Michael Grecco lembra-se da primeira vez que viu punk ao vivo. Foi nos tempos de estudante, em Boston, quando, uma noite, o nova-iorquino entrou por acaso no The Ratskeller, mítico clube noturno da cidade. “Era a Batalha das Bandas. Uma banda chamada La Peste”, contou o fotógrafo, hoje com 65 anos. Corria então o ano de 1977 ou 1978. O dia exato perdeu-se no nevoeiro da memória, mas as sensações ficaram: êxtase, adrenalina, rebelião – uma autêntica revelação.
“Adorava a música, adorava as pessoas, e foi algo natural começar a fotografar”, explicou ao Observador. Naqueles dias, o “adolescente arrogantezinho que decidiu ir estudar filme e televisão porque achava que já sabia tudo sobre fotografia” estava a dar os primeiros passos no mundo do fotojornalismo, na Associated Press, e levava, segundo o próprio, “uma vida dupla”. De dia, era repórter da agência norte-americana, sob a alçada de alguns dos melhores fotógrafos militares da época; à noite, pegava na câmara e, umas vezes como freelancer de revistas temáticas como a Boston Rock, outras por iniciativa própria, ia para a “frente de combate” da emergente cena punk da cidade, captando e, em muitos casos, tornando-se próximo dos maiores nomes daquele período, muitos dos quais estavam em início de carreira.
Mais de 40 anos depois, esse momento fundacional e de viragem na história da música pode ser revisitado — e não é preciso ir a Boston. A partir deste sábado, 14 de outubro, a exposição Days of Punk está aberta ao público no Centro Cultural de Cascais, na Fundação D. Luís I. Quem a visitar poderá esperar um exibição multimédia, misturando fotografia, vídeo e paisagens sonoras evocativas daquele tempo e daquele lugar, a partir da perspetiva próxima e privilegiada de alguém que, mais do que um fotógrafo, foi um “insider” da cena punk e companheiro de viagem de muitos dos artistas por ela responsáveis.
A ideia surgiu há cerca de cinco anos, quando o arquivista de Michael Grecco descobriu as imagens, entretanto esquecidas, nos arquivos do fotógrafo. Quando o visitamos, está, em conjunto com a sua equipa, a ultimar os preparativos para a inauguração da exposição, que se estreou em Londres e já passou por cidades como Los Angeles, Gotemburgo, Málaga e, claro, Boston. “Estou na fase da minha carreira em que não estou a fotografar tanto, estou a construir um legado… a mostrar o meu trabalho, a refletir, a dar-lhe alguma ascendência no meio artístico” diz.
O ato de exibir, além de um exercício de memória, é também uma tentativa de provocar uma reação no espectador, de o fazer compreender o mundo do punk através de uma ideia visual. Para a exposição em Málaga, Michael conta que fotografou uma banda local, os Urina, tendo como ponto de partida a questão “o que é o punk?”. A resposta: os membros da banda a urinar para cima de uma guitarra em chamas. “Trata-se de chegar à essência de algo”, diz.
Dos Ramones aos Cramps: sexo, drogas e punk
A infância e adolescência de Grecco dificilmente fariam prever que se tornasse num “club kid” da cena de Boston e enveredasse pelos caminhos do punk. É o próprio quem se descreve como um miúdo tímido e “isolado”, com poucos amigos e uma paixão pela fotografia. A música que ouvia em casa também estava nos antípodas dos seus gostos futuros: a mãe, antiga cantora de jazz, enchia a sala, no Bronx, com o repertório de João Gilberto e Stan Gatez – “muita bossa-nova, samba, música brasileira, jazz”.
O primeiro contacto com a música punk surgiu já no liceu quando, por intermédio de um amigo, descobriu um álbum diferente de tudo o que tinha, até então, ouvido. “Um amigo meu pôs a tocar o primeiro álbum dos Ramones; ouvimos o Beat on the Brat e ficámos loucos com aquilo, não havia nada igual.”
Ouvi-lo rememorar esses tempos, entre o Bronx e Boston, permite perceber a mentalidade e o contexto que permitiu o nascimento de um movimento como o punk. “A rádio tradicional não prestava. Tínhamos todas estas bandas que nunca deviam ter acontecido: Journey, Rush, Styx, Kansas, Boston”, diz. Para alguém que, como ele, ouvia jazz, Lou Reed, Velvet Underground ou David Bowie, estas bandas representavam tudo o que estava de errado com a indústria discográfica nos EUA.
Nos anos 70, as editoras criavam as bandas. Encontravam um grupo que tivesse um mínimo de talento musical, faziam estudos de consumidor para entender as tendências da pop, as letras e o guarda-roupa eram escolhidos por eles… Eram bandas péssimas, eram inautênticos”.
Autenticidade era pois, a ordem do dia no punk. Mais do que um estilo musical, era um movimento contracultural que se insurgia contra a artificialidade da música comercial. As músicas eram rápidas e enérgicas, a instrumentalização era simples e pouco polida, o modo de distribuição muitas vezes independente e a moral anti-establishemnt – características que atraíram Grecco e, no meio de uma juventude universitária e rebelde, criaram um fenómeno de popularidade e de comunidade. “Era também um grupo muito acolhedor de pessoas. Éramos todos outsiders, e aceitámo-nos a todos porque éramos outsiders”.
As histórias que este grupo de outsiders aprontou fazem hoje parte do imaginário do rock; a câmara de Michael Grecco captou muitas dessas histórias. “[Fotografar] dava-me acesso e dava-me uma razão para andar com bandas como os Buzzcocks” diz o fotógrafo, que conviveu de perto com muitos dos músicos que retratou. “Estava com o Adam Ant o dia todo quando ele vinha à cidade (…) depois dos concertos, o baterista, Chris “Merrick” Hughes, dizia ‘o que é que vamos fazer’ e eu convidava-os para virem para minha casa, e passávamos a noite toda a beber vodka, a ouvir música, a consumir cocaína, a noite inteira acordados”, diz.
O lema “sexo, drogas e rock ’n roll” pode hoje ter perdido alguma da sua pujança, mas na altura era vivido com a intensidade própria daqueles que o criaram. As várias histórias que Michael Grecco nos conta dão uma ideia da loucura que, naquela época, era parte do dia-a-dia de quem andava no meio. Desde partilhar namoradas com Billy Idol às noites de cocaína com Topper Headon dos The Clash, em Nova Iorque, pouco antes deste ser despedido da banda devido aos problemas com a drogas – “não sabia na altura que ele era viciado em heroína e que por isso é que o despediram, durante anos pensei que a culpa era minha!”, brinca — Grecco não esconde os excessos do meio. Excessos que, sem dar espaço a quaisquer juízos de moral, formavam parte integrante da cultura e identidade punk.
Exemplo ilustrativo é aquela que diz ser a sua fotografia favorita do projeto, mas que não está Cascais (está, isso sim, um vídeo da mesma). “Os Cramps foram dos melhores concertos ao vivo que fotografei. Uma vez, o Lux Interior está a atuar e as calças dele rompem-se todas. (…) Quando cheguei ao backstage, perguntei ao Lux para o fotografar; ele estava envolvido numa toalha e diz-me ‘sim, só um minuto’ – vai à mesa de catering, tira um pão de cachorro-quente e mete as partes dele no cachorro… São coisas que hoje já não voltavam a acontecer. O acesso que se tinha, a irreverência que havia, completamente sem filtros. O Justin Bieber hoje não fazia isso”, diz.
A (re)descoberta de um movimento político e musical
Nada dura para sempre. Eventualmente, o miúdo do Bronx cresceu, ganhou nome no mundo da fotografia e, no final da década de 1980, abandonou o estilo de vida e os clubes de Boston rumo à Califórnia, onde se tornou num conceituado fotógrafo de celebridades para publicações como a People e a Rolling Stone. Owen Wilson, Will Ferrell, Martin Scorsese, Will Smith, Lucy Liu e Steven Spielberg são apenas alguns dos nomes que foram passando pela sua lente. “Sempre tive um interesse maior em retratos” explica, naquela que foi a evolução natural de alguém que se considera “um mau fotojornalista”.
Para trás ficaram os vastos rolos de câmara das noites no Ratskeller ou no Paradise, a fotografar as bandas e os concertos. “Queria trabalhar para revistas e deixar o fotojornalismo para trás. Não queria mostrar imagens de bandas punk quando estava a tentar fotografar celebridades famosas de Hollywood, não era útil para o portfólio”.
A redescoberta do material acabou por acontecer por mera coincidência. “Há cerca de cinco anos, o meu arquivista começou a retirar este material dos meus ficheiros e, à medida que começámos a olhar para o trabalho, apercebemo-nos que fui parte de algo incrível e que tinha de fazer alguma coisa com estas fotos”.
A revelação é, de certa forma, surpreendente. Michael e os amigos e músicos com quem conviveu naquela altura não sabiam o que estavam a construir. “Adorávamos a música, mas nenhum de nós tinha expectativas de que ia perdurar. Pelo menos eu não tinha. (…) Sabia lá se iam lembrar-se dos Cramps ou do Billy Idol 20 anos depois. Gostávamos da música, ponto”, admite, ainda que acrescentando que o espírito rebelde e a afirmação de uma identidade própria fossem conscientes. “Sabíamos que éramos uma cultura alternativa. (…) Era uma forma de dizer ‘odiamos a música que passa na rádio, somos rebeldes’”.
O movimento, diz era sobretudo musical nos Estados Unidos, uma reação ao estado da rádio e da indústria comercial por uma juventude revoltada. Ainda que questões como a inflação, o preço dos combustíveis ou a política económica de Reagan estivessem sempre presentes entre as ansiedades daquela geração, Grecco sublinha que o propósito do punk americano era insurgir-se contra uma indústria que, “ao contrário do Reino Unido, funcionava por payolla, onde os DJs eram comprados a troco de prostitutas, dinheiro ou cocaína para passar um disco“.
Do outro lado do Atlântico, a história era um pouco diferente. “No Reino Unido, era uma revolução social. Era muito mais político porque havia um grande nível de desemprego, toda a gente estava zangada e desempregada”. As músicas das bandas refletiam esse mesmo contexto. Career Oportunity, dos Clash, (“Oportunidades de carreira / as que nunca aparecem”, o seu verso mais direto) assumia vincadamente este sentimento, num género que produziu ainda hinos anti-guerra como Charlie Don’t Surf, referência irónica ao Kilgore de Apocalypse Now, e que ela própria integrava Sandinista, álbum dos The Clash cujo título remetia para a Frente de Libertação Nacional de Nicarágua, movimento revolucionário de esquerda socialista daquele país da América Central.
Mas também no Reino Unido havia espaço para críticas à indústria musical. “A música que explica e de que gosto muito, porque também queriam revolucionar a indústria musical do RU, são os versos de Hitsville UK. [The Clash]. Fala dos rufias das editoras que estão a tremer que nem varas verdes, porque podemos simplesmente lançar um disco, vão-se lixar.”
Esse mote independente era comum aos dois países. Mais uma vez, Boston desempenhou um papel central. “A rádio que começou tudo isto foi a rádio MIT, a antiga WTBS. (…) Quando o Ted Turner comprou as iniciais, deu-lhes dinheiro suficiente para passarem de uma estação de 50 watts para 500; tornou-se numa verdadeira rádio FM que as pessoas ouviam”, lembra Michael Grecco. Foi em Boston, por exemplo, que começaram os primeiros programas de rádio exclusivamente dedicados à música punk e que foram instrumentais para a sua divulgação. “Todos ouvíamos o DJ Oedipus, que teve o primeiro programa punk de sempre na rádio, em 1975. Havia um programa chamado Late Risers Club, havia o Nocturnal Emmisions, e descobríamos a música dessa forma”.
Porquê Boston? A juventude era o fator essencial. “Boston tem mais universidades e institutos de ensino superior do que qualquer outro sítio no mundo — é uma cidade de miúdos” explica o fotógrafo, que não tem dúvidas quanto ao impacto e dimensão da cena noturna e musical da cidade na altura. “Era enorme, havia uns 20 ou 30 clubes, não tinha igual em mais lado nenhum. Acho que a nossa cena era maior que a de Nova Iorque e de Londres.”
As explicações de Michael Grecco para o contexto social e cultural que permitiu o nascimento do movimento são curiosas nas semelhanças que aparentam ter com os tempos atuais – também eles de inflação, crise económica e instabilidade social. Haverá, então condições para o despontar de um “novo punk”, ou algo semelhante? O fotógrafo mostra-se reticente. Por um lado , considera, a contestação a que se assiste hoje nos Estados Unidos é sobretudo fruto de “um mentiroso que foi Presidente e passou quatro anos a mentir às pessoas, a dizer-lhes que os imigrantes os vinham substituir – não é genuíno”; por outro, porque “o punk foi uma tempestade perfeita de rebelião social, mas também de um ponto de vista musical. Não o vejo a repetir-se” diz, ainda que deixando espaço para estar enganado. “Talvez esteja a acontecer e eu é que não faço parte dela.” O futuro dirá.