Depois de ter os alertas no nível máximo, agora um recuo: a Sérvia enviou na segunda-feira as suas tropas para junto da fronteira com o Kosovo, tendo nas últimas horas o Presidente Aleksandar Vucic ordenado a diminuição do nível de alerta. O conflito começou no século passado, mas assume novos contornos numa altura em que a invasão russa à Ucrânia está longe de terminar — o que pode, aliás, influenciar o futuro do conflito entre a Sérvia e o Kosovo.
O reforço de tropas de segunda-feira, e que durante dias estiveram em “pleno estado de prontidão para combate”, aconteceu depois dos diversos bloqueios das estradas na região norte do Kosovo feitos pela comunidade sérvia que vive no país formado na sequência da divisão da Jugoslávia.
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Perante um momento de tensão, que pode ser visto como uma demonstração de poder da Sérvia, o Kosovo apressou-se a acusar, pela voz de Xhelal Svecla, ministro do Interior, citado pela Reuters, o governo do país vizinho de estar a ser “influenciado pela Rússia”: “Estão a promover um estado de prontidão militar que dá força ao aparecimento de novas barricadas e protege grupos de criminosos”.
Agora o recuo sérvio é justificado com o sucesso das medidas tomadas para diminuir a tensão na zona norte do Kosovo. A União Europeia já elogiou o comportamento responsável das duas partes, mas ainda há muito em jogo e o risco de escalada do conflito continua a ser uma realidade. Josep Borrell, chefe da diplomacia da União Europeia sublinhou esta quinta-feira que “a violência não pode ser uma solução” nestes dois países e que é necessário “reduzir as tensões”.
Como é que se chegou a este ponto de tensão?
A tensão, apesar de ter aumentado nos últimos meses, não é de todo novidade e os bloqueios e envio de tropas sérvias para a fronteira com o Kosovo também não. O conflito começou na década de 90 e o Kosovo acabou por declarar independência em 2008. Esta independência, no entanto, nunca foi reconhecida pela Sérvia.
Mas a tensão começou a escalar este mês de dezembro, quando a comunidade sérvia que vive na região norte do Kosovo — no país, a maioria da população é de origem albanesa — decidiu bloquear as estradas em protesto contra a detenção de um antigo polícia que pertence à comunidade sérvia. A esta detenção, que aconteceu no dia 10 de dezembro e foi vista como um ato de intimidação, juntaram-se outras detenções e os sérvios que vivem no Kosovo decidiram então colocar camiões nas principais estradas desta região. As últimas estradas a serem bloqueadas situavam-se em Mitrovica, uma das principais cidades do Kosovo.
A exigência era simples: os camiões só seriam retirados quando os antigos agentes fossem libertados pelas forças do Kosovo. “Estas são as nossas exigências e o nosso pedido, porque o único caminho que resta aos sérvios é esta forma de chamar a atenção do público”, disseram os manifestantes.
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Do lado do Kosovo, o governo acusou Belgrado de estar por trás das paralisações das estradas, mas disse, segundo a Reuters, estar à espera da luz verde da KFOR, a força responsável pela manutenção da paz no Kosovo, para avançar e desmobilizar os manifestantes.
Matrículas e documentos de identidade. O último momento de tensão entre a Sérvia e o Kosovo
Também este ano, mas antes das detenções que resultaram no bloqueio de várias estradas e do envio de tropas sérvias para a fronteira, o Kosovo decidiu implementar a obrigatoriedade de um sistema de matrículas e de documentos de identidade único. Ou seja, a comunidade sérvia que vive no Kosovo — cerca de seis mil pessoas — teria de substituir e eliminar a documentação e matrículas de carros emitidas pela Sérvia. A data limite para fazer os pedidos das novas matrículas e documentos de identidade era 21 de novembro e, a partir de 21 de abril do próximo ano, passaria a ser ilegal circular com documentos que não fossem emitidos pelo Kosovo.
Esta medida não foi bem recebida, nem pela Sérvia, nem pelos sérvios que vivem no território independente e teve como primeiro resultado uma sequência de demissões. Dez deputados, dez procuradores e 576 oficiais da polícia da região norte do Kosovo — todos sérvios — demitiram-se das suas funções em protesto. E esquadras da polícia e tribunais ficaram sem trabalhadores.
Aliás, esta tentativa de dar mais um passo no sentido do afastamento da Sérvia teve também outro resultado: um aviso da União Europeia, que convocou a Sérvia e o Kosovo para uma reunião de negociações em Bruxelas. Josep Borrell avisou mesmo que, caso não fosse alcançado um acordo até 21 de novembro, data limite para fazer os pedidos de mudança dos documentos, ficariam “à beira de uma perigosa situação”. Além disso, o chefe da diplomacia da União Europeia explicou que a demissão de polícias e de procuradores estava a criar um vazio legal na região norte do Kosovo e que poderia “acontecer o pior”. “As duas partes precisam de mostrar mais flexibilidade”, acrescentou.
Mas não houve essa flexibilidade de nenhuma das partes e a reunião entre o presidente sérvio, Aleksandar Vucic, e o primeiro-ministro kosovar, Albin Kurti, terminou sem acordo. “A urgente redução da tensão era uma questão de responsabilidade dos dois líderes. Lamentavelmente, hoje não concordaram numa solução”, disse Borrel aos jornalistas, depois do encontro em Bruxelas, precisamente no dia 21 de novembro. E acrescentou: “Existe uma responsabilidade acrescida do lado de ambos os líderes pelo fracasso das conversações de hoje e por qualquer escalada e violência que possa acontecer no terreno nos próximos dias“.
Qual o papel da União Europeia neste conflito?
Tanto a Sérvia como o Kosovo já entregaram o respetivo pedido de adesão à União Europeia. Do lado da Sérvia, o pedido foi feito em dezembro de 2009, depois da independência do Kosovo. Recebeu o status de candidato em março de 2012, mas o processo de negociações só começou em 2014 e está longe de ficar concluído. Aliás, o processo de negociação é composto por 35 capítulos e, segundo o site do Conselho da União Europeia, apenas “dois capítulos foram provisoriamente fechados”.
E as últimas conclusões do Conselho Europeu, emitidas este mês, são bem claras sobre o futuro deste país dentro da União Europeia, sobre a liberdade e ainda sobre a importância que o Kosovo tem neste processo: “O Conselho saudou o progresso feito pela Sérvia nas negociações de adesão, mas ressaltou que o progresso no estado de direito e nos direitos fundamentais e a normalização das relações da Sérvia com o Kosovo são essenciais e determinarão o ritmo das negociações“. E “reiterou a sua séria preocupação com a falta de progresso na melhoria da liberdade de expressão e da independência dos meios de comunicação social”.
Agora, do lado do Kosovo, o pedido é bem mais recente e é feito em pleno momento de tensão. Foi apresentado este mês e há um ponto importante: é que há cinco estados-membros que não reconhecem a independência da antiga província sérvia — Roménia, Grécia, Eslováquia, Chipre e Espanha.
Ora, apesar de a Sérvia e o Kosovo não pertencerem à União Europeia, Bruxelas tem funcionado como um mediador do conflito desde 2011 e já avisou que a principal condição para que os processos de adesão tenham luz verde é a eliminação das tensões, o que parece, neste momento, estar longe de acontecer.
E qual o papel da KFOR?
A KFOR é a força de manutenção de paz do Kosovo, da NATO em cooperação com a União Europeia e com a ONU, que está naquele território desde 1999 e que garante a segurança do país. Neste momento, estão no Kosovo cerca de 3.700 soldados, segundo a NATO, provenientes de 27 países. Quando chegou ao Kosovo e encontrou as forças sérvias no terreno — que se retiraram em apenas dez dias —, a KFOR tinha cerca de 50 mil homens e mulheres.
Agora, com o aumento da tensão provocada pelos protestos da comunidade sérvia no Kosovo, a Sérvia pediu à NATO para que fossem deslocados mais de 1000 militares para a região norte do Kosovo para proteger aqueles que recusam reconhecer a independência do território kosovar. E o Kosovo pediu também ajuda à força da NATO para acabar com as barricadas nas estradas naquela região. Por seu lado, a KFOR pediu calma às duas partes.
Como é que a invasão da Rússia à Ucrânia tem influência neste conflito?
A guerra na Ucrânia é o segundo conflito recente a que a Europa assiste. O primeiro foi precisamente na antiga Jugoslávia — que deu origem a sete países, entre eles o Kosovo. Mas, à parte deste detalhe, importa perceber que influência pode ter a invasão da Rússia à Ucrânia no conflito entre a Sérvia e sua antiga província.
Além dos cinco países da União Europeia que não reconhecem a independência do Kosovo, a Rússia e a China estão também ao lado da Sérvia. Mas a Sérvia quer entrar na União Europeia e a guerra é então uma questão para Belgrado, que se fez notar na altura da aplicação de sanções a Moscovo. Por um lado, a Sérvia condenou a invasão russa, mas recusou sempre a aplicação de sanções a Putin.
E, a propósito desta decisão, o Conselho Europeu foi bem claro no seu relatório de avaliação sobre as negociações para a Sérvia entrar na União Europeia, partilhado este mês de dezembro: “No contexto da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, o Conselho espera que a Sérvia mostre um compromisso inequívoco com a UE“.
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“O Conselho também lamenta profundamente o retrocesso da Sérvia sobre o alinhamento com a política externa e de segurança comum da UE, sobretudo em relação à falta de alinhamento com as sanções da UE contra a Rússia e Bielorrússia”, acrescentou.
Já na semana passada, citado pelo jornal The Guardian, o primeiro-ministro do Kosovo acusou a Rússia de potenciar o conflito entre o Kosovo e a Sérvia. “Acho que a preocupação dos nossos parceiros e amigos ocidentais são as ligações de Belgrado com Moscovo”, disse Albin Kurti, acrescentando que a Rússia “só quer garantir que todos os direitos do sérvios estão garantidos”.