O início da sessão estava agendado para perto das 18h (acabou por começar às 18h20). Já se esperavam protestos e um clima de tensão, até por todos os acontecimentos que se seguiram às eleições norte-americanas: as alegações nunca provadas de uma fraude eleitoral em grande escala, a recusa em reconhecer a vitória de Joe Biden, os pedidos ao vice-presidente Mike Pence para fazer o que não podia — contornar o voto popular e não certificar o voto eleitoral.

Temiam-se até desacatos, eventualmente confrontos nas ruas, mas não o que aconteceu: uma invasão de apoiantes de Donald Trump ao Capitólio dos Estados Unidos da América, edifício central da democracia norte-americana. A invasão começou por volta das 19h30, cerca de uma hora depois do processo de certificação dos votos eleitorais começar, e a polícia só retomou o controlo do edifício perto de três horas e um quarto depois. Este é o filme do que aconteceu, cena a cena.

O discurso de Trump, que inflamou e antecedeu a invasão

O primeiro momento relevante do dia, que alimentou preocupações sobre o que poderia acontecer nas horas seguintes, teve Donald Trump como protagonista.

O Presidente cessante dos EUA, a quem eleitores e representantes democratas, independentes e até alguns republicanos mais críticos têm pedido que reconheça a derrota eleitoral, dirigiu-se a milhares de americanos e apoiantes que se juntaram em Washington D.C., cerca de uma hora antes da certificação dos votos do Colégio Eleitoral, e voltou a não aceitar a derrota.

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Trump fez, porém, mais do que isso. Começou por, como habitual, voltar a apontar o dedo aos meios de comunicação, “o maior problema que temos”: “Os media não vão mostrar o tamanho desta multidão. Até eu, quando liguei hoje [a televisão], olhei e vi milhares de pessoas aqui. Mas não se via centenas de milhares de pessoas atrás de vocês [os da frente] porque eles não querem mostrar isso. Temos centenas de milhares de pessoas aqui e eu quero que sejam reconhecidas pelos fake news media. Liguem as vossas câmaras, por favor, e mostrem o que se está a passar aqui. Porque estas pessoas não vão aguentar isto muito mais tempo, não vão suportar isto muito mais“.

Embalado, prosseguiu: “Manipularam a eleição. Manipularam-na como nunca o fizeram com outra eleição. (…) Centenas de milhares de patriotas americanos estão comprometidos com a honestidade das nossas eleições e a integridade da nossa gloriosa República. Todos nós que aqui estamos não queremos ver a nossa vitória eleitoral roubada por democratas radicais de esquerda e pelos fake news media. É o que fizeram, é o que estão a fazer”. E rematou com palavras incendiárias, revelando inflexibilidade e intransigência:

Nunca desistiremos, nunca concederemos. Não acontece, não se concede quando há roubo envolvido. O nosso país já teve que chegue, não vamos suportar mais isto. (…) Vamos parar o roubo.”

Trump holds rally in Washington D.C as "Save America March"

Trump a discursar esta quarta-feira aos apoiantes (@ Tayfun Coskun/Anadolu Agency via Getty Images)

Os manifestantes, que se deslocaram a um protesto contra a certificação legal de resultados que Trump tentou contestar juridicamente sem sucesso, estavam concentrados com o mote “Salvar a América”. E foi a esse protesto que Trump se juntou, dizendo que não só vencera as presidenciais como vencera por muito (“não foi uma eleição renhida” e “ganhei por muito mais do que na primeira”, em 2016), desafiando quem se lhe opõe — “não os deixaremos silenciar as vossas vozes” — e pressionando Mike Pence:

Olho para o Mike Pence e espero que faça a coisa certa. Espero mesmo. Se fizer a coisa certa, ganhámos a eleição. (…) Tudo o que tem de fazer é enviar os votos [do Colégio Eleitoral] de volta para os Estados [que os enviaram] para os certificarem novamente. Chegaremos à Presidência e vocês serão as pessoas mais felizes”, apontou.

Sobre o vencedor das eleições, Joe Biden, disse: “Perdeu as eleições por muito. Teremos de viver com ele a Presidente durante quatro anos? Simplesmente não vamos deixar isso acontecer”.

A carta de Mike Pence e a sua objeção a Trump

Antes mesmo do início do processo de certificação dos votos do Colégio Eleitoral para as presidenciais norte-americanas, que até às eleições de 2020 era considerada uma mera formalidade, era tornada pública uma carta do vice-presidente cessante, Mike Pence.

Na carta, embora prometesse que todas as alegações de irregularidades seriam investigadas, Pence escrevia: “Durante os 130 anos que se seguiram à aprovação da Ata de Contagem Eleitoral, o Congresso tem usado estes procedimentos formais para contar os votos do Colégio Eleitoral a cada quatro anos, sem exceção”.

Enquanto estudante de história, que ama a Constituição e reverencia os seus criadores, não acredito que os fundadores do nosso país tivessem a intenção de investir o vice-presidente da autoridade de decidir que votos eleitorais devem ser contados (…)”, lia-se ainda.

A carta, longa, era clara na sua intenção: Mike Pence não pretendia contornar os votos do Colégio Eleitoral enviados pelos Estados após apuramento dos boletins de voto. Essa possibilidade era aliás de raiz muito remota. Tal só seria possível  por decisão das duas câmaras do Congresso — a Câmara dos Representantes e o Senado. Não era uma possibilidade realisticamente viável, uma vez que os Democratas estão em maioria na Câmara dos Representantes e mesmo no Senado, que tem uma maioria Republicana, havia uma maioria favorável à certificação dos resultados enviados pelos Estados.

A contestação ao resultado no Arizona

O resultado da votação no Arizona foi o primeiro momento de discórdia no processo. Após a leitura do resultado, que dava a vitória a Joe Biden no Estado, os legisladores republicanos opuseram-se à validade da votação.

A objeção era, sabia-se já, uma formalidade sem consequência jurídica. Seria votada e a expectativa era de que fosse chumbada, mas os legisladores deslocaram-se aos locais juridicamente previstos para as debater, as câmaras do Senado e dos Representantes.

Mitch McConell, líder da maioria Republicana no Senado, foi um dos que veio contestar a tese de irregularidades eleitorais em grande escala defendida por Donald Trump. “Em todas as eleições que conhecemos verificaram-se ilegalidades e irregularidades e claro que isso é inaceitável. (…) Mas colegas, nada perante nós prova uma ilegalidade sequer remotamente próxima de uma escala massiva, a escala massiva que inclinaria toda uma eleição. (…) A própria dúvida foi incitada sem qualquer prova que a acompanhasse”. Lembrando que apoiara o direito de Trump de contestar os resultados nos locais próprios, legalmente previstos, acrescentou:

Todos os Estados pronunciaram-se. Se rejeitarmos os seus votos ou os desautorizarmos, isso danificaria a nossa República para sempre. Esta eleição nem sequer foi estranhamente próxima. Só na história recente, em 2000 e 2004 tivemos eleições mais renhidas do que esta. A margem do Colégio Eleitoral é quase idêntica ao que foi em 2016″, apontou ainda.

Também Chuck Schumer, senador de Nova Iorque que lidera a bancada democrata, defendeu que a verificação dos resultados deve ser uma formalidade. “Estamos aqui para ver o vice-Presidente a abrir envelopes e receber as notícias de um veredito que já foi emitido”, disse. “É uma ocasião solene e majestosa, sem dúvida, mas é uma formalidade. Não é o Congresso que determina o resultado de umas eleições, é o povo.”

A resposta de Trump a Pence pelo Twitter, acusando-o de cobardia

Quando se apercebeu da carta de Mike Pence divulgada pelos meios de comunicação norte-americanos — o The New York Times e a CNN, pelo menos —, Trump compreendeu a tomada de posição do seu vice-presidente e não hesitou em dizer que lhe faltou coragem, ou seja, que este foi cobarde.

O ataque foi feito no Twitter. Numa mensagem publicada às 19h24, Trump visava o seu até aqui aliado: “Mike Pence não teve coragem para fazer o que devia ter sido feito para proteger o nosso país e a nossa Constituição, dando aos estados a oportunidade de corrigir vários factos, e não os fraudulentos que agora pedem que eles certifiquem. Os EUA exigem a verdade”.

Às 19h30 a invasão, uma hora depois do início da sessão

Não levou muito tempo até que se percebesse que alguma coisa estava errada. Enquanto os legisladores discutiam as objeções levantadas no Arizona, a Polícia do Capitólio ordenou aos funcionários que evacuassem edifícios — o House Cannon e o James Madison Memorial — da Biblioteca do Congresso.

Essas primeiras notícias foram dadas por volta das 19h27, hora de Portugal Continental, “sem mais informação prestada”. Mas não foram precisos mais do que dois ou três minutos para se perceber o que acontecera. Pouco depois de as duas sessões no Congresso terem começado, uma multidão de manifestantes pró-Trump subiu a uma das escadarias do Capitólio ao mesmo tempo que, de outro lado, um grupo menor de manifestantes conseguiu entrar no primeiro andar.

Aos funcionários começou por ser dada uma ordem para se fecharem nos respetivos gabinetes e ficarem afastados da janela, por receio de uma possível utilização de armas.

O primeiro pedido de Trump, que não foi para os invasores se retirarem

Apercebendo-se depois da invasão de apoiantes seus ao Capitólio, Donald Trump também reagiu na rede social Twitter. Ao contrário do que muitos já lhe exigiam, não condenou a invasão nem pediu aos invasores para se retirarem do edifício — pediu apenas para que fossem “pacíficos”.

Às 19h38 de Portugal Continental, Trump publicava a seguinte mensagem: “Por favor, apoiem a Polícia do Capitólio e as forças da autoridade. Eles estão verdadeiramente do lado do nosso país. Mantenham-se pacíficos”.

Os sons de disparos e o pedido de Trump: “Sem violência!”

Os meios de comunicação norte-americanos davam conta daquilo que acontecia dentro do Capitólio. Primeiro foi a CNN a avançar que as forças de segurança no interior do Capitólio apontavam armas a manifestantes pró-Trump que conseguiram entrar numa das duas câmaras do Congresso. A ABC News, por volta das 19h55 portuguesas, avançava que se ouviam disparos. E eram vários os media que garantiam que estava a ser usado gás lacrimogéneo no interior do Capitólio.

Cerca de 15 minutos depois dos relatos dos disparos, Trump voltava a pronunciar-se no Twitter. Continuava sem pedir que os apoiantes se retirassem do edifício, insistindo apenas nos pedidos para que o “protesto” fosse pacífico: “Peço a todos os que estão no Capitólio dos Estados Unidos que se mantenham pacíficos. Sem violência! Lembrem-se, NÓS somos o partido da lei e da ordem — respeitem a lei e os nossos grandes homens e mulheres de azul. Obrigado!”.

No interior, pelo menos um dos manifestantes gritava “Trump venceu a eleição”. No exterior, a CNN avançava que por precaução as autoridades federais e locais já investigavam a possibilidade de engenhos explosivos artesanais terem sido colocados em vários locais de Washington.

Por volta das 20h15, já se relatava que a polícia tinha conseguido começar a deter manifestantes. Os congressistas e senadores tinham sido transportados para um local que não foi revelado, para proteção dos próprios. E receberam, tal como outros funcionários do edifício e jornalistas presentes no interior, máscaras de gás, para se protegerem do gás lacrimogéneo.

@ Getty Images

Manifestante baleada no peito

Por volta das 20h30, os meios de comunicação norte-americanos davam conta do primeiro ferido grave na  sequência dos confrontos. Segundo a CNN, uma mulher estava a ser assistida depois de ter sido baleada no peito. Estava em estado grave.

Tratava-se, segundo a imprensa norte-americana veio a referir depois, tratar-se de uma manifestante. Esta estaria a tentar forçar a entrada numa das duas câmaras do Capitólio (Câmara dos Representantes e Senado) quando foi atingida por um disparo.

@ AFP via Getty Images

Cerca de duas horas depois, um jornalista da estação NBC, Scott MacFarlane, avançaria que a mulher baleada que ficara em estado grave tinha morrido. O jornalista citava uma fonte policial.

Ativada a Guarda Nacional e o FBI, para retomar o controlo do Capitólio

Por volta das 21h, era tornado público que a Guarda Nacional norte-americana tinha sido ativada: elementos desta força e do FBI tinham sido enviados para o Capitólio, dada a dificuldade em retirar os invasores do local.

Joe Biden reage: “A nossa democracia está sob um assalto sem precedentes”

O próximo Presidente dos Estados Unidos, que está a poucos dias de tomar posse, também reagia à invasão ao Capitólio. Disse: “Neste momento, a nossa democracia está sob um assalto sem precedentes”.

Nunca vimos nada assim em tempos modernos. É um assalto contra a cidadela da liberdade, o Capitólio em si. É um assalto contra os representantes do povo, contra a polícia do Capitólio que jurou protegê-los, contra os funcionários públicos que trabalham no coração da nossa república. É um assalto contra o Estado de direito como vimos poucas vezes”, vincou Biden.

Defendendo que “as cenas de caos no Capitólio não refletem a verdadeira América, não representam o que nós somos”, Biden visou os invasores: “O que nós vemos é um pequeno grupo de extremistas, dedicados à falta de lei. Isto não é dissidência. Isto é desordem, é caos. Está à beira de sedição. Tem de acabar já. Exijo a esta turba que recue e deixe a democracia funcionar”.

Fotogaleria. As imagens da invasão do Capitólio por manifestantes pró-Trump

Virando-se para Donald Trump, aquele que será o seu sucessor disse: “As palavras de um Presidente importam, independentemente do quão bom ou mau esse Presidente seja. No melhor dos casos, as palavras de um Presidente podem inspirar. No pior dos casos, podem incitar”.

Como tal, exijo ao Presidente Donald Trump ir à televisão nacional já para cumprir o seu juramento, defender a Constituição e exigir um fim a este assalto”, instou.

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Joe Biden a falar aos americanos (@ JIM WATSON/AFP via Getty Images)

Trump em vídeo: “Têm de ir para casa” mas “vocês são especiais”

Horas depois do início da invasão, Donald Trump dizia finalmente aos manifestantes que o apoiavam: “Têm de ir para casa. Conheço a vossa dor, sei que estão magoados. Roubaram-nos umas eleições que ganhámos por muitos e toda a gente sabe disso, especialmente o outro lado. Mas agora têm de ir para casa. Temos de ter paz. Temos de ter lei e ordem. Temos de respeitar as nossas pessoas da lei e da ordem”.

Aos seus apoiantes, deixou no entanto palavras simpáticas: “Nós amamo-vos, vocês são especiais”.

Controlo do Capitólio recuperado

Por volta das 22h45 (hora de Portugal Continental), as autoridades norte-americanas retomavam por fim o controlo do Capitólio, o que significava que todos os manifestantes tinham sido retirados do edifício ou manietados no seu interior. O controlo foi recuperado após cerca de três horas e um quarto de os manifestantes terem invadido o edifício.

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@ ROBERTO SCHMIDT/AFP via Getty Images

O rescaldo de Trump: “Isto é o que acontece quando uma eleição é roubada”

Depois destas notícias, Trump voltaria ao Twitter — desta vez desculpabilizando os invasores e pedindo até para as pessoas se “lembrarem deste dia para sempre”. Na rede social, em mensagem publicada às 23h, escreveu o seguinte: “Estas são as coisas e os eventos que acontecem quando uma vitória eleitoral sagrada e esmagadora é roubada de forma tão viciante e pouco cerimoniosa dos grandes patriotas que há muito tempo estão a ser tratados de forma injusta e má. Vão para casa com amor e em paz. Lembrem-se deste dia para sempre“.

A invasão terminaria com um balanço de quatro mortos, dezenas de feridos e mais de 50 detidos.

[A longa e turbulenta confirmação da vitória de Biden. Como aconteceu:]

(Artigo atualizado às 10h30 com o balanço de vítimas e de detidos nos confrontos)