Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Talvez esteja a ler-me da Canada do Ceguinho, em Ponta Delgada. Ou da Praceta Karl Marx, na Baixa da Banheira. Pode estar num banco do Jardim do Bacalhau, em Chaves, num terraço da Urbanização Doce Vida, em Lagos, ou mais periclitantemente em Bombinhas, Castelo de Paiva. O mais provável, porém, é que esteja numa Rua da Igreja: mais de metade das artérias de Portugal são Ruas e a designação mais comum é Igreja, que perfaz 1.611 topónimos no país. Este ensaio analisa uma base de dados dos CTT (obtida via Central de Dados) com os nomes e códigos postais de 276 mil artérias. Veremos, entre outras coisas, a grande presença do catolicismo no ‘baptismo’ do nosso território.
Em média, há três artérias por quilómetro quadrado (km2) em Portugal. Os nomes das artérias quase nunca se repetem: apenas 2% das designações estão presentes 20 ou mais vezes na toponímia nacional. Mas atenção: essas poucas designações preenchem quase 1/3 das artérias de todo o país. Só Igreja, como vimos, ocupa 1.611. Seguem-se 25 de Abril, Fonte, Santo António e Outeiro, cada qual com mais de mil ocorrências. O top 20 prossegue com referências de tipo espacial – Escola, Flores, Nova, Boavista, Monte e Principal –, as efemérides 1.º de Maio e 5 de Outubro, a conquistada Liberdade, o inevitável Luís de Camões, os santos Pedro, João e José, e ainda um segundo local de veneração: Capela.
Naturalmente, as designações mais comuns são as espaciais (como acontece também nos Estados Unidos e, supõe-se, em qualquer outro país). Aqui fica uma Tapada, dali vai-se para a Bouça através de uma Portela ou então por uma Ladeira. A Granja e o Passal são privados, mas são publicamente sinalizados aos passantes. Caso alguém esteja em busca de alimento, facilmente se indica o caminho para a Travessa do Açougue: vira-se à direita, atravessa-se o Beco do Forno, segue-se pela Rua da Eira e está-se lá num instante – o cheiro e o nome da rua não hão-de enganar. Aqui e ali encontra-se uma Rua do Moinho, acolá uma Rua do Barreiro, e assim se revela ainda hoje, de modo tão concreto, a estrutura das comunidades tradicionais portuguesas.
Acontece, porém, que é raro ainda se cortarem carnes nas Travessas do Açougue e se consertarem sapatos nas também costumeiras Ruas do Sapateiro. Nos casos concretos da Praceta Inspector da CP, em Pinhal Novo, da Travessa da Ti Vassoura (Mira) e da Canada do Tio Manuel Teixeira (Angra do Heroísmo), igualmente se presume que os referentes, digamos assim, já não estejam entre nós. Não há problema: a memória colectiva tantas vezes mantém a relevância de topónimos que perderam actualidade. O Moinho pode ter sido desmantelado e o Açougue extinto, mas a lembrança desses marcos pode ser ainda parte da experiência comunitária. Nos topónimos, a evolução tanto se dá por repentes, quando um regime muda, como acontece paulatinamente: a novíssima Estrada da Indústria e a europeísta Avenida do Polidesportivo podem perfeitamente desembocar numa Rua do Casal, respeitante a um terreno que, entretanto, tenha sido absorvido por uma parcela vizinha.
A clivagem ideológica norte/sul e o curioso caso da Madeira
Já vimos que os topónimos espaciais são os mais frequentes de todos. Resta uma ainda muito significativa parte das designações – mais ou menos 2/3 do total – que alude a figuras históricas, efemérides ou conceitos (como Liberdade) mais difíceis de enquadrar, à falta de informação sobre o sentido concreto de cada uma das suas nomeações. Nestes 2/3 constam acima de tudo topónimos de cariz político, militar, religioso e sociocultural. Desdobrando um pouco mais, conseguimos agrupar: os factos e as figuras de cada regime político; os principais opositores aos vários regimes; os descobridores; os administradores coloniais; outros militares; os artistas; os cientistas; e outros vultos da sociedade portuguesa.
Em seguida mostram-se os resultados de uma tal categorização, por ordem decrescente de importância. Dada a grande extensão dos dados, esta análise baseia-se em 209 do total de 1.413 designações que se repetem pelo menos 20 vezes no território nacional – essas 209 são as designações de tipo não espacial. Lamentavelmente, não poderemos ter em conta a dimensão e a localização exacta dos topónimos, que a base de dados não refere.
Mas o que ler no detalhe destes indicadores? Vamos partir numa viagem em 13 pontos pela história de um país religiosa e politicamente dividido.
1. O destaque maior vai para os topónimos religiosos. Dos quais apenas Mesquita (que surge 21 vezes e sobretudo no centro e no sul) não é cristão. Já acima se falou dos que estão no topo desta lista: Igreja e Capela, bem como dos santos António, Pedro, João e José, mais lembrados pelas autoridades municipais (são elas que decidem os topónimos) do que os padroeiros São Jorge e São Vicente, respectivamente de Portugal e de Lisboa. O que não se disse ainda foi que aqueles quatro santos têm uma presença toponímica mais uniforme, geograficamente, do que os próprios Vasco da Gama e Luís de Camões, dois dos principais credores do imaginário nacional. A distribuição geográfica de cada topónimo é aqui calculada por comparação com a distribuição geográfica média dos 209 topónimos. Por exemplo, os Açores têm 7% dos topónimos com o nome Igreja, bem mais do que a média de 2% para a globalidade dos topónimos.
De uma forma geral, os topónimos religiosos assumem maior presença no norte e no interior de Portugal continental e menor nos distritos de Lisboa para sul. Isso é evidente especialmente nas dezenas de designações sobre a mãe de Cristo (Nossa Senhora de Fátima, da Conceição, do Rosário, dos Remédios, da Saúde, da Graça, da Piedade, e por aí fora – as curiosas Nossas Senhoras das Febres, do Fastio, do Leite e da Mão Poderosa não contam nem perto de 20 “aparições”, mas merecem menção). Diferentes são os casos do Padre Américo, importante nos distritos de Porto, Aveiro e Coimbra, e do Padre Cruz, mais presente em Lisboa, Setúbal, Santarém e Guarda.
2. Seguem-se, em peso nacional, os topónimos culturais. Que são quase sempre nomes de pessoas. O grupo começa com o autor d’Os Lusíadas, líder destacado da tabela. Luís de Camões é um topónimo mais recorrente nos distritos de Leiria e Santarém e está particularmente ausente na Madeira – onde há apenas uma rua com o seu nome –, nos Açores, em Viana do Castelo e Braga.
Logo depois, Portugal assinala vastamente o legado do poeta e pedagogo João de Deus, autor da Cartilha Maternal, cujo método é ainda hoje aplicado em escolas. Atrás seguem Alexandre Herculano, Fernando Pessoa (sobretudo em Lisboa, já na Madeira nem vê-lo), Eça de Queiroz (acompanhado do “gémeo” Eça de Queirós), Camilo Castelo Branco, Almeida Garrett, Gil Vicente, Florbela Espanca, (o bastante algarvio) António Aleixo, Antero de Quental e Alves Redol – todos com pelo menos 100 ocorrências. Redol, como seria de esperar, vê o nome evocado sobretudo nos distritos de Setúbal, Santarém, Beja, Évora e Faro. Semelhantes destinos são os de José Saramago e José Afonso. O autor da radiofónica grandolada original não tem uma única rua na cidade do Porto e conta apenas cinco em todo este distrito. Já Bocage é particularmente celebrado em Setúbal.
3. Agora é a vez da democracia, o mais presente dos regimes políticos. O nome 25 de Abril está presente em ruas e avenidas, mas também em becos, estradas, pracetas, travessas, caminhos, rotundas, veredas, vias e jardins. A Madeira, mais uma vez, fica cinzenta na fotografia, ao ter apenas uma via funchalense e uma praceta no Machico com aquela designação. Bragança e os Açores são igualmente comedidos. Na margem oposta estão distritos como Beja, Évora, Faro e Setúbal, que lideram também na evocação do 1.º de Maio, do Movimento das Forças Armadas, dos Capitães de Abril, do 11 de Março e, curiosamente, do 28 de Setembro. A grande politização destes distritos – que confirmaremos também nos topónimos sobre a 1.ª República – tem, porém, um pendor ideológico: Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa, dois dos políticos mais lembrados nas ruas de Portugal, despertam menor interesse nestes distritos a sul. O 25 de Novembro também toca mais os corações nortenhos e açorianos.
Entretanto, em Portugal já há 27 artérias com o nome Doutor Mário Soares. Seis delas concentram-se em freguesias do concelho de Lousada, no Porto. Outras três em Gondomar, duas em Abrantes, duas na Amadora, e há mais em Aljustrel, Leiria, Santarém e outros concelhos. Por coincidência ou não, quase todas são autarquias socialistas. A excepção mais notável vai para as duas artérias em Vila Nova de Famalicão, município governado pela coligação PSD/CDS-PP. E agora um parêntesis para notar que as 13 artérias com os nomes Álvaro Cunhal e Álvaro Barreirinhas Cunhal situam-se todas de Coimbra para baixo, com excepção de uma solitária (no pun intended) rua em Valpaços. A impressão desta clivagem ideológica na toponímia é reforçada pelos topónimos General Vasco Gonçalves e Salvador Allende, igualmente raros no país, mas praticamente ausentes no norte continental.
4. Depois da democracia vem outro regime político: não, não é ainda o Estado Novo. Esse está no fundo da tabela, falaremos dele adiante. Também não é a 1.ª República. É a monarquia, toda ela num só grupo. A encabeçar a lista está o topónimo Castelo. Depois vêm os independentistas e nacionalistas 1.º de Dezembro e Dom Afonso Henriques. A lista das designações mais comuns inclui ainda Dom Dinis, o Marquês de Pombal, Dom Manuel I, o Infante Santo, o Mártir Dom Sebastião (assim mesmo nomeado) e, muito interessante, Dona Inês de Castro, coroada depois de morta. As restantes rainhas surgem a seguir a ela. Em geral, é nos distritos da Guarda e de Lisboa que a monarquia mais está presente; no pólo oposto estão Braga e Viana do Castelo.
5. Vasco da Gama é o maior! Descobridor, entenda-se. A toponímia assim o diz. Em seguida, na categoria dos ‘Descobrimentos’, temos Infante Dom Henrique, que nasceu no Porto e tem nesse distrito a proporção mais baixa de topónimos com o seu nome. Os lugares seguintes vão para os antropónimos Bartolomeu Dias, Pedro Álvares Cabral, Diogo Cão e Gonçalves Zarco, bem como para designações como Descobrimentos, Boa Esperança, Navegantes, Descobertas, Caravelas e Naus. Não por coincidência, certamente, é no distrito de Faro (sobretudo em Albufeira, Lagoa e Loulé, mais até do que em Lagos) que os Descobrimentos estão mais presentes. Também Lisboa os representa acima da média. Já os distritos de Braga, Coimbra e Porto remam contra a maré.
6. A 1.ª República despertou paixões e ódios e polarizou o país político, deixando um rasto: o regime é menos presente nos distritos do norte – em particular Braga, Porto e Vila Real – e nas regiões autónomas. Na Madeira, por exemplo, há apenas quatro artérias com os principais topónimos republicanos. No país, as designações republicanas mais frequentes são 5 de Outubro, República, 31 de Janeiro (data de uma primeira revolta republicana no Porto), Teófilo Braga, Afonso Costa (mais Doutor Afonso Costa), Doutor Manuel de Arriaga e o Almirante Reis, por ordem decrescente.
7. Na categoria seguinte temos países e cidades. Há centenas de artérias em Portugal que remetem para o Portugal colonial. O nome mais frequente é o da maior ex-colónia… africana: Angola. Depois vem boa parte dos outros territórios que Portugal administrou: Timor, Moçambique, Brasil, Guiné, Cabo Verde, Goa, Diu, Damão e São Tomé e Príncipe. De uma forma geral, é no centro e no sul de Portugal continental que estes topónimos são mais frequentes – o que talvez tenha algo que ver com a localização da “economia dos Descobrimentos”. Logo abaixo na tabela, a grande distância dos números das ex-colónias, surgem Espanha (mais evocada por Aveiro, Lisboa e pelos distritos fronteiriços) e a Europa (Lisboa e Porto, conjuntamente, só a comemoram por três vezes!). É ainda de referir a Rua da Atlântida, na Manta Rota, local de arroubos mitológicos e das férias estivais de Pedro Passos Coelho.
8. Rua do Emigrante. Este é o nome mais comum na categoria “Sociedade”, sobretudo se lhe juntarmos a designação Emigrantes, também no topo da lista. A importância histórica dos muitos portugueses que emigraram é particularmente assinalada em Aveiro, mas também nos Açores, em Bragança, na Guarda e em Leiria. A Madeira é novamente outlier, com zero artérias com o nome Emigrante e apenas quatro Emigrantes, apesar dos muitos que exporta. Ainda nesta categoria, a medalha de prata vai para Gago Coutinho e a de bronze para Egas Moniz. Em seguida temos Catarina Eufémia, figura claramente mais lembrada nos distritos alentejanos, no de Lisboa e no de Setúbal. E mais abaixo Fernão de Magalhães e Maria da Fonte, especificamente lembrada na Póvoa de Lanhoso, onde viveu (estão ali dez das 40 referências a esta mulher de força).
9. No ranking militar, o top 3 não vai para nomes de pessoas, mas sim para as designações Combatentes, Combatentes da Grande Guerra e Combatentes do Ultramar. Em seguida encontramos Dom Nuno Álvares Pereira, o militar/descobridor/santo que mancha este esforço de categorização, e logo depois as ruas, avenidas e outros tipos de artérias com o nome Capitão Salgueiro Maia (muito presente no distrito de Santarém, como seria de esperar, e não encontrado uma única vez – sob esta designação, pelo menos – nos Açores, onde esteve destacado antes de falecer). O elenco termina com Forças Armadas e Paiol, este último com 27 referências que poderão vir a dar outras tantas dores de cabeça ao Ministro da Defesa.
10. Agora apresentamos num só lote as três próximas categorias. Em ‘Nacionalismo‘, incluímos o tal termo Liberdade, que presumimos referir-se mais frequentemente ao 25 de Abril. Esta categoria inclui Viriato, o lusitano que Viseu e Castelo Branco honram com 18 artérias. Na simpática categoria ‘Emoções‘ contam-se Saudade, Amizade, Fraternidade, Namorados, Felicidade, Sossego, Amores, Concórdia, Futuro, Abraços e Preguiça (em Aveiro e Viana do Castelo, contrariando o anedotário nacional). No grupo da ‘Oposição‘ aos vários regimes, o mais mencionado é Humberto Delgado (mais em Santarém, Beja e Évora), seguido por Cândido dos Reis, Miguel Bombarda, Bento Gonçalves, Henrique Galvão e Amílcar Cabral.
11. Quer ir à Praça Cidade de São Salvador, na freguesia dos Olivais em Lisboa? Fácil: digamos que vem da Avenida Cidade de Lourenço Marques. Vira à direita para a Rua Cidade de Bissau e dali para a esquerda. Depois novamente à esquerda, para a Praça Cidade Salazar, onde pode ir fazer umas compras ao Minipreço. Dê meia volta e siga em frente. Na primeira à esquerda, vire para a Rua Cidade de Moçâmedes. É aí: junto à Rua Cidade de Lobito e perto da Rua Cidade de Carmona. Estes e outros topónimos, quero eu dizer, remetem de forma visível para o passado português – não fingindo que ele não existiu, o que é importante, mas com uma aparente indiferença que merece reflexão.
Serpa Pinto, Mouzinho de Albuquerque, Norton de Matos e Afonso de Albuquerque, administradores das políticas do regime nas ex-colónias, surgem destacados nesta lista, onde mais uma vez os distritos de Faro e Lisboa, a que se junta Setúbal, são os que mais homenageiam a missão colonial portuguesa. A administração além-mar parece ser menos importante para as populações de Braga, do Porto, de Viseu e dos mais politicamente desafectos Açores, Madeira e Viana do Castelo.
12. De entre as ‘Profissões’ aqui filtradas, quase todas as ruas referem os bombeiros e, em particular, os Bombeiros Voluntários. Há também uma quantidade importante de artérias sobre o operariado português, com as mais variadas designações (das quais destacamos o termo Operárias, existente no feminista distrito de Setúbal).
13. Por fim, chegámos à última categoria: a do Estado Novo (que aqui inclui figuras e factos da Ditadura Militar). Importa antes de mais referir que parte do motivo para esse menor peso estará em decisões como a lisboeta, em pleno PREC, de “eliminação dos nomes afrontosos para a população pela sua ligação ao antigo regime”. A lista ‘Estado Novo’ é liderada pelo Engenheiro Duarte Pacheco, seguido por Aristides de Sousa Mendes (cônsul no período salazarista, mas famoso por ter salvo mais de 30 mil judeus dos nazis) e pelos Marechais Gomes da Costa e Carmona. Este é particularmente visível em Loures. E também em Santa Comba Dão, localidade que conta também com um Largo Doutor Salazar e com uma Avenida Salazar, estranhamente não longe da Avenida General Humberto Delgado e de uma Praceta, uma Travessa e uma Rua José Saramago (nada que seja inusitado: na Atalaia, freguesia de Santarém, “a rua Oliveira Salazar entronca com a Capitão Salgueiro Maia”). Ruas com o nome do ex-ditador são, ao todo, 19 em todo o país, sendo que quatro ficam no distrito de Viseu e duas no do Porto. Do Cardeal Cerejeira há outras cinco e de Américo Thomaz três.
Passeio pela toponímia caricata de Portugal
Num país com muitas ruas e poucas avenidas, poucos largos, praças ou pracetas, poucos jardins e parques, são 163 (!) os tipos diferentes de artérias. Incluem-se aqui as muitas canadas e grotas açorianas, as cangostas minhotas, as levadas da Madeira, os quelhos portuenses, os regueirões de Lisboa, as subidas da Guarda (where else?), uma mão-cheia de couraças e um hemiciclo (João Paulo II, nas Caldas da Rainha). Se olharmos para os títulos dos antropónimos, vemos São (mais presente em Braga e em Viana do Castelo), Doutor (Beja e Guarda) e Padre (Açores, Madeira, Porto e Braga) a liderarem. Dom, Santa e Santo, Professor e Engenheiro, General e Capitão vêm depois.
Numa comparação entre as cidades de Lisboa e Porto, encontra-se naquela quase o dobro do número de artérias deste. O Porto tem mais ruas, travessas e pracetas; a ampla Lisboa conta mais largos, avenidas, becos e calçadas. Por sua vez, as diferenças entre os distritos do Minho e os do Alentejo notam-se na maior presença neste dos topónimos sobre a democracia, a 1ª República e a cultura nacional. Mas é mais evidente ainda nas designações de tipo espacial: no Minho há mais vezes Outeiro, Monte, Souto, Portela, Devesa, Veiga, Ribeiro e, talvez por isso, Bela Vista. Olhando para Madeira e Açores, encontramos naquela mais Achada, Serrado, Ladeira, Lombo, Vargem e, interesting enough, Autonomia; e vemos nos Açores mais Igreja, Cruz, Outeiro, Infante Dom Henrique e 25 de Abril.
Das 144 artérias com o nome ‘Projectada a (qualquer coisa)’, um nome provisório a virar definitivo, uma fatia significativa fica em Lisboa. A capital é também casa da Triste Feia, artéria que no nosso entender merece peregrinação, e do Beco do Vigário, “uma homenagem a um vigário hoje desconhecido”, de acordo com o site da Câmara Municipal de Lisboa dedicado à toponímia da cidade. Há ainda uma Praia Seca lisboeta, mas não cremos que ela rivalize com a Praia do Solário (Parede). Ali perto, em Oeiras, mantém-se viva a Rua do Lopes, ainda que a família Lopes já lá não resida, como garante José Pedro Machado no seu Ensaio sobre a toponímia do concelho de Oeiras.
Do outro lado do Tejo, a freguesia de Jardia, no Montijo, oferece-nos uma magnífica Rua dos Electrodomésticos. Partamos dali até Santiago do Cacém, mais especificamente até à Rua Gago Coutinho, antiga Ladeira do Quebra-Cus, e em seguida paremos na Rua Camilo Castelo Branco, em tempos Rua do Larilas. Não longe encontraremos a Travessa da Central Eléctrica, “feita pelo Sr. Reinaldo Mendes Liberato, que foi também encarregado da Central”, diz-nos o livro “Toponímia das ruas de Santiago do Cacém: breve história“. O autor, Manuel João da Silva, conta que esta foi anteriormente Rua da Judiaria e, antes ainda, Rua da Maria Caetana, “que foi encarregada do cemitério”.
Bem mais a sul, em Campo Maior, encontraremos um conjunto simpático de Ruas Salgueiro Maia, Zeca Afonso, Antero de Quental, Dom João de Portugal e Gil Eanes, bem como as Avenidas Calouste Gulbenkian e António Sérgio. O mesmo não se pode afirmar da Rua dos Degolados. Após inspirarmos fundo, prossigamos até Portimão e às suas Ruas de Marrocos e do Alcorão. Não longe, em Faro, encontraremos três das 21 artérias da Mesquita existentes em Portugal.
Subamos agora à Guarda, onde as Ruas do Encontro, da Fraternidade e da Paz merecem paragem. Em Toponímia histórica da Guarda, diz-nos Virgílio Afonso que existe por ali uma “limpa e airosa” Rua de Olivença, “rua sem saída” como já imaginávamos. Não paremos em Leiria, com a sua exclusiva Rua Só-Sócios (em Lameira), e avancemos para Estarreja e para a sua poética Rua do Amoníaco Português. Com a protecção de São Sardonisco (Real, Castelo de Paiva), exploremos ainda as belezas de Sobrado e Bairros, também freguesias de Castelo de Paiva. Ai deparam-se-nos as toponímicas Bichaca e Casa Queimada, bem como Casalesmo, Ladroeira, Pé do Coelho, Pensais e Além do Rego.
Pela Avenida da (sic) França, no Porto, sigamos caminho até Marco de Canaveses, lugar onde o Futebol Clube do Porto tem Avenida e Travessa (no Porto há apenas uma Via com o mesmo nome). Depois de uma paragem em Rodilhoco (na freguesia de Silvares, em Guimarães), talvez seja caso de apanharmos um avião que nos leve à Região Autónoma da Madeira, concretamente à Avenida das Partidas, em Santa Cruz. Foi deste arquipélago que saiu para Ponta Delgada o magnífico Brum, à época “senhor de grande fortuna”, nesta época senhor num topónimo. Brum tinha uma “renda” de “três mil cruzados” e, além disso, “em trato e negócio de pastel e de outras coisas, mais de trinta mil cruzados”, lê-se em Ruas com rosto: dicionário biográfico da toponímia de “Ponta Delgada vol. 1 Freguesias citadinas“, de José Andrade. Caso o leitor não esteja ainda cansado, recomendamos um último voo que o faça terminar esta magnífica viagem no Largo da Cerveja (Fajã de Baixo, São Miguel dos Açores). Com sorte, haverá lá esplanada e um prato de tremoços para acompanhar a bebida.
Rui Passos Rocha é editor de conteúdos digitais na Fundação Francisco Manuel dos Santos e aluno da pós-graduação em Visualização de Informação (Nova). Estudou também ciência política (ICS-ULisboa) e Ciências da Comunicação (UMinho).