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“Gostaria, porém, que nos fizesse um favor.” Foi essa a frase do telefonema entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky que ficou a pairar no ar na tarde de quarta-feira, depois de a Casa Branca divulgar a transcrição da conversa. O tom, apontou o líder democrata do comité das secretas, Adam Schiff, era semelhante ao de “uma extorsão clássica da máfia” — uma comparação que não é nova e que foi invocada, em tempos, pelo antigo advogado de Trump, que entretanto se virou contra si, Michael Cohen.
O “capo” Michael Cohen tentou ferir o “Padrinho”. O golpe terá sido fundo?
A transcrição deixou muitos nos corredores de Washington indignados, clamando por um impeachment. Mas aquilo que aconteceu esta quinta-feira reforçou ainda mais as certezas de que os democratas, que controlam a Câmara dos Representantes, vão mesmo aprovar o procedimento para destituir o Presidente na câmara baixa do Congresso. “Ontem, com a transcrição, já parecia provável. Hoje, a esta altura, é extraordinariamente provável”, afirmou ao Observador, esta quinta-feira, a especialista em Direito Público da Universidade de Loyola, Jessica Levinson, referindo-se à publicação da denúncia de um whistleblower e ao testemunho do diretor interino do Serviço de Informações no Congresso.
“Sim, acredito que há provas suficientes para isto avançar. Agora acho mais do que provável que o Presidente Trump seja alvo de impeachment pela Câmara dos Representantes”, reforça Richard Arenberg, professor da Universidade de Brown especialista em procedimentos do Congresso, ao Observador.
Ou seja, essa fase do processo parece ter ficado quase garantida depois dos acontecimentos do dia, que incluíram ainda duas notícias relevantes. Primeiro ficou a saber-se que, na semana passada, já depois de o caso ter sido tornado público, Trump deixou um aviso a raiar a ameaça à sua equipa, exigindo descobrir quem era o whistleblower: “Sabem o que é que fazíamos nos velhos tempos, quando éramos espertos, aos espiões e à traição?”. Primeiro chegou o relato, depois a gravação áudio dessa reunião com o staff da Casa Branca:
Depois chegou o primeiro dado sobre a identidade do autor da denúncia: ironicamente, será mesmo um espião, um agente da CIA.
Antes desses detalhes, a que já iremos, é preciso relembrar que a quase certeza de que o processo de impeachment passe no Congresso não significa uma destituição certa do Presidente. Para isso, seria preciso que os republicanos, que controlam o Senado, também tivessem ficado convencidos pelas provas apresentadas de que Donald Trump cometeu “traição, suborno ou outros crimes maiores e delitos”, como exige a lei para que um Presidente seja destituído. Mas, seja qual for o resultado final deste processo que ainda agora começou, uma coisa é certa: o último ano deste mandato de Trump promete ser muito, muito complicado.
A denúncia do whistleblower
Pouco passava das 9h da manhã (14h em Lisboa) quando a bomba rebentou. Um dia depois de a Casa Branca divulgar a transcrição da conversa entre Trump e Zelensky, era agora a vez de ser divulgada, na íntegra, a queixa do denunciante dos serviços de informação que envolve o Presidente. E o seu conteúdo foi particularmente pesado porque trouxe ao de cima uma palavra séria, com ecos de Watergate: encobrimento.
A denúncia do tal whistleblower trouxe dois pontos que servem como pano de fundo ao telefonema de Trump e que agravam as suspeitas que pendem sobre si: o contexto dos contactos que o advogado pessoal do Presidente, Rudy Giuliani, andava a ter com responsáveis ucranianos; e o facto de, aparentemente, muita gente na Casa Branca ter tentado esconder as transcrições da chamada considerada “preocupante”. Se os republicanos haviam passado o dia de quarta-feira a sublinhar que, na chamada, não havia um quid pro quo claro — uma oferta em troca do pedido de investigação ao adversário Joe Biden e ao filho —, os dados fornecidos pelo denunciante dão força à teoria de que a recompensa em troca do “favor” pode mesmo ter sido a ajuda militar e financeira que já estava prometida à Ucrânia.
Em primeiro lugar, as ligações entre as ações de Giuliani — que anda a fazer lobbying junto dos responsáveis ucranianos para que investigue os Biden já há alguns meses — ficaram mais claras. “Soube junto de vários funcionários do governo dos EUA que, a 2 de agosto ou por volta desse dia, o Sr. Giuliani alegadamente viajou para Madrid para se encontrar com um dos conselheiros do Presidente Zelensky, Andriy Yermak. Os funcionários descreveram esta reunião, que não foi referida em público à altura, com um ‘follow-up direto’ da chamada do Presidente com o Sr. Zelensky sobre os ‘casos’ que eles tinham discutido”, escreve o denunciante.
Em segundo lugar, o facto de, segundo o whistleblower, vários responsáveis na Casa Branca terem tentado esconder registos do telefonema: “Funcionários da Casa Branca disseram-me que tinham sido ‘instruídos’ pelos advogados da casa Branca para retirarem a transcrição eletrónica do sistema informático em que essas transcrições são geralmente guardadas para fins de coordenação, finalização e distribuição a ministros. Em vez disso, a transcrição foi colocada num sistema eletrónico separado que é utilizado para armazenar, e lidar com, informação classificada de uma natureza sensível.”
“O maior significado desta denúncia é que põe tudo às claras”, diz o professor Arenberg. “A transcrição do próprio telefonema e as declarações do Presidente a defender os seus esforços para que o Presidente ucraniano investigasse Joe Biden e o filho já são preocupantes. Aquilo que o denunciante agora diz é que a Casa Branca tentou encobrir a chamada. Isso também terá de ser investigado”, explica.
Jessica Levinson vai ainda mais longe: “As pessoas são capazes de perdoar um escândalo, mas não um encobrimento”, afirma a especialista em Direito Público. “O telefonema já era preocupante, mas, quando se tem alguém a dizer que houve um esforço para esconder isto da opinião pública, já parece abuso de poder. E o abuso de poder é o protótipo de um impeachment.”
O testemunho do diretor das secretas
Cerca de 40 minutos mais tarde, o diretor interino dos Serviços de Informação Nacionais, Joseph Maguire, entrava no Capitólio para testemunhar perante os congressistas do comité das secretas na Câmara dos Representantes. Aquilo que aconteceu nessa sessão também não favoreceu, de todo, o Presidente.
“Acho que o denunciante fez a coisa certa”, declarou perante os congressistas, referindo-se à denúncia apresentada. Durante as várias horas da sessão, o chefe das secretas classificou a denúncia como “credível”, “importante”, “única” e “sem precedentes”, algo que, como aponta Richard Arenberg, “contrasta drasticamente com o que o Presidente tem dito”. Trump tem repetidamente acusado o denunciante de ter “motivações partidárias” e de estar a levar a cabo um “trabalho mal feito”.
Joseph Maguire recusou classificar as ações de Trump como ilegais, mas não poupou nos adjetivos: “É despropositado, indesejável e mau para a Nação que haja interferências externas de uma qualquer potência estrangeira”, afirmou, para classificar o que aconteceu.
O único ponto onde Maguire pareceu ficar ao lado da Casa Branca foi naquilo que se relaciona com as suas próprias ações. Para justificar o facto de não ter apresentado antes a denúncia ao comité do Congresso, o diretor das secretas relembrou que o telefonema com Zelensky estava protegido pelo “privilégio executivo” do Presidente. “Não tenho autoridade para retirar esse privilégio”, relembrou.
Democratas avançam. Porquê agora?
Na sequência da publicação da denúncia e do testemunho de Maguire, a líder dos democratas na Câmara dos Representantes, Nancy Pelosi, apressou-se a repetir: “Isto é um encobrimento, isto é um encobrimento”.
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Pelosi deu o pontapé de saída para o processo de impeachment esta semana, depois de meses a resistir aos apelos dos seus colegas de partido — mesmo após a publicação do relatório Mueller, onde foram levantadas suspeitas de ações de obstrução à Justiça por parte do Presidente. Em março deste ano, relembra a New Yorker, Pelosi dizia não estarem reunidas as condições para uma destituição: “O impeachment é um instrumento tão polarizador para o país que, a não ser que haja algo tão convincente e tão impressionante que se torne um assunto bipartidário, não creio que se deva entrar nesse caminho, porque divide o país.” Agora, seis meses depois, o assunto continua a não ser bipartidário, mas Pelosi parece ter mudado de ideias.
Essa mudança dá-se, por um lado, pela pressão interna do seu próprio partido e pelo aproximar da campanha eleitoral, mas não só. Como aponta ao Observador Brian Kalt, professor de Direito da Michigan State University, há uma razão muito forte para os democratas avançarem agora para um impeachment e para não o terem feito com o caso Mueller: “As provas agora são mais claras. Em vez de uma série de reuniões e documentos complicados e de um grande elenco de personagens, este caso envolve um simples conjunto de factos que ninguém parece estar a pôr muito em causa.” Desta vez, como aponta Levenson, “é mais fácil” que a opinião pública “compreenda” esta narrativa: “Ele tentou subornar os ucranianos ou não?”, resume como sendo a questão essencial do caso.
Kalt aponta ainda um segundo ponto a favor de um processo de impeachment com este caso que o relatório Mueller não trazia: “Isto diz respeito a eleições que ainda vão acontecer. O caso Mueller estava relacionado com eleições que já tinham acontecido. E não é suposto um impeachment punir comportamentos passados, mas sim proteger o povo de um dano que está a ser levado a cabo por um malfeitor que está no cargo.”
Republicanos com Trump. Até quando?
Do lado dos democratas, tudo se clarifica e, na opinião dos especialistas ouvidos pelo Observador, é praticamente certo que um impeachment acabará por ser aprovado na câmara baixa do Congresso.
Menos claro é o que pode acontecer quando o processo transitar para o Senado, atualmente dominado pelo Partido Republicano. A primeira reação dos senadores do Partido foi a de cerrar fileiras em torno do Presidente — com a única exceção do antigo candidato presidencial Mitt Romney, que se disse “preocupado”. A maioria discordou: “Não estou preocupado, não me parece que haja quid pro quo”, disse Lindsey Graham. “Eu li a transcrição: não vejo nada ali”, reforçou Thom Tillis. O caso, acrescentou o líder republicano no Senado, Mitch McConnell, é “risível”.
Mas estas reações aconteceram todas na noite de quarta-feira. Esta quinta-feira, já depois de ser conhecida a denúncia na íntegra e o testemunho de Maguire, o único que saiu em defesa do Presidente foi o seu vice, Mike Pence, dizendo que os democratas “continuam a tentar contrariar a vontade que o povo americano expressou nas últimas eleições”. Às 16h00, em Washington (21h em Lisboa), McConnell, o líder republicano no Senado, já tinha tido tempo para ler e ouvir a denúncia e o testemunho mas, no entanto, preferiu não fazer comentários aos jornalistas que o abordaram no Congresso.
Apesar desse silêncio ensurdecedor — que pode ter várias leituras, desde a surpresa pelo que aconteceu até a uma simples concertação de estratégias antes de falar —, os especialistas ouvidos pelo Observador estão convictos de que o Partido Republicano não vai tirar o tapete a Trump. “Acho que o processo de impeachment vai avançar [até ao Senado], mas também acho que os republicanos vão adotar uma contra-narrativa que nega que o Presidente tenha cometido ‘crimes maiores’”, disse Brian Kalt. “Continua a parecer bastante improvável que ele venha a ser destituído pelo Senado.”
Jessica Levinson concorda: “Para o Presidente ser afastado, são precisos os votos de dois terços do Senado. E, tendo em conta as reações que já ouvimos, não acho que aquilo que aconteceu esta quinta-feira mude o cálculo deles”, explicou. “A não ser que surja uma prova inegável, o que raramente acontece, os senadores não vão votar a favor do impeachment.”
Presidente fala nos “velhos tempos” em que se executavam “espiões” traidores
No partido, tudo como dantes, apesar de um ligeiro silêncio incómodo. E com o Presidente? Até agora, Donald Trump tem reagido no tom que lhe é característico, disparando em todas as direções no Twitter: o processo é “uma caça às bruxas”, o líder democrata do comité das secretas tem “zero credibilidade” e o whistleblower é “partidário”.
Em privado, porém, o Presidente revelou o quão irritado está com este caso. “Quero saber quem é a pessoa que deu a informação ao denunciante, porque é semelhante a um espião”, declarou a um grupo alargado de membros da sua equipa, segundo avançou o New York Times. “Sabem o que é que fazíamos nos velhos tempos, quando éramos espertos, aos espiões e à traição? Lidávamos com isso de maneira um pouco diferente do que fazemos hoje.”
Por ironia do destino, menos de uma hora depois de ser conhecido este desabafo a raiar a ameaça, o New York Times garantia que o famoso whistleblower era, ele sim, um verdadeiro espião — mas um dos que faz disso profissão e a favor do Governo norte-americano. De acordo com o que o jornal conseguiu confirmar junto de três fontes diferentes, o denunciante é um analista da CIA com conhecimentos de política externa americana e, até certo ponto, da situação política na Ucrânia. O facto de a denúncia ter vindo de um agente que domina os temas em causa dá mais credibilidade ao alerta que apresentou, como explica o Times. O dia do Presidente acabava de ficar ainda mais complicado.