“Não existe uma estratégia atualizada para o património imobiliário do Estado e para a sua inventariação.” A conclusão foi referida de forma direta numa auditoria do Tribunal de Contas, divulgada em 2021, com referência a 2020. Hoje, continua a não haver. O Governo optou por recorrer ao PRR (Plano de Recuperação e Resiliência) para ir buscar dinheiro para fazer o levantamento, num projeto de 1,7 milhões de euros. Já não é a primeira vez que se decide fazer um inventário dos imóveis do Estado, mas é um projeto inacabado aos olhos do Tribunal de Contas.
Em 2007 foi criado o regime jurídico do património imobiliário público, resultando no ano seguinte na decisão do conselho de ministros de criação do programa de gestão do património imobiliário do Estado, quadrianual. Foi no âmbito deste programa que se determinou como um dos eixos de atuação a inventariação dos imóveis, cuja portaria para a sua aplicação foi publicada em 2009 e a pensar num período de quatro anos, de 2009 a 2012.
Em 2009 foi adquirido à então designada PT Prime (uma empresa do universo da Portugal Telecom, que hoje tem a designação de Altice) o serviço de desenvolvimento do SIIE – Sistema de Informação dos Imóveis do Estado. Um ajuste direto de 2.388 euros por parte da Direção-Geral do Tesouro e Finanças (DGTF) que teve de desembolsar, logo em 2009, mais 7.164 euros à empresa por conta desse contrato.
O sistema obrigou a novos contratos: em 2012 foram pagos à PT Sistemas de Informação (outra empresa do universo Portugal Telecom) 39.790 euros (em dois contratos separados, um de 31.420 euros e outro de 8.370 euros) para novos desenvolvimentos da plataforma e consultoria com vista a novas funcionalidades. Em 2015, foi adjudicado à Meo (do universo PT, mas que já tinha sido adquirida pela Altice) o desenvolvimento da plataforma, num ajuste direto de 32.796 euros, um contrato que já surge, na consulta feita pelo Observador às compras públicas, com a assinatura da Secretaria-geral do Ministério das Finanças.
Já em 2021 surge novo contrato para o desenvolvimento de pacotes de software de novas funcionalidades de vários sistemas de informação geridos pela DGTF, entre os quais o SIIE, por mais 8.370 euros. A Meo é também o fornecedor, escolhido por ajuste direto.
Ou seja, a plataforma de SIIE já custou ao Estado, pelo menos, 90 mil euros. Mas a este valor acrescem mais 270 mil euros, pagos à Novabase, Powerdata e Aubay para desenvolvimento, evolução e manutenção de uma solução BI (business intelligence) dos dados da plataforma. O que significa que no total já foram gastos pela DGTF e Secretaria-geral das Finanças 360 mil euros, mais IVA, ou seja perto de meio milhão de euros, numa plataforma fortemente criticada pelo Tribunal de Contas e que, segundo diz este órgão de fiscalização, “possui fragilidades desde logo estruturais”, nomeadamente nos campos para a valorização e contabilização dos imóveis (só 23% dos imóveis tinha um valor patrimonial indicado e só 1,7% tinha um valor contabilístico no SIIE).
Juntam-se a este bolo agora os 1,7 milhões de euros que o Estado inscreveu para comparticipação do PRR, cujo aviso para o concurso foi aberto em agosto do ano passado. Nesse aviso previa-se esse dinheiro para o desenvolvimento e implementação do Sistema de Informação Gestão de Património Imobiliário Público (SIGPIP) que, segundo as peças concursais, “visa gerir a informação relativa ao património imobiliário público, divulgação integrada da informação e promoção da transparência e proximidade com o cidadão, bem como a partilha de informação desta natureza com outras entidades de controlo”. O que deverá resultar no fim do SIIE, mas sem que haja informação concreta sobre o desfecho do atual sistema. No portal Mais Transparência não há qualquer referência sobre o concurso para o SIGPIP.
O Observador tem tentado junto de várias entidades perceber em que ponto se encontra este concurso, mas tem sido remetido de um organismo para o outro. A estrutura de missão do PRR, Recuperar Portugal, remeteu a questão para a Espap, tendo a Entidade de Serviços Partilhados da Administração Pública, instituto público para serviços partilhados e compras públicas do Estado, remetido para a Direção-Geral do Tesouro e Finanças, da qual não foi possível obter resposta.
Também o Ministério da Presidência, que tutela a Espap e o PRR, questionado sobre o ponto de situação do concurso público, remeteu para o Ministério das Finanças que, por sua vez, não deu qualquer resposta ao Observador nem sobre o concurso nem sobre as várias questões endereçadas sobre o parque imobiliário do Estado. O Observador tem colocado questões desde agosto ao Ministério das Finanças, sem que tenha recebido qualquer informação. Isto apesar de Sofia Batalha, secretária de Estado do Orçamento, ter sido a porta-voz, no Parlamento, do Governo sobre a existência de verbas do PRR para o cadastro de imóveis do Estado.
Foi em junho do ano passado que a secretária de Estado foi questionada sobre o assunto e não deu qualquer prazo indicativo para a conclusão do cadastro, limitando-se recordar que 2026 é o ano limite para o PRR.
O Tribunal de Contas alertou, numa auditoria de 2020, conhecida em 2021, que após 11 anos desde a aprovação d0s programas de gestão do património imobiliário do Estado e de Inventariação 2009-2012 “os objetivos definidos não foram atingidos: a inventariação dos bens do domínio público não chegou a iniciar-se e a dos bens do domínio privado do Estado e dos institutos públicos apresentou resultados muito aquém das metas definidas”.
Para além disso, continuam a não existir as condições necessárias à elaboração do inventário geral dos imóveis do Estado e dos institutos públicos, porquanto se desconhece o universo dos imóveis a inventariar e por dificuldades do respetivo processo de regularização jurídico-registral”, diz ainda o organismo de fiscalização.
Como vai coabitar o novo sistema com o velho?
Uma das questões colocadas pelo Observador ao Governo procurava saber de que forma se integra este novo cadastro — que ainda vai ser lançado — designado de SIGPIP com o existente SIIE. Não houve resposta, mas até esta integração foi alvo de alerta por parte do Tribunal de Contas, que não tem dúvidas de que “as deficiências do SIIE terão reflexos no futuro sistema de gestão e informação do património imobiliário público”. E concretiza.
O SIGPIP vai “basear-se num interface interoperacional com várias fontes de informação agregando, designadamente, os dados e as funções do SGI (sistema de gestão imobiliária) e do SIIE. Para além disso, o SIGPIP omite elementos essenciais dos fluxos informativos do sistema para a qualidade e completude do inventário, como os relativos à prestação de informação à ECE [entidade contabilística Estado] sobre os imóveis do Estado”.
O novo sistema resultará da migração de dados do SGI e do SIIE, complementados com informações da Autoridade Tributária e do Instituto de Registos e Notariado (IRN). A própria DGTF reconhece, segundo indica o Tribunal de Contas, “riscos para a compatibilização de dados, por divergência entre as várias fontes de informação e inconsistência dos processos físicos com a informação no sistema, que espera minorar no âmbito dos trabalhos a desenvolver pela entidade a contratar para a execução do SIGPIP”.
As dúvidas são maiores sabendo-se que, segundo o levantamento do Tribunal de Contas, estavam em 2019 registados no SIIE 9.495 imóveis do domínio privado do Estado, de uma base total com 23.710 imóveis, mas na base de dados do IRN havia 18.671 registos. Já na base de dados do registo matricial, gerida pela Autoridade Tributária, estavam 62.597 registos. Agrava esta inventariação o facto de não haver uniformidade no conceito de imóvel nas várias entidades, além de que as bases de dados do registo predial e matricial não terem sido atualizadas de forma sistemática devido às reestruturações, fusões e extinções de entidades.
Além de que mesmo nos imóveis registados no SIIE detetou-se casos em que já tinham sido vendidos, ou em duplicado.
Quantos imóveis existem no Estado para habitação? E em que condições?
Considerando os 9.495 imóveis do domínio privado do Estado, 52,9% foram classificados como edificado e 47,1% como terrenos. Da lista dos 350 terrenos classificados como urbanos, um está classificado com a função “terrenos de cultivo” o que é incompatível com a finalidade urbana. Segundo o mesmo levantamento, 40,5% dos imóveis eram terrenos para exploração agro-pecuária, sendo que 13,7% ou um total de 1.301 eram para habitação.
Ainda de acordo com estes dados do Tribunal de Contas, os últimos divulgados, 74,7% do edificado público estava classificado como regular, sendo de 11,9% considerado em bom estado e 13,2% em mau. Além disso, 80,5% são imóveis em utilização corrente e 12% estão totalmente devolutos, ou seja, 1.138 imóveis, estando mais 19 parcialmente devolutos. 699 estão sem ocupação.
Estes dados do SIIE foram os compilados pelo Tribunal de Contas, já que no site da DGTF o último relatório sobre o sistema de informação dos imóveis do Estado é o do quarto trimestre de 2016. Neste boletim havia um total de 23.679 registos, cabendo ao então designado Ministério da Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural o maior número (5.765), seguindo-se com 3.204 o Ministério da Administração Interna, com 2.756 o Ministério da Saúde e ainda acima de dois mil (2.090) o Ministério do Planeamento e Infraestruturas. Mas se 2016 marcou o último ano em que há registo público do relatório do SIIE, existe para 2021 um relatório das operações imobiliárias também disponível no site da DGTF. Neste documento constam as aquisições, onerações e alienações de imóveis do domínio privado do Estado e institutos públicos.
De acordo com esse relatório, nesse ano, foram adquiridos cinco imóveis — um por dação em pagamento (da Parque Escolar) e quatro por institutos públicos — no valor total de perto de 9,4 milhões de euros, tendo ainda havido duas permutas com municípios. Nas alienações, o relatório garante que em 2021 “manteve-se a tendência verificada em 2020, traduzida no decréscimo das alienações de imóveis do Estado e dos institutos públicos, por força da criação de diversos instrumentos destinados à valorização do património imobiliário público, que impediram a sua alienação”. Ainda assim foram alienados cinco imóveis, no valor total de 14,35 milhões de euros.
Habitação já identificou 4.000 imóveis para habitação
Os instrumentos destinados “à valorização do património imobiliário público” passam pela transferência para as autarquias da gestão de imóveis públicos que se encontrem em inatividade, devolutos ou abandonados. É no âmbito dessa transferência que é publicada uma listagem de devolutos. Essa lista deve ter periodicidade semestral, mas a última divulgada tem data de março de 2022. O Ministério das Finanças, responsável pela publicação do despacho, não respondeu sobre o atraso da nova lista. Na última que entrou em Diário da República eram mais de 700 os imóveis passíveis de ser transferidos para as autarquias e que são devolutos.
Além desta listagem, um diploma de 2020 determina a realização do inventário do património imobiliário do Estado com aptidão habitacional e cria a bolsa de imóveis do Estado que visa aumentar a oferta pública para arrendamento acessível.
O Ministério da Habitação, em informação enviada ao Observador, explica que “a rentabilização do património devoluto do Estado é uma política em curso nos últimos anos, devendo ser considerada uma dupla dimensão na sua avaliação: os que têm aptidão habitacional e que são avaliados pelo IHRU (Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana) para aumento do parque público, e os restantes que estão a ser analisados para usos diversos (no âmbito da descentralização, ou outros âmbitos)”. Na componente de identificação de imóveis com aptidão habitacional estão já identificados vários imóveis. Segundo o ministério de Marina Gonçalves há já pelo menos 4.000 imóveis para habitação identificados.
“Neste momento, estão já integrados no património do IHRU mais de 3.000 os fogos em projeto ou empreitada. Número estes que será reforçado significativamente nos próximos meses, seja por via dos imóveis já identificados, seja por via da avaliação dos imóveis do inventário (que são já mais de 1.000 devolutos)”.
E dá como exemplo de imóveis o edifício da Defesa na Avenida de França, no Porto, ou o Convento da Estrela em Lisboa. Mas o gabinete da ministra da Habitação deixa outra certeza: “este é um processo em contínuo”, que “permitirá a rentabilização para as políticas de habitação de património com aptidão habitacional que venha a ser identificado e responder, a médio prazo, às necessidades da população”.
Nesta rentabilização do património público há ainda o programa Revive que visa concessionar alguns imóveis para requalificação para atividades económicas, como hotelaria, restauração, cultura. Este programa já tem declinações como o Revive Natureza para imóveis devolutos que estejam inseridos em património natural.
No âmbito deste programa foi enviado no penúltimo dia de fevereiro, dia 27, para publicação em Diário da República o “anúncio do concurso público para a concessão de exploração do imóvel denominado Mosteiro de Santa Clara-a-Nova, em Coimbra” para instalação de um hotel, numa concessão prevista para 50 anos, com uma renda mínima anual de 18,8 mil euros. Neste momento, o Revive tem dois concursos abertos. O do Mosteiro de Santa Clara-a-Nova decorre até 31 de maio e o do Colégio de S. Fiel, em Louriçal do Campo (Castelo Branco) até 19 de abril.