Foi com um coração de Viana em filigrana ao peito que Mimicat voltou a subir ao palco do Festival Eurovisão, na final do concurso que decorreu este sábado em Liverpool, no Reino Unido (e que foi vencida pela Suécia, com a interpretação de “Tattoo”, por Loreen). “Ai Coração”, o tema escolhido para representar Portugal nesta 67.ª edição do festival, voltou a ouvir-se, entre suspiros de portugalidade e um estilo burlesco que faz parte do mote criativo da cantora, que viveu, admitiu, um sonho de criança tornado realidade. O tema, que compôs há quase dez anos, na altura em que estava a lançar o primeiro álbum, For You, venceu a 57.ª edição do Festival da Canção, mas a verdade é que Mimicat já tinha participado no concurso aos 15 anos, no longínquo ano de 2001. A música fez sempre parte da sua vida, uma nova etapa de reconhecimento surgiu com o Festival da Canção. Resta saber qual o caminho a traçar depois desta Eurovisão.
Voltemos à história. Marisa Mena, conhecida por Mimicat, nasceu a 25 de outubro de 1985, em Coimbra, cidade onde viveu até aos seus 20 anos. Começou a cantar quando estudava na Escola EB1 de São Martinho do Bispo e foi na parte final do 1.º ciclo, quando tinha apenas nove anos, que lançou um disco com o nome de Isamena. Seguiu-se um percurso escolar escolas EB 2,3 Inês de Castro e Secundária D. Duarte, entre tentativas de editar outro disco, que nunca chegou a sair. A entrada no ensino superior deu-se através do curso de Engenharia do Ambiente na Escola Superior Agrária de Coimbra (ESAC), numa altura em que tudo parecia encaminhado num sentido bastante diferente daquele que é hoje conhecido.
[a atuação de Mimicat em Liverpool, na final da Eurovisão:]
Depois dos dois primeiros anos de curso, e mesmo não se identificando “com a vivência académica” presente na cidade, o terceiro ano revelou um volte face. “Foi, nesse momento, que percebi que não queria nada daquilo para a minha vida e decidi mudar de curso”, disse a cantora à New in Coimbra. Ainda assim, não queria desistir do percurso académico, que continuou no curso de Som e Imagem da Escola Superior de Arte e Design no Instituto Politécnico de Leiria. Certo é que Coimbra ficou no passado. Mudou-se mais tarde para as Caldas da Rainha, ainda que não tenha esquecido a importância dessa ligação à cidade dos estudantes. “Foi nessa cidade que comecei a construir tudo aquilo que eu sou enquanto artista”, referiu na mesma entrevista.
O regresso à música e o nascimento de Mimicat
Já longe de “Isamena”, nome artístico que levou ao Festival da Canção, em 2001, Marisa Mena conheceu a sua primeira grande experiência no mundo da música quando se tornou vocalista e compositora da banda The Casino Royal. Ao longo de oito anos como voz principal do grupo e já a viver em Lisboa, foi também esse o impulso que a levou de novo à sua carreira a solo e, claro, ao nascimento de um novo alter-ego: Mimicat. O nome resulta das alcunhas dadas às madrinhas na família da cantora, como explicou à revista brasileira Glamurama: “Na minha família, as crianças chamam as madrinhas de Mimi, e eu já tenho uma afilhada com 11 anos, então bastou juntar ‘cat’ ao nome, et voilà! A combinação foi amor à primeira vista”, disse.
Estávamos em 2014. Nesse mesmo ano, a intérprete editou o seu primeiro álbum “For You”, editado pela Sony Music, com o tema “Tell Me Why” como primeiro single. O disco permitiu-lhe estrear-se internacionalmente com concertos no Brasil, mantendo como referências Ella Fitzgerald, Ray Charles ou Jill Scott e apresentando melodias que misturavam a soul, a pop e o jazz. Foi um período de grande entusiasmo. Em junho de 2015, a Folha de São Paulo anunciava em título o êxito de uma portuguesa: “Mimicat conquista o público no Parque Ibirapuera”. Era a estreia da cantora nos palcos internacionais e logo num dos maiores eventos de São Paulo, a Virada Cultural. Ao longo da mini turné chamaram-lhe “Amy Winehouse do Tejo”, escreveu-se que fazia lembrar “Shirley Bassey e Adele”. A Vogue Brasil sublinhou a “sonoridade com perfume vintage”, a aposta num visual retro.
Mimicat, a “underdog”, vence o Festival da Canção com uma música composta há dez anos
Em Portugal, por sua vez, a carreira musical continuava igualmente em grandes palcos. Participa na Festa do Avante, Sol da Caparica, EDP Cool jazz, Meo Marés Vivas e atua ainda na Culturgest. Volta aos discos em 2017, com Back in Town, mas desta vez de forma independente. Foi também o início da sua própria travessia no deserto, que iria recordar aquando da sua vitória, já este ano, no Festival da Canção: “Sou uma underdog. Venho de um registo em que não há público. Ninguém sabia quem era, e quando apresentei esta canção foi por todos nós. Por todos os underdogs que andam por aí a cantar para terem uma oportunidade, há séculos, e não conseguem”.
Nos anos que levou até chegar à Eurovisão foi mãe, dedicou-se aos dois filhos, um com quatro anos e outro com dez meses, e diz-se pessoa que gosta de tardes passadas em família e do arroz de pato da mãe. Ainda voltou às composições em 2021, com “Mundo ao contrário”, mas a verdade é que por várias ocasiões pensou desistir da música. “Investi muito. E quando o retorno não acontece, é frustrante”, reconhece. “[A certa altura] fiquei amarga e tive vontade de desistir. Sentia-me rejeitada”, disse em entrevista ao Expresso. Ao longo dos anos e como forma de garantir sustento, dedicou-se ao ramo do imobiliário. “Foi o que me pagou as contas estes anos todos”, realçou durante o programa da SIC Mulher “What’s Up! TV”.
Da rejeição ao maior palco da Europa
A dada altura, entre a decisão de continuar ou não a compor música, deu-se um clique que a motivou a tentar a sorte novamente no Festival da Canção. Segundo palavras da intérprete ao Expresso, foi ao escutar o discurso de uma atriz de 45 anos que, nos Globos de Ouro em 2016, ao receber o prémio de Melhor Atriz numa Série Dramática, que mudou a sua própria perceção: “Estive 20 anos à espera disto”. “Então pensei: ‘pára de te queixar e continua a trabalhar’”, concluiu a artista conimbricense.
Fez-se à estrada e sem grandes expetativas abriu a gaveta para recuperar a velha canção que, inicialmente, pretendia propor a outros artistas para a interpretarem. “Houve uma altura em que convidei a Luísa Sobral, a Ana Bacalhau e ia falar com a Capicua. Mas para isso precisava de ter uma demo da música. Só que como não gostava da que tinha, não lhes mandei nada, disse que já não ia fazer a canção, ‘esqueçam’ [risos]. Ia guardar para outro projeto qualquer.” Decidiu submeter a canção a concurso sem esperança, de tal maneira que se esqueceu de que havia enviado. “Não disse nada a ninguém! Nem ao produtor, ninguém. Nem o meu marido sabia. E agora acabei-a quando me disseram que ia para o festival. Tive um mês para acabar a canção e mudámos ali os arranjos”, contou em entrevista à NiT.
Na noite de 11 de março, e após uma disputa renhida com o tema de Edmundo Inácio, a cantora e compositora arrancou a vitória. A artista de 38 anos reuniu 24 pontos do público, depois de, entre o júri, “A Festa” de Edmundo Inácio e “Ai Coração” terem reunido 12 pontos. O tema do antigo concorrente do The Voice Portugal ficou em segundo lugar na geral, com 22 pontos. A vitória no Festival da Canção foi um momento de sonho, sobretudo pela importância que este concurso manteve na sua vida, como relembrou em entrevista à NiT. “Cresci com o festival, com grandes nomes como a Dulce Pontes, a Sara Tavares, a Anabela… Sempre foi um marco importante até à altura em que o festival ‘morreu’, devia ter eu uns 13 ou 14 anos e aí deixou de ter importância. Agora, com a história do Salvador e esta equipa que está com o festival, eles reavivaram-no.”
No discurso de vitória, Mimicat lembrou os tempos difíceis para singrar como artista: “Tentei desistir da música, mas o seu chamamento foi mais forte. Investi dinheiro que não tinha, fiz sacrifícios familiares e as coisas começaram a acontecer agora”, disse à imprensa. Já esta passada terça-feira, na primeira semifinal da Eurovisão, o tema e a sua prestação não passaram despercebidos, sobretudo pelo visual pensado e criado por Dino Alves. Passou à final, que aconteceu este sábado, 13 de maio, e recebeu comentários elogiosos vindos das mais diversas partes do mundo. “Ai Coração” foi a segunda canção apresentada, na primeira parte da cerimónia. Ao saber do apuramento, a cantora mostrou-se emocionada: “Foi incrível. Foi maravilhoso. Fartei-me de chorar”, disse.
Por agora, sabe-se que num futuro próximo irá lançar um novo disco e que quer dar concertos. “Já estou a ‘panicar’ porque tenho de montar o espetáculo e depois tenho o álbum para lançar, lá para outubro. O primeiro concerto será no Junta-te ao Jazz, que acontece entre 19 e 21 de maio no Palácio Baldaya, em Benfica. Vou fazer uma cena de piano e voz, só”, disse em entrevista à MAGG. Vê-se como veterana e resistente – os fãs mais entusiastas da Eurovisão apelidam-na de ‘mother’ – e sente-se a realizar um sonho adiado, mesmo sem a vitória na Eurovisão.