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2021 ainda agora começou e já há quem queira voltar atrás, como se pudesse cancelar o período experimental de um serviço de streaming recebido pelo Natal. Certo que o novo ano sucede o começo de uma pandemia e de restrições aplicadas ao quotidiano, mas os primeiros dias de janeiro foram suficientes para mostrar (aqui e no mundo — com uma piscadela aos EUA) que também agora é precisa resiliência, essa ferramenta imprescindível que nos protege com maior eficácia das adversidades, como se de um escudo se tratasse. O indicador de saúde mental, ao alcance de todos, não é apenas conversa em tempos de pandemia, até porque a vida é — e será sempre — feita de altos e baixos, que o digam os protagonistas de quatro histórias que reforçam a importância de sermos flexíveis e de nos centrarmos naquilo que podemos efetivamente controlar, com ou sem Covid-19 à mistura.
O vinho irrepetível que restou das chamas
“Parecíamos abelhas à volta das flores”, constata Beatriz Cabral de Almeida, à frente da enologia da Quinta dos Carvalhais (Sogrape), no Dão. Aquela parcela de Alfrocheiro era coisa nunca antes vista, de tal forma que a equipa desde cedo centrou as atenções no talhão 45. Havia ali algo de “especial” numa casta já antes apetecida pela enóloga: “Nós gostamos muito de Alfrocheiro, é uma das castas que representa o que é o terroir do Dão. É subtil, elegante, fresca… É difícil de trabalhar ou de se manter com boa qualidade até ao fim, exige muita atenção. A do talhão 45… percebermos que os bagos eram diferentes, estavam mais equilibrados, pareciam mais prontos mais cedo”.
A devoção a uma parcela não assim tão grande resultou numa primeira e única colheita de um vinho agora irrepetível. A vindima de 2017 arrancou a meados de setembro, primeiro com as uvas brancas e depois com as tintas, e terminou a 5 outubro. Dez dias depois, quando Beatriz já gozava férias após um período de trabalho intenso, aconteceu o pior: os incêndios que marcaram para sempre o dia 15 de outubro galgaram as margens da propriedade dos Carvalhais, entraram pelo terreno adentro e destruíram grande parte das vinhas — incluindo as do estimado talhão 45. “Eu estava em casa — normalmente passo a vindima toda em Viseu, mas moro no Porto — quando recebo uma mensagem do segurança de Carvalhais a dizer que o fogo está muito perto”, recorda. As notificações seguintes foram sendo sucessivamente mais alarmantes. “O senhor Manuel Luís, que toma conta da vinha e mora mesmo na quinta, estava muito assustado. O diretor de viticultura quis ir à quinta nessa mesma noite, mas não conseguiu passar.” A A25 estava a arder, de um lado ao outro.
Beatriz só conseguiu aceder à propriedade no dia seguinte, já no rescaldo dos violentos incêndios. Ao Observador fala em “horror”. O caminho para a Quinta dos Carvalhais era “muito mau”, deixando antever um cenário ainda mais desolador à chegada à propriedade: vinhas devastadas (de 50 hectares arderam 28), tubos de rega derretidos entre videiras, algumas ainda em chamas. “Fez-me bastante pena, apeteceu-me chorar.” De um dia para o outro, ela e a equipa perderam grande parte do património agrícola, de um trabalho e de uma paixão. Porém, nada que se compare com quem perdeu casas e vidas para o fogo, insiste. A desgraça que não lhe foi alheia foi um convite para “das fraquezas tirar forças”. Enquanto parte da vinha perdeu-se, a única colheita daquele Alfrocheiro estimado crescia em potencial a olhos vistos na adega para ver finalmente a luz do dia em 2020, ano de pandemia. O Quinta dos Carvalhais Parcela 45 tinto 2017, último testemunho de videiras consumidas pelo fogo, cujas uvas tinham sido apanhadas dias antes, resultou numa edição limitada, da qual já foram vendidas 650 de 2.034 garrafas.
Mas desta história acresce outro exercício de resiliência. Após os fogos, a equipa analisou que vinha tinha ardido e que plantas teriam sobrevivido mas, perante resultados insuficientes, optou-se por arrancar todas as videiras ardidas em 2018, replantação que aconteceu em 2020. “Agora não estamos descansados enquanto não voltarmos a ver aquilo tudo renascido”, conta Beatriz. Até lá, resta-lhe a memória de como a natureza proporcionou “um vinho como nunca se tinha provado”.
“Se a vida te dá limões, faz uma limonada”
A resiliência pode ser encarada como um conjunto de capacidades que nos permitem ultrapassar dificuldades/adversidades. É, ao mesmo tempo, a capacidade de encarar a mudança, seja ela derivada de uma situação negativa ou positiva, como um desafio e não como um drama, atesta a psicóloga clínica e terapeuta familiar Catarina Mexia. “Normalmente, as pessoas resilientes acreditam que são capazes de superar as coisas com otimismo. Não digo que devemos todos ser super-heróis, mas falo de pessoas com um sentimento de autoeficácia muito grande, que olham para si como os principais motores do sucesso.”
Rede de suporte, saber pedir ajuda, autoconfiança, boa autoestima e humor — considerando quem tem uma perspetiva mais ligeira do mundo e é capaz de brincar com as suas próprias dificuldades — são bons indicadores de resiliência, ferramenta essa que pode ainda ser desenvolvida e trabalhada ao nível da psicoterapia. A isso acresce a necessidade de assumir responsabilidades e deixar de lado o papel de vítima. “Posso ser vítima de uma catástrofe natural, mas posso determinar a forma como lido com isso. Quando somos capazes de perceber que não controlamos tudo, começamos a aceitar aquilo que efetivamente podemos controlar. Passamos a ter uma perspetiva diferente e ganhamos mais confiança. Se estivermos sempre a depararmo-nos com o insucesso a nossa autoconfiança vai pelo cano abaixo, mas se estivermos centrados no aqui e no agora a sensação de que somos capazes sai mais fortificada”, acrescenta Mexia. Quem geralmente fica refém de um registo de queixa contínua não consegue problematizar as questões e, assim, seguir em frente.
Importante é saber gerir as emoções: identificá-las, aceitá-las e contextualizá-las, sejam elas ansiedade, tristeza ou raiva. Só assim é possível encontrar uma forma de lidar com elas. As crenças limitadoras, essas, estão sempre em jogo e também precisam de ser identificadas. “As crenças, por definição, são ao nível do racional, resistem alicerçadas a questões emocionais. Daí que o apoio psicoterapêutico seja muito útil.”
A resiliência é, no fundo, um indicador de saúde mental. É um recurso que varia de pessoa para pessoa e é, por isso, influenciada por fatores que têm que ver com o indivíduo e o meio em que este se insere, mas também com a fase do desenvolvimento e com as experiências atuais e anteriores, sublinha Conceição Tavares de Almeida, do Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde (DGS), que lembra que o termo “resiliência” vem da Física e está associado à resistência dos materiais sujeitos a intervenção do meio. Popularizando o tema, resiliência vai ao encontro da famosa expressão: “Se a vida te dá limões, faz uma limonada”.
“Quanto mais flexíveis formos e quanto maior for a nossa capacidade de admitir erros, medos e limites, mais fortes e resilientes somos. As pessoas mais perfeccionistas ou mais fundamentalistas acabam por ser mais frágeis porque não são tão moldáveis ao impacto do ambiente”, continua Conceição, que sintetiza: bases sólidas e, ao mesmo tempo, flexíveis significam uma maior capacidade de resiliência à adversidade ao longo da vida.
Irina não tem medo de dizer “Cancer I Love You”
Irina Fernandes está convicta que nada na sua vida é por acaso. Quando em novembro de 2019 rapou o cabelo na sequência de uma promessa que fez ao filho de 10 anos, depois deste defrontar e vencer um menino que o assustava num campeonato de Jiu Jitsu, estava longe de imaginar a notícia que a atingiria que nem uma bomba alguns meses mais tarde. Habituada — e, por vezes, incomodada — a responder às sucessivas perguntas sobre o cabelo rapado, e de tranquilizar que estava bem de saúde, Irina viu a vida mudar a 11 de março de 2020. Estava o país a preparar-se para confinar quando recebeu o diagnóstico: a biópsia ao nódulo encontrado na mama que até então julgava ser benigno tinha vindo positiva para carcinoma. “Os primeiros tempos foram de total desespero. Senti muito medo de morrer”, recorda ao Observador. Desempregada há mais de um mês e a mãos com um cancro, Irina temeu pelo filho: também ela tinha perdido o pai aos 10 anos. “Esse medo foi crescendo dentro de mim e foi aumentando o meu desespero.” Em tempos de aflição — e numa altura em que os portugueses se trancavam em casa — valeu-lhe o marido, psicólogo de profissão. “O Rui teve um papel muito importante na forma como atualmente olho para o cancro e para a cura: ele disse-me que a cura começa comigo”, diz.
“Cancro agressivo e de rápida expansão”, lembra Irina. Entre a primeira consulta (de abertura do processo) e o começo dos tratamentos passaram-se três meses, tempo suficiente para, primeiro, desesperar e, segundo, encontrar a resposta de que estava à procura. “Não tenho de ficar passiva à espera de começar a quimioterapia — foi o que pensei. Então, comecei a investigar casos de sucesso, de remissão (são muitos mais do que à partida imaginamos). Comecei a estudar o que estas pessoas faziam e mudei radicalmente a alimentação, deixei de comer carne e todos os derivados de leite e optei por alimentos biológicos.” Esses e outros cuidados foram naturalmente expostos à médica, recorda, que os compreendeu e aceitou. O confinamento, argumenta, acabou por ser uma oportunidade para alcançar “uma maior capacidade de introspeção”, que a fez olhar para o cancro de outra forma. E as alterações ao estilo de vida continuaram, com Irina a focar-se no mindfullness. Nunca deixou de fazer exercício: assim que as medidas aligeiraram retomou as caminhadas, quilómetro a quilómetro.
É certo que os poucos efeitos secundários ajudaram ao moral, mas Irina quis continuar a puxar por si, ainda que sempre consciente dos limites. Depois de tanto andar, certo dia experimentou correr. Mais uma vez, quilómetro a quilómetro. “Acabei a quimioterapia, em outubro, a correr cinco quilómetros.” A experiência otimista está em parte relatada na conta de Instagram que criou, “Cancer I love you”, para mostrar às pessoas “que há outra forma de olhar para a doença”. “Isto não é uma sentença de morte. Não somos impotentes, há muita coisa que podemos fazer. Eu não quero ter cancro, mas é algo que não consigo controlar. Consigo sim controlar a forma como olho para ele e como reajo.”
O cancro, explica, vai acompanhá-la para o resto da vida, ou seja, mesmo não tendo células cancerígnas, vai ser sempre uma doente oncológica. Nada que a impeça de chegar aos 101 anos, uma premissa na qual acredita tanto que tatuou a mensagem “Amor/Cura” na mão. “Continuo a fazer tratamentos, como a imunoterapia e a terapia hormonal. Estou numa menopausa induzida, deixei de ter o período, tenho afrontamentos e começo a chorar e a rir ao mesmo tempo. Tenho isso tudo, mas recebo com leveza. Não me impede de fazer a minha vida normal. Ainda hoje corri 10 quilómetros.”
Do lay off aos mini bolos: um negócio de mãe e filha
Em março de 2020, Marta Rodrigues foi colocada em lay off, uma realidade com a qual muitos portugueses estão familiarizados. Só em novembro desse mesmo ano é que a assistente de bordo da TAP, de 30 anos, teve a confirmação que os contratos não seriam renovados, mas não foi preciso chegar praticamente ao final de 2020 para pôr em marcha o plano B que, em boa verdade, estava em carteira desde há seis anos. “Estava parada e não estava a ver o futuro com bons olhos, pelo que retomei um projeto que é feito a meias com a minha mãe”, conta. Mais do que isso, é inspirado na mãe Helena, de 58 anos — não só lhe leva a alcunha emprestada, “Nenna”, como foi lançado no seu dia de anos. A dupla homenagem tem por base uma realidade muito concreta: é Nenna quem faz os mini bolos e os “Jars of Happiness” — de chocolate 70% de cacau com pistachio, entre outros toppings, ou de caramelo salgado, por exemplo —, que invadem o Instagram desde junho.
“No início da pandemia começámos a fazer os primeiros bolos e as produções fotográficas”, comenta a filha a quem cabe a parte visual. Aos primeiros bolos de amêndoa e noz seguiram-se os de chocolate e também o red velvet, que entretanto tornou-se na estrela da companhia. E ao sabor junta-se a estética, com Marta Rodrigues a falar em cake design — há receitas criadas de raiz e outras que Marta reconhece da infância, vindas diretamente do receituário da avó, todas elas trabalhadas de forma artesanal na cozinha da mãe. Os mini bolos da Nenna Cakes são, sem sombra de dúvidas, o grande chamariz, uma ideia que já vinha a ser matutada por Marta que sempre quis ter um negócio seu e sentia falta de uma estética mais minimalista ao nível da pastelaria. Além disso, “sentia que o tamanho de um bolo normal representava sempre um grande desperdício”. “Uma coisa engraçada durante a pandemia é que, por causa das restrições, as pessoas começaram a optar por bolos mais reduzidos. Uma coisa na qual tinha pensado há anos encaixa agora num período menos bom…”
O caminho para aqui chegar não tem sido fácil e mãe e filha garantem que ainda têm muito que aprender, sobretudo no que à lógica de negócio diz respeito. Apesar de “verdinhas”, as coisas têm corrido bem: à medida que Marta vai navegando pelo mercado de trabalho, em busca de estabilidade em ano de pandemia, o projeto “Nenna Cakes” vai ganhando força. A comprová-lo está o volume de encomendas que finalizou o ano que passou. “Em setembro começámos a ter vários contactos via Instagram e até dezembro foi um boom! Ainda estamos a aprender, mas confesso que tenho pensado em crescer com isto. O bom feedback das pessoas dá-nos mais força para continuar”, salienta. Uma coisa é certa: “a minha mãe é a estrela”.
Uma bengala e a barreira dos 500 metros
O amigo com quem tinha marcado o almoço encontrou-se com ele à porta de casa, em Famalicão. Ao contrário do que Pedro Pinto pensara, não veio de carro, mas sim a pé. Sem rumo certo, começaram lentamente a caminhar à procura de um restaurante e, enrolado na conversa, Pedro deu por si a caminhar 500 metros. Foi uma vitória. “Foi uma surpresa, não estava à espera de o conseguir fazer”, recorda ao Observador. Pedro foi diagnosticado com esclerose múltipla (EM) em agosto de 2000. Apesar das duas décadas que intervalam esse momento e a atualidade, ainda se recorda de como tudo começou, do surto que teve no fim de um dia de praia: a visão ficou turva e perdeu a sensibilidade nos membros inferiores e superiores. Tinha 24 anos.
“A fase inicial é de choque. Somos tratados para o surto, melhoramos, mas no meu caso fui sempre acumulando déficits.” Ao Observador, esclarece que no passado cometeu erros pelos quais está a agora a pagar — quase a fazer jus à famosa passagem de António Variações —, com o stress de gerir financeiramente uma empresa de construção e o excesso de sol a ficarem marcados no corpo. Em 2002 casou e em 2004 foi pai do único filho. 2007, recorda com precisão, foi um ano de vários surtos, cada um deles a deixar sequelas que culminaram sempre em perda de mobilidade. “A parte motora e urinária foram as mais atacadas. Não conseguia fazer uma corridinha para ir à casa banho.” Segue-se 2008, ano fatídico que colocou a empresa no olho do furacão que assolou a economia mundial, e que acabaria por encerrar a atividade mais tarde. Isso e a progressão da doença deixaram-no alguns meses em casa e à “beira da paranoia”. Valeu-lhe o amor pelo FC Porto. “Tenho um grande amor pelo clube, sou sócio há muitos anos. Na altura, apareci como alternativa à direção da Casa do Porto de Vila Nova de Famalicão.” Chegou a presidente, cargo que ainda hoje ocupa.
A doença que o vai acompanhar para o resto da vida exige muito equilíbrio de medicação. Pedro vai sofrendo de tremores nas pernas e de incontinência urinária. As dores são diárias e atualmente o atestado médico assinala 85% de incapacidade cumulativa (essencialmente motora): a doença tem-no atirado várias vezes para uma cadeira de rodas e desde os 30 anos que recorre à bengala para que terceiros não confundam o andar cambaleante com uns copos a mais. “Tudo o que nos acontece na vida tem uma explicação, cabe a nós próprios encontrar a força. As pessoas não podem desistir de viver. Às vezes consigo fazer mais e melhor do que quem não tem qualquer limitação, isso é algo que aumenta a minha autoestima”, afiança. Apesar da doença, Pedro diz-se muito acarinhado na Casa do Porto de Famalicão e que o reconhecimento (externo e interno) ajuda à resiliência. “Se tiver um compromisso às 9h, tento levantar-me às 7h porque o corpo demora tempo a arrancar. Temos de saber os nossos limites, temos de nos adaptar e dar a volta.”