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Bastien Menant não é novo nestas andanças. Aos 29 anos, este professor de História do ensino secundário já foi voluntário em campanhas da França Insubmissa quatro vezes: nas legislativas de 2022, nas últimas presidenciais para tentar eleger Jéan-Luc Mélenchon e, mais recentemente, nas europeias deste mês de junho. Agora, aqui está novamente, a fazer campanha pela nova Frente Popular, à porta do teatro de Saint-Maur-des-Fossés, uma pequena cidade nos subúrbios do sudeste de Paris.
Distribui folhetos para os que vêm ouvir o candidato da FI que concorre nesta primeira circunscrição do Val-de-Marne (território habitualmente favorável à esquerda), Lyes Louffok, e aqueles que convidou para um evento a propósito da defesa dos direitos da criança — um tema que lhe é caro, já que ele próprio cresceu “no sistema”, saltando de família de acolhimento para família de acolhimento. E, para provar que este é de facto um evento da Frente Popular e não apenas da FI, até terá como companhia Laurence Rossignol, antiga ministra com a pasta da Família e figura histórica do Partido Socialista.
Uma estratégia que, explica o jovem de Marselha ao Observador enquanto entrega os folhetos vermelhos, tem uma lógica: Saint-Maur-des-Fossés é uma espécie de “ilha” conservadora dentro deste feudo da esquerda. “É um círculo eleitoral muito difícil, sim. Créteil, por exemplo, é uma cidade bastante popular do outro lado. Champigny-sur-Marne, aqui perto, também. Mas Saint-Maur é uma cidade muito rica, muito burguesa, que fica no meio”, explica. “Aqui nunca foi construída habitação social, por exemplo.” E, perante um eleitorado menos fácil, uma evento eleitoral deste género, em vez de um comício, talvez possa ser mais eficaz: “Assuntos como a proteção das crianças, por exemplo, talvez possam atingir o eleitorado um pouco mais burguês de Saint-Maur. Porque todos querem saber das crianças, não apenas as pessoas das classes trabalhadoras”, assume.
A admissão das dificuldades é equilibrada com alguma esperança: “Já tivemos sucesso nas últimas legislativas, atingimos 41% na segunda volta, o que não é mau. Desta vez, ficámos em primeiro na primeira volta”, diz, continuando a cumprimentar todos os que chegam. Ainda há esperança, tenta convencer-se o voluntário. Pelo menos neste círculo eleitoral.
No palco, o apelo ao voto. À porta, o reconhecimento das dificuldades para a Frente Popular. “Infelizmente, a dinâmica não está do nosso lado”
Dentro do teatro, o candidato Louffok aproveita naturalmente para ligar a questão dos direitos infantis ao voto do próximo domingo. “Se o programa da União Nacional vencer, França será o primeiro país a sair da Convenção dos Direitos da Criança. Seria um desastre. A comunidade LGBT, as mulheres, os não-brancos, as classes desfavorecidas, todos estão em risco”, alerta o candidato, perante o auditório cheio — mas aparentemente pouco entusiasmado.
“O perigo da UN no nosso círculo eleitoral é real”, afirma. “Estamos a falar de possíveis alianças com pessoas que votaram contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo.” O nome não é dito, mas Louffok está a referir-se concretamente não à candidata local da extrema-direita (Anne-Gaëlle Sabourin), mas ao deputado dos Republicanos (centro-direita), Sylvain Berrios, antigo autarca local e também deputado da Assembleia Nacional.
A presença de Berrios neste círculo eleitoral complica as contas para a esquerda — já que, ainda por cima, contou com a desistência a seu favor do candidato macronista local. Bastien admite que os ventos não são de feição para a Frente Popular naquela zona, mesmo estando a apenas sete minutos de carro do outro círculo eleitoral de Creteil, onde Clémence Guetté — figura destacada da FI e próxima de Jéan-Luc Mélenchon — foi eleita logo na primeira volta.
“Com as desistências de alguns macronistas a nosso favor, penso que podemos conseguir impedir uma maioria absoluta da UN“, começa por explicar o professor de História. “Mas não sei se, com uma maioria relativa, eles não vão tentar atrair Republicanos como Berrios“. Como travar isso, se as sondagens indicam que a Frente Popular, apesar de provável segunda classificada, continuará a ser incapaz de formar uma maioria que lhes dê a governação? “Se conseguirmos empurrar os macronistas para que nos apoiem”, atira para o ar, com pouca convicção. “Está tudo em aberto. Mas, para mim, não está assim tanto. Infelizmente, a dinâmica não está do nosso lado”, concede.
Dentro do auditório, porém, ainda se acredita. “As pessoas dos bairros populares estão cada vez mais afastadas da política. Temos de combater isto”, vai dizendo o candidato Louffok no palco. “A Frente Popular é a única capaz de combater este sentimento de abandono. ‘Liberdade, fraternidade, igualdade’. No domingo, todos a votar”, apela, com os participantes a aplaudirem fortemente e a repetirem-se os gritos de “Frente Popular! Frente Popular!”
A Frente Popular de 1936 e a nova edição de 2024. Para os mais velhos, há muito pouco a uni-las — e a atual é demasiado “extremista”
Mas não é preciso caminhar muito pelas ruas de Saint-Maur para perceber que a situação está difícil para a esquerda aqui, apesar de estar tão perto dos banlieus de Champigny, que lhe são tradicionalmente favoráveis. “Quantos franceses racistas já ouviu hoje por aqui?”, pergunta numa loja ao Observador um imigrante (que preferiu não se identificar).
Passeando pelas ruas da pequena cidade, sucedem-se as bonitas vivendas, com jardins bem arranjados e portões com sistemas de segurança ativos. Pouca gente caminha a pé, preferindo o carro. As “classes populares” de que Louffok fala são praticamente invisíveis aqui, resumidas a um ou outro restaurante de kebabs ou a fregueses portugueses que bebem Super Bock num café local. À medida que se caminha do centro para uma zona mais nobre da cidade, com vista para o rio Marne, é cada vez mais claro que a 1.ª circunscrição de Creteil é muito diferente da segunda — e que, aqui, o nome “Frente Popular” não evoca as boas conotações que muitos franceses sentem em relação à Frente de Esquerda de Léon Blum, dos anos de 1930.
Nada como perguntar a quem tem mais idade para se lembrar, indo ao lar de idosos ABCD Abbaye, com vista direta para o Marne. As instalações deste lar semi-público (o Estado assegura 50% da mensalidade de cada um dos 209 utentes) são quase de luxo. Para além de cabeleireiro, loja de roupa, biblioteca e outras comodidades, todos têm um quarto privativo. Na porta, está o nome de cada um. Rémi Esnoult aceita falar com o Observador, não apenas sobre as histórias que ouviu dos seus pais acerca da Frente Popular original, como sobre toda a situação política atual do país.
“Não tenho memórias da primeira Frente Popular [só nasceria oito anos depois de ser criada], mas lembro-me muito bem do que os meus pais me contavam”, diz o reformado de 80 anos. “Foi a Frente Popular que deu às pessoas pela primeira vez férias pagas. As pessoas não acreditavam — havia gente que foi trabalhar à mesma na segunda-feira e foi mandada para casa pelos patrões!”, conta, soltando uma gargalhada. Apesar de os seus pais estarem longe de se assumirem como sindicalistas ou até próximos da aliança do socialista Blum com comunistas e outros partidos de esquerda radical, os Esnoult nunca esqueceram as primeiras férias que tiraram e que lhes permitiram ver o mar pela primeira vez.
Mas esses tempos, diz, já lá vão. “A Frente Popular de 1936 não tem muito a ver com a de 2024”, decreta. Os problemas? Uma elevada dívida pública, carências sociais, dependência face a Bruxelas, enumera. “Sim, eles podem até avançar com algumas medidas sociais. Acho que há pessoas entre eles que talvez sejam muito interessantes e que seriam muito capazes, mas aliaram-se a outros muito extremistas — mais comunistas do que os próprios comunistas“. Isso, diz, incomoda-o, porque não gosta “dos extremos”.
Não é por isso de admirar que, no próximo domingo, não vão contar com o seu voto. Também não apoia a UN por se considerar um eleitor “do centro” (“embora tenha um amigo aqui no lar que sim e que certamente vai ficar muito contente”, confessa entre risos), mas porque irá votar em Berrios, o antigo autarca. “Ainda por cima é meu amigo há mais de 20 anos”, admite, apontando para os papéis de campanha do candidato que mantém pousados na mesa, ao lado da televisão. Não está demasiado preocupado com o resultado da eleição do próximo domingo: “Não estou a dizer que quem vier e nos liderar, o próximo governo, será o melhor. Mas, como se costuma dizer, on vera.”
Noutra ponta da residência sénior, Lydie Richards não consegue manter o mesmo otimismo ou resignação. Quando o Observador bate à porta do seu quarto, pede desculpas pelo “estado” em que se encontra. Está de lágrimas nos olhos. “Estava a ver as notícias e… é isto”, confessa, enxugando os olhos à pressa com os dedos. “É a primeira vez na minha vida que passo por isto”, confessa a reformada de 94 anos. “Penso que as pessoas estão muito infelizes. Para as coisas estarem assim tão mal politicamente é porque muita gente não pode estar a passar bem. Todos deviam poder trabalhar e ganhar uma vida decente através do seu trabalho.”
Apesar do discurso aparentemente semelhante ao da Frente Popular, não é líquido que a frente de esquerda vá contar com o voto de Lydie. A reformada e antiga dona de casa faz uma distinção entre uma maioria absoluta da UN — que diz que poderia levar “a uma guerra civil” — e um governo que possa emergir mais à esquerda, que não levaria a um “transbordar” da sublevação, garante. E deixa críticas ao Presidente Emmanuel Macron: “Chegámos aqui por causa dele, preocupa-se mais com os outros países do que com França”.
Mas não se cansa de reforçar que é uma eleitora “do centro”, que não gosta do “extremismo” e que espera que haja um entendimento centrista. Classifica a primeira Frente Popular como algo positivo, mas deixa subentendido que não é uma eleitora desta nova FP: “A primeira Frente de Esquerda foi uma coisa boa em termos sociais para muita gente, mas não podemos estar sempre no campo dos extremos”, declara enfaticamente,
Nota que tem opiniões políticas diferentes de alguns dos seus filhos e netos, mas reforça que “sabe quem quer” para aquele círculo eleitoral. O importante depois de domingo, sublinha, é que se forme algum tipo de coligação, com interesses comuns para o país. “Se os políticos não tiverem inteligência — ia dizer coração, mas isso não existe na política — e não formarem uma aliança neste momento em que a França está dilacerada, preocupo-me muito pelas gerações futuras.”
Nascida em 1930, Lydie tem memórias do período difícil da II Guerra Mundial em França. Mas nem esse momento se compara ao atual, garante: “Tivemos a guerra, estávamos muito infelizes. Quando a Guerra acabou, tudo teve de ser reconstruído. Mas aí estávamos felizes, foram les belles années, porque estávamos unidos nesse propósito. Como é que perdemos isto tudo?“, questiona-se.
Entre os apoiantes da Frente Popular, as opiniões dividem-se. Bastien crê que Mélenchon às vezes diz asneiras. Já Abdellah pediu a Mélenchon: “Seja mais radical!”
O voluntário da FI, Bastien Menant, tem noção de como muitos ali encaram o seu partido como “extremista”. E tenta justificar-se face às acusações de antissemitismo, por exemplo, que têm ensombrado alguns candidatos do partido: “Como professor, luto no meu dia-a-dia contra isso. Todos os dias, tento combater certos estereótipos dos nossos alunos, especialmente dos bairros problemáticos, que não conhecem judeus pessoalmente. Digo-lhes que Cristo era judeu e isso abala-os, por exemplo, o que é o meu objetivo. Tal como eu e como muitas pessoas de esquerda, sempre combatemos o antissemitismo, de manhã à noite, e isso está no nosso ADN político. Chamarem-nos de antissemitas dói“, confessa.
E, no entanto, é o próprio voluntário que reconhece que as declarações do líder do seu partido, Jéan-Luc Mélenchon, são por vezes tiros no pé. “Ele fala tanto que às vezes diz asneiras, pode acontecer”, nota, dando como exemplo a recente afirmação de que a visita do atual presidente da Assembleia Nacional a Telavive foi “um acampamento para encorajar um massacre”. Mas, para Bastien, o problema está na “instrumentalização” que fazem das suas palavras, diz. E vira a acusação de antissemitismo contra a UN, relembrando que a proposta relativa ao fim da dupla nacionalidade “é a reciclagem de uma velha coisa antissemita em França, de suspeita em relação aos judeus”, dando como exemplo o caso Dreyfus.
Dentro da própria Frente Popular, as costuras começam a enfraquecer ainda antes da própria eleição. Esta sexta-feira, François Ruffin — deputado da FI há muito em desacordo com a sua direção — anunciou que não irá sentar-se na bancada do partido se for eleito, por causa do líder: “Mélenchon é um obstáculo ao voto [na Frente Popular]”, afirmou. E logo Raphaël Glucksmann, candidato socialista destacado, reforçou a ideia: Mélenchon, disse, “é um enorme problema”. “Nunca desistirei da emergência de uma social-democracia no nosso país e isso exige romper com o som e a fúria”, resumiu.
Mas na véspera, no teatro de Saint-Maur-des-Fossés, a antiga ministra socialista Laurence Rossignol não tinha como adivinhar que os ventos poderiam mudar no dia seguinte e mantinha o rumo. No palco, continua focada no tema dos direitos das crianças e aproveita para ir dando algumas alfinetadas a outros candidatos. “Macron diz que reformulou o Estado, o que é estranho, porque ele continua disfuncional”, comenta a certa altura. E quanto a uma possível vitória da UN e o apoio de “até alguma direita”? “Eles glorificam a autoridade parental. A chegada deles ao poder será um recuo na questão dos direitos infantis”, decreta.
Abdellah Ouahhabi, que a escuta com atenção, não aguenta mais e levanta-se para sair do anfiteatro. Seguido pelo Observador, desabafa de imediato: “Está a ouvir isto? Viu isto? Isto é o PS+, não é a verdadeira esquerda”, lamenta-se. “Estou desiludido. Onde estão as classes baixas? Ali dentro só há classe média. Viu lá algum Mamadu [expressão com conotação racista em França para caracterizar homens negros]? Viu lá algum operário?”
Não é que Abdellah, antigo realizador de televisão agora reformado, não seja de esquerda. Bem pelo contrário: estudou na antiga União Soviética e, desde que chegou a França aos 30 anos, votou frequentemente no Partido Comunista Francês. Argelino nascido numa família muçulmana (“mas hoje em dia ateu, atenção”), diz que muitos franceses ainda olham para os imigrantes como “os indígenas”. E, no entanto, admite que chegou a votar em Marine Le Pen, nas presidenciais de 2022: “Macron falhou e era preciso abanar o sistema. Olhe para as reformas: se não as indexam ao aumento do custo de vida, não serve para nada. Tenho amigos com reformas de 400, 600 euros. Como podem sobreviver?”, questiona-se.
Para este comunista veterano, “tudo começa na igualdade económica”. ” E eles estão para aqui a falar dos direitos das crianças”, lamenta-se. Recorda uma conversa que teve uma vez com Mélenchon, quando trabalhava na televisão, em que lhe disse que poderia vencer eleições, se falasse “dos temas certos”. “Ele respondeu-me ‘Eu sou um radical’, e eu disse-lhe: ‘Então seja mais! Porque as pessoas estão a passar fome!’”.
Apesar de achar que a Frente Popular deveria ser ainda mais radical do que é — e desvalorizando as acusações de antissemitismo, por exemplo, como “uma confusão em França, onde cada crítica a Israel é vista como sendo um ato antissemita” — Abdellah admite que irá à mesma votar na Frente Popular no próximo domingo. “Já lhes dei dinheiro e tudo, mas…”, desabafa, abanando a cabeça em tom de reprovação enquanto olha para o cartaz maior à entrada do edifício. “São o mal menor, apenas isso.”
E quanto à evocação histórica de 1936, para que remete o nome Frente Popular? Abdellah não tem idade para se recordar — só chegaria a França na década de 1970. “Mas estudei”, admite, o que tenta comprovar com as várias citações que despeja de forma quase frenética, saltando de Gramsci para Boutros Boutros-Ghali em poucos minutos.
“O que foi a Frente Popular de 1936? Bem, foi uma resposta a uma situação social que estava tão mal que os socialistas tiveram de se aproximar dos radicais”, resume. Mas essa situação, diz, é agora irrepetível, por muito que o primeiro-ministro Gabriel Attal fale na “barragem contra a extrema-direita” e abra até os braços à FI de Mélenchon. “Agora eles têm de se manter juntos, senão não sobrevivem. Mas depois? Depois da eleição tudo isto vai implodir.”