Em meados da década de 1990, Luís Filipe Vieira já era um homem de negócios bem sucedido. Destacado empresário do ramo imobiliário, chegara aos órgãos sociais do FC Alverca pela mão de Manuel Ribeiro, a quem sucedeu na presidência do clube ribatejano em maio de 1991. Foi na era de Vieira, que durou mais de uma década, que o Alverca subiu de escalão, aumentou o estádio, construiu um pavilhão e constituiu a SAD.
Durante a revolução operada pelo empresário no Alverca, o filho mais velho de Vieira, Tiago, chegou aos 18 anos e começou a percorrer o caminho que o transformaria num dos homens fortes do pai. Esta quarta-feira, Tiago Vieira foi um dos detidos na mega-operação policial que resultou também na detenção do presidente do Benfica e dos empresários José Manuel dos Santos e Bruno Macedo. E acabou, este sábado, a ser libertado sujeito a uma caução de 600 mil euros, enquanto Luís Filipe Vieira está obrigado a pagar 3 milhões. Ambos estão impedidos de contactar os outros arguidos, vários envolvidos no processo, não se podem ausentar no país, mas Tiago pode falar com o pai, que fica em prisão domiciliária pelo menos até pagar o valor a que o juiz Carlos Alexandre o obrigou.
Juiz Carlos Alexandre decreta prisão domiciliária de Vieira até pagar caução
Descendente de um empresário de sucesso, Tiago Vieira podia ter tido uma juventude ociosa, fazendo uso do privilégio e do dinheiro familiar. Praticante de bodyboard desde os 10 anos de idade, era na praia que passava grande parte do tempo. Porém, assim que atingiu a maioridade, o pai empregou-o como montador de pneus na Hiperpneus, a empresa com que havia começado o império. O modo como geria a empresa, iniciada com o pequeno negócio Autopneus da Póvoa e rapidamente transformada na milionária Hiperpneus, tinha valido a Vieira o epíteto de “Kadhafi dos pneus” — ramo que abandonaria definitivamente em 1999 para se focar nos negócios imobiliários.
Foi como montador de pneus na empresa do pai que Tiago Vieira começou a ser preparado para se tornar, nas décadas seguintes, o braço direito de Luís Filipe Vieira nos negócios familiares — posicionando-se como sucessor óbvio na liderança das empresas de Vieira, sobretudo quando o empresário, hoje com 72 anos, começou a dedicar-se quase exclusivamente à liderança do Benfica, para a qual foi eleito em 2003 com 87% dos votos dos adeptos. Mas já desde a infância que Luís Filipe Vieira mantém uma ligação muito particular com o filho. Por volta dos 3 anos, Tiago adoeceu gravemente e necessitou de uma transfusão de sangue, um procedimento médico que ia contra as crenças da mãe (a mulher de Vieira, Vanda, é testemunha de Jeová). Teve de ser Luís Filipe Vieira a opor-se e a autorizar sozinho a transfusão — e desde essa altura que têm uma fortíssima ligação.
Segundo um perfil publicado em 2011 pelo Dinheiro Vivo, Luís Filipe Vieira quis ensinar desde cedo ao filho que seria com o trabalho, e não com os privilégios familiares, que ganharia a vida. Logo nos primeiros tempos, o primogénito do empresário deu sinal de que tinha jeito para o negócio — ao ponto de as gorjetas que recebia dos clientes serem mais elevadas do que o salário que tinha na empresa.
Ao jornal A Bola definiram-no como alguém “muito tranquilo”, “sereno e muito ponderado a decidir”, bem como uma pessoa “de extrema simplicidade no trato com as pessoas”. Para trás ficou a infância na Marisol, na Caparica, e as tardes na praia — mas não a paixão pelo surf e o bodyboard, que se mantém ainda hoje. Após a passagem pela Hiperpneus, Tiago Vieira foi estudar Comunicação Empresarial no Instituto Superior de Comunicação Empresarial (ISCEM), em Lisboa. Como de costume, não deu nas vistas. Não se destacou nos estudos, mas completou a licenciatura sem percalços. No ISCEM, deixou algumas memórias: “Era um aluno perfeitamente normal”, recorda um antigo professor. “Muito educado, um bocado tímido até.”
O curso abriu-lhe as portas a uma carreira nos negócios ao lado do pai. Depois de uma temporada a estudar nos EUA, regressou para seguir as pisadas paternas à frente das suas empresas — que entretanto cresceram, dos pneus para a construção civil e depois para o imobiliário. Com a chegada de Luís Filipe Vieira à presidência do Benfica, acelerou-se o processo de substituição do pai, já que este começou a ter cada vez menos tempo para outros projetos. Com a ajuda de Almerindo Duarte e de José Gouveia, Tiago Vieira foi entrando no meio empresarial.
Tiago fez parte, desde o início, da estrutura do grupo imobiliário do pai, a Promovalor, de que foi administrador para as áreas de prospeção e desenvolvimento de conceito, marketing e comercial. Em 2011, quando o Dinheiro Vivo publicou aquele perfil do sucessor de Luís Filipe Vieira, a Promovalor estava nas notícias pelas melhores razões — preparava-se um investimento milionário de sucesso num projeto imobiliário no Brasil, o primeiro grande êxito da empresa no estrangeiro, cujos méritos recaíram essencialmente sobre Tiago Vieira, uma vez que Luís Filipe Vieira, focado no Benfica, já participava pouco nas decisões quotidianas da empresa.
A inauguração do Sheraton Reserva do Paiva Hotel Convention Center, em Pernambuco, seria feita sem poupanças. Os convidados provaram risotto de frutos do mar feito pelo chef português Fernando Fonseca, consumiram várias garrafas de Veuve Clicquot e ainda puderam assistir a um espetáculo da cantora Maria Rita. Estávamos em 2014, ano de crise em Portugal, mas na inauguração do hotel criado pela Promovalor, não houve timidez financeira. Afinal de contas, tratou-se de um investimento avaliado em 50 milhões de euros e a diária mínima para ficar neste Sheraton é superior a 200 dólares.
Chegada a altura dos discursos, contudo, Tiago Vieira preferiu ficar na sombra, apesar de ser um dos principais responsáveis pelo projeto. Em nome da Promovalor falou antes Almerindo Duarte, outro dos administradores do grupo imobiliário e homem de confiança de Luís Filipe Vieira. O filho, apesar de estar presente e de, tal como o pai, ter subido ao palco, preferiu não ser o centro das atenções. Diz quem o conhece que sempre foi assim. Tiago Vieira é filho de um dos dirigentes mais conhecidos no futebol português e é um homem de negócios com presença em mais de 20 empresas. No entanto, comparece em poucos eventos, raramente dá entrevistas e é mais comum aparecer nas revistas do social do que nos jornais desportivos ou de referência. É discreto e resguarda-se dos holofotes. Por opção. Tem quatro filhos, de três casamentos.
Agora, o grupo imobiliário da família Vieira está na mira da justiça — uma vez que se trata de uma das empresas através das quais Luís Filipe Vieira é um dos principais devedores do Novo Banco. O presidente do Benfica esteve, aliás, recentemente no Parlamento para responder às perguntas dos deputados na comissão de inquérito que está a investigar as perdas do Novo Banco que são imputadas ao fundo de resolução, onde foi confrontado com o facto de ser o segundo maior devedor — 181 milhões de euros. Algo que disse desconhecer e com o qual se mostrou surpreendido.
A trama adensa-se devido ao fundo de investimento destinado a recuperar o crédito para o Novo Banco, gerido pela C2 Capital Partners, uma sociedade de investimento que também foi alvo de buscas esta quarta-feira. A C2 Capital Partners, antiga Capital Criativo, é liderada por Nuno Gaioso Ribeiro, antigo vice-presidente do Benfica, e foi o próprio Luís Filipe Vieira a impor ao Novo Banco o recurso àquela sociedade. Entre os acionistas da Capital Criativo encontrava-se, em 2017, ano em que a proposta de reestruturação da dívida foi assinada, Tiago Vieira.
Como Vieira é suspeito de ter prejudicado a SAD do Benfica para fins pessoais
O Ministério Público suspeita de que Luís Filipe Vieira terá tentado enganar o Novo Banco neste processo de reestruturação da enorme dívida contraída junto do Banco Espírito Santo. No fim de contas, o Fundo de Resolução (ou seja, o Estado; ou seja, os contribuintes) foi um dos principais lesados — e o Departamento Central de Investigação e Ação Penal reconheceu que os alegados crimes de Vieira estão avaliados em mais de 100 milhões de euros e poderão ter conduzido a “elevados prejuízos para o Estado”.
A mágoa do pai e o desejo de manter um low profile
Tiago Vieira começou por ser administrador na Inland, especialista em promoção imobiliária e turística, que mais tarde seria integrada na holding Promovalor. Na mesma altura, substituiu também o pai na SAD do Alverca. Atualmente, mais de 15 anos depois, participa na gestão de mais de 20 empresas, sobretudo do ramo imobiliário, relacionadas com o legado do pai.
O cargo no Benfica tirava muito tempo a Luís Filipe Vieira, o que acabou por forçar Tiago a adaptar-se sozinho ao meio empresarial. Foi o próprio presidente do clube que o confessou, em entrevista ao Record em 2015: “Há uma mágoa que tenho… O meu filho, em termos empresariais, cresceu sozinho, não estive ao lado dele. Foi mau. Devia ter estado mais perto dele”, disse. Foi um dos poucos desabafos a que Vieira pai se permitiu, numa entrevista, sobre o filho. Geralmente, o líder dos encarnados prefere preservar a sua vida pessoal e raramente fala ou aparece em público com a mulher ou os filhos (Tiago tem uma irmã mais nova, Sara, bióloga de profissão). E o filho nunca gostou da exposição que o Benfica trouxe ao pai e à família, como garantia o Record num perfil de Luís Filipe Vieira em 2003.
Mas foi graças ao pai que Tiago se viu desde cedo com várias empresas nas mãos para gerir. De todas, a Promovalor é aquela que dá mais nas vistas, levando a cabo projetos imobiliários no valor de milhões. Em Portugal, a empresa criou projetos como um condomínio privado no Chiado (onde o próprio Tiago chegou a viver com a ex-mulher, a antiga jornalista Ana Carreteiro), um resort no Algarve e um hotel no Parque das Nações. Em 2013, o Grupo Inland chegou mesmo a investir 20 milhões de euros num projeto residencial de nome Quinta do Aqueduto, em Santo Antão do Tojal.
Tiago Vieira foi o principal rosto da internacionalização da Promovalor. O próprio assumia na imprensa especializada, em 2014, que esse era um dos objetivos do grupo. “A internacionalização é, claramente, um dos vetores estratégicos para o nosso crescimento. O Brasil, por exemplo, já representou 40% do nosso volume de negócios”, disse, referindo-se ao hotel Sheraton em Pernambuco. Para além do Brasil, Tiago Vieira focou-se em Moçambique. Com um investimento bem mais tímido, de apenas 30 milhões, a Promovalor construiu o edifício Platinum em Maputo. Dessa vez, o parceiro não foi a brasileira Odebrecht [investigada no processo Lava Jato], mas sim a Rioforte [investigada no caso BES e no caso Marquês], do Grupo Espírito Santo, e a construtora moçambicana MMD. “O Platinum marca a entrada do grupo Promovalor no mercado moçambicano. Estamos convictos de que este projeto será considerado um ícone na Avenida Julius Nyerere, em Maputo”, anunciava à altura Tiago Vieira.
No portefólio de empresas onde Tiago Vieira é administrador e gestor há um claro padrão: estão quase todas dentro do ramo imobiliário. Contudo, o filho de Luís Filipe Vieira assumiu o lugar do pai nas empresas em que ele participava quando foi para o Benfica, o que inclui um cargo como vogal no Conselho de Administração da SAD do Alverca. Luís Filipe Vieira foi presidente do clube, que deixou para se lançar no Benfica, deixando no entanto o filho dentro da estrutura do clube local, apesar de à altura ter apenas 24 anos. Esse papel, no entanto, foi sempre mais formal do que efetivo, segundo apurou o Observador. “O Tiago não tinha influência na estrutura. Ia lá porque era filho do Luís. Era um miúdo, no fundo”, resume um antigo dirigente do Alverca.
Nome de Tiago Vieira surge em vários casos
Ao longo da última década, à medida que Luís Filipe Vieira se dedicou crescentemente ao Benfica, Tiago Vieira assumiu cada vez mais responsabilidades na gestão dos milionários negócios de família. Por isso, o seu nome acabou sempre por surgir, de um modo ou de outro, quando o presidente do Benfica se viu a braços com polémicas e casos na justiça.
Um dos exemplos remonta a janeiro de 2018, quando eclodiu a controvérsia em torno da ida do então ministro das Finanças, Mário Centeno, a um jogo entre o Benfica e o FC Porto em abril do ano anterior. Como noticiou na altura o Observador, Centeno pediu, através do assessor diplomático do Ministério, ao Benfica que lhe fossem atribuídos dois lugares na tribuna presidencial do estádio da Luz: um para si e outro para o seu filho. O caso gerou polémica, sobretudo porque ainda estava bem vivo na memória dos portugueses o caso Galpgate (que envolveu as viagens de vários responsáveis políticos a França para ver jogos da Seleção no Euro 2016), que levara à criação de um código de conduta para políticos.
Poucos dias depois, o Correio da Manhã associou esta notícia a uma outra que havia sido conhecida em setembro de 2017 através da revista Sábado.
Ministro das Finanças pediu lugares para si e para o filho para o Benfica-Porto da época passada
O e-mail do assessor diplomático de Centeno pedindo os bilhetes na tribuna foi enviado à direção do Benfica no dia 17 de março de 2017. Uma semana depois, a 24 de março, Tiago Vieira enviou, a partir do seu endereço da Promovalor, um suspeito e-mail a Luís Filipe Vieira: “Pai, Já cá canta!!!!! Sem o teu empurrão não íamos lá. Beijo grande.” O filho do presidente do Benfica agradecia a Vieira um “empurrão” num processo com vários meses que envolvia uma outra empresa imobiliária da família, a Realitatis, que havia comprado e reabilitado um prédio em Lisboa, e que queria vender. Todavia, Tiago Vieira pretendia que a câmara de Lisboa reconhecesse que o imóvel reabilitado estava isento de IMI — algo que só aconteceria em março de 2017, depois do tal “empurrão” de Vieira.
A coincidência temporal dos dois factos — os bilhetes de Centeno e a isenção fiscal concedida ao filho de Vieira uma semana depois — levou a Unidade de Combate à Corrupção da Polícia Judiciária a investigar o caso, mas o Ministério das Finanças apressou-se a dizer que Centeno não teve qualquer intervenção no caso, até porque se trata de um procedimento normal para imóveis reabilitados e que passa apenas pela autarquia.
Também em janeiro de 2018, Luís Filipe Vieira foi constituído arguido na Operação Lex, o caso que envolve os crimes de tráfico de influência, fraude fiscal e branqueamento de capitais alegadamente cometidos pelo juiz desembargador Rui Rangel. Mais tarde, o presidente do Benfica viria mesmo a ser acusado de um crime de recebimento indevido de vantagem no âmbito deste processo. Segundo a acusação, Vieira teria prometido a Rui Rangel um cargo no Benfica e ter-lhe-ia oferecido viagens para ir ver os jogos do clube da Luz ao estrangeiro. Em troca, Vieira teria pedido ajuda ao juiz numa ação pendente num tribunal administrativo e fiscal.
Esse problema pendente estaria relacionado com uma dívida fiscal de mais de um milhão de euros em IRS do filho Tiago, que chegara aos tribunais. Como noticiou na altura o Jornal Económico, Luís Filipe Vieira pretendia que Rui Rangel influenciasse a decisão judicial para que o filho saísse vencedor do conflito. Ao mesmo jornal, Tiago Vieira veio desmentir a história: “É completamente falso que tenha uma dívida de IRS superior a um milhão de euros. E acresce que também não tenho nenhuma dívida em qualquer entidade tributária.” Na altura, apesar de o nome ter sido mencionado, Tiago Vieira não foi constituído arguido no âmbito da Operação Lex; agora, com o presidente do Benfica detido e investigado por crimes como burla qualificada ou fraude fiscal, também o filho discreto saiu da sombra do pai e foi detido.
* Com Cátia Bruno
Artigo corrigido às 18h39 de dia 12 de julho de 2021: foi retirada a referência à Promovalor enquanto acionista da Capital Criativo em 2017.