino e o Prémio Nacional de Literatura em Espanha, este último na categoria Ensaio), notou as tensões geracionais latentes provocadas já pela pandemia, falou de uma “difícil arte da convivência” e acabou a propor “um novo contrato intergeracional”.

Daniel Innerarity, que tem publicados em Portugal livros como “Política Para Perplexos”, “A Política em Tempos de Indignação” e “O Futuro e Os Seus Inimigos”, começa por notar um tique discursivo de muitos líderes políticos e comentadores, que referiram nos últimos meses que o vírus “não conhece fronteiras” e “afeta todos por igual”. Ora, isso não é exatamente assim, como recorda o académico: “Não é o que parece, pelo menos se olharmos para as fronteiras da idade. As guerras dizimam as populações mais jovens”, ao passo que a doença tem um maior impacto direto (em caso de infeção) “nos mais velhos”.

Compara-se, por exemplo, a crise da Covid-19 à crise ecológica: a primeira “ameaça principalmente os mais velhos”, a segunda “afeta mais os jovens, que sofrerão os seus efeitos” mesmo não tendo sido os principais responsáveis pelas consequência do aquecimento global e do aumento dos níveis de poluição.

Para exemplificar um pico de tensão entre mais jovens e mais velhos na pandemia, o filósofo e ensaísta espanhol recordou as palavras do vice-governador do Texas, Dan Patrick, que disse que os avós deveriam estar dispostos a morrer para salvar a economia para os seus netos

Para exemplificar um pico de tensão entre diferentes gerações provocada por uma pandemia que tem como grupo de risco a população mais idosa, Innerarity recordou concretamente palavras do vice-governador do Texas, Dan Patrik, um opositor do confinamento e de políticas mais restritivas de contenção que disse mesmo, “com uma lógica cruel”, que “os avós deveriam estar dispostos a morrer para salvar a economia para os seus netos”.

Embora nas sociedades democráticas um dos objetivos e aspirações seja a “inclusão” social, com a convivência harmoniosa de interesses de diferentes grupos, Innerarity vinca que é importante não esquecer que isso “não significa que a tensão não exista”. E os primeiros sinais apontam para que a pandemia possa ter reforçado a tensão entre diferentes gerações, como evidencia o debate entre confinamento e imunidade que “respondia a outra ponderação sobre os direitos das gerações: o confinamento prejudica mais a economia, ou seja, os jovens, enquanto o contágio controlado prejudicaria os mais velhos e danificaria menos a economia”.

Em alguns casos, a pandemia originou "casos de gerontofobia",  isto é, aversão ou medo patológico de pessoas idosas ou envelhecidas, diz Inneraty, que lembra: "Faz parte da difícil arte da convivência tornar compatível o que à partida não parece sê-lo".

Em alguns casos, diz mesmo o filósofo espanhol, a pandemia já originou “casos de gerontofobia”, isto é, aversão ou medo patológico de pessoas idosas ou envelhecidas. O futuro está por escrever e Innerarity vinca que as crises podem ser sempre duas coisas opostas: ou “momentos de luta pela própria sobrevivência sem pensar na dos outros” ou “momentos em que se descobrem aspetos da realidade aos quais não tínhamos prestado a devida atenção”.

A pandemia provocou uma “sutura geracional” mas é também uma oportunidade para promover “um novo contrato intergeracional”, porque “faz parte da difícil arte da convivência tornar compatível o que à partida não parece sê-lo” e porque embora nem sempre notados, os impactos da pandemia afetam indiretamente todos.

É preciso estudar o futuro para lhe responder à altura. “Queremos antecipar os grandes desafios”

Além da série de questões em que oradores convidados discutem os impactos da pandemia e o futuro em pequenos vídeos, o Fórum Futuro da Gulbenkian está a preparar um foresight [exercício de antecipação] para antever como poderá o mundo mudar no período de 2020 até 2030. A coordenar o projeto de investigação que tena antecipar o futuro está José Félix Ribeiro, membro do Conselho Científico do Fórum, analista e economista doutorado em Relações Internacionais que fez carreira na Administração Pública — e que no passado colaborara ativamente em estudos prospetivos em articulação com Governo ou Comissão Europeia, por exemplo. “É uma das pessoas pessoas com alguma experiência em trabalhos deste tipo”, vinca Poiares Maduro.

O projeto começou em 2019 e deverá estar terminado e apresentar as suas conclusões em 2021. Miguel Poiares Maduro explica-o assim: “Trata-se de fazer algo que acontece em alguns países mas em que não temos muita tradição, que é traçar cenários sobre a evolução do mundo e sobre a evolução futura da sociedade nas suas dimensões sociais, ambientais, económica e de segurança, por exemplo”.

A ideia do estudo é, em suma, tentar antecipar “cenários que possam permitir uma melhor construção de políticas públicas em resposta ao que se antecipa serem as tendências futuras do mundo”. Há equipas constituídas para diferentes áreas, que cobrem “um conjunto muito alargado de temas”, aponta ainda o presidente do Fórum Futuro. Estes vão da transformação digital da economia à sustentabilidade ambiental, passando por “a questão energética, a questão da evolução do sistema político, a geopolítica”. O trabalho das equipas vai sendo continuamente “revisto, criticado e sujeito a sugestões de outras especialistas” ao longo do tempo, até se chegar a uma “versão final”.

Para o presidente do Fórum Futuro, o próprio aparecimento da pandemia do novo coronavírus atesta a importância de se produzir material para um debate informado sobre o futuro: “O próprio aparecimento da pandemia e sobretudo a incapacidade de antecipação e a impreparação que quase todos os Estados revelaram numa fase inicial reforçam a necessidade de desenvolver estudos como estes, que obrigam as sociedades a confrontar-se com riscos e desafios futuros. Estes desafios, como são hipotéticos e futuros, tendem a não ser suficientemente antecipados e a resposta tende a não ser suficientemente planeada”. O possível aparecimento futuro de mais pandemias é, aliás, um dos temas que vai merecer investigação e discussão no foresight 2020-2030.

A organização da Fundação Calouste Gulbenkian, diz ainda o seu presidente, tem como objetivo fundamental “procurar antecipar os grandes temas do futuro, os grandes desafios e a forma como devemos desenhar e organizar políticas públicas e a nossa sociedade de forma a responder a esses desafios de futuro”.

Não se trata de fazer política ou de trazer respostas, porque “não compete à Fundação desenhar políticas públicas ou tomar posições sequer”. Trata-se de levantar hipótese, produzir cenários futuros verosímeis e antecipar os desafios a que o sistema político e sociedade civil terão de dar resposta. “É importante existir uma discussão mais informada sobre os grandes desafios e temas do futuro e é importante trazer esse debate para o presente, até porque o debate contemporâneo está muitas vezes muito centrado no imediato”.

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