A conclusão precipitou-se esta quarta-feira, quando cruzavam a linha encarnada do Metro, acabados de aterrar em Lisboa. Rumo ao centro da cidade, de passagem “talvez pela estação dos Olivais”, Riccardo Babo e Olivia Spinelli deram por si a pensar como o conceito de genderless estava longe de ser uma novidade. “Chama-se unissexo e foi inventado nos anos 60, bolas! Talvez o design tenha que mudar a etiqueta, é uma questão de comunicação muitas vezes, ou da nossa capacidade de escutar os novos medos, sonhos e necessidades de uma comunidade. As necessidades reais, claro”. Os tempos parecem também correr agora a favor de um regresso da forma, manifestada em peças de alfaiataria, com a qualidade e durabilidade a marcarem o tom nesta fase da Moda.
O Diretor Académico do Grupo IED, e a Coordenadora e Diretora Criativa IED Moda Milano, permanecem em Portugal até este domingo, um dia depois de assistirem ao desfile dos seus sete licenciados de Moda, cujas coleções cápsula serão mostradas na 60.ª edição da ModaLisboa. Para além deste sábado, o IED teve um papel especial no concurso Sangue Novo, com um prémio que irá proporcionar ao vencedor, a designer Inês Barreto, o Master em Fashion Design no polo de Milão, no valor de 20.100 euros.
Do design à moda, da comunicação à gestão, e ainda das artes e restauro às artes visuais, o instituto está presente em Itália, Espanha e Brasil. Fundado em 1966 por Francesco Morelli, do Istituto Europeo di Design saíram nomes como Maria Grazia Chiuri, diretora criativa da Dior, Pierpaolo Piccioli, diretor criativo da Valentino, Marco de Vincenzo, diretor criativo da Etro e responsável pelo segmento de leather goods da Fendi, ou o designer Vincenzo Lattanzio, que trabalhou com marcas como Jil Sander, Giorgio Armani, Prada. Continua a preservar a matriz cultural, se bem que segundo Riccardo o “made in Italy” é acima de tudo um “estado de espírito”.
Têm 12 escolas, em Itália mas também duas no Brasil e três em Espanha. Alguns planos para Portugal?
[pausa]
Um momento de suspense.
Não é suspense… [risos] É um facto que somos uma escola de Design, mas somos também uma escola mediterrânica de Design. E isso significa algo, claro. Significa competências, mas também alma, aceitar erros, construir uma ponte sobre esses erros, aceitar que a subjetividade é algo positivo, as relações entre pessoas. Portanto [faz desenho com os dedos], temos Itália, Espanha…Brasil [pelo caminho, ficaria Portugal].
Brasil não é propriamente mediterrânico. Que espírito é esse?
Pois não, é sobretudo um mindset. Sempre disse que Portugal era um país mediterrânico que olha para um mar diferente, para o Atlântico.
Falava de aceitar erros e de construir pontes. A que erros se referia?
Bom, erros não são algo que tenhamos que matar, servem para que os entendamos e possamos construir algo sobre eles; para criar consciência de algo.
É também esse o propósito do design, em certa medida.
Sim, faz parte do processo de ensino e de aprendizagem mais adiante. Os erros são a melhor base de trabalho; é importante entender e extrair conhecimento do processo, se formos capaz de compreender os nosso erros, de refletir sobre…isso é bom. O sistema oficial de ensino italiano não apoia este tipo de método que a nossa escola tenta seguir.
Quando se referem à matriz italiana que tem norteado o IED, como a descreve?
Acreditamos que o estilo italiano é ao mesmo tempo um estilo mediterrânico, baseado na relação entre as pessoas, nas competências transferidas, no que vemos as outras pessoas a fazer. Ensinar e aprender não é sempre simétrico. Eu aprendo algo de si mesmo que não me queira ensinar nada. O made in Italy é basicamente uma condição histórica, geográfica, cultural que nos calhou em sorte. E fomos capazes de transformar isso, porque houve um grupo de pessoas depois da guerra que recorreu à criatividade e ao empreendedorismo para criar algo que foi bem sucedido. O made in Italy não tem língua.
De novo, é sobretudo um estado de espírito?
Sim. É estado de espírito numa escala de valor. Parcimónia, objetividade, ética. Tudo isto compõe esse estado de espírito.
[leia o P&R com Olivia Spinelli no liveblogue da ModaLisboa, onde seguimos ao minuto todos os desfiles na Lisboa Social Mitra, até este domingo]
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A escola tem um lema que é “estar um passo à frente, mas sempre no presente”. Como se gerem estes dos tempos?
Isto é como falar de sincronismo. A escola funciona como um sistema circular, estar preparado para crescer e se manter circular, aberto a novas aprendizagens. Costumo usar a expressão tease and displease. Por vezes as empresas não sabem do que precisam, continuam a pedir coisas antigas mas na verdade temos que tentar dar-lhes o que nos pedem e um bocadinho extra. Portanto ser sincrónico, é estar lá, temos que estar lá, mas sempre um pouco mais além. Havia um baterista de jazz que dizia que se queremos seguir o ritmo temos que contar quatro mais qualquer coisa.
Hoje um aluno tem que pensar em inúmeras variantes, do design à conceção, a indústria, o lado vendável, imperativos como sustentabilidade. Como analisa este cruzamento de variáveis e como se pode dar essa extra?
Mas será que estas coisas que enumera não existiam já há 50 anos?
É um bom ponto. Acha que não há uma conversa nova sobre alguns tópicos?
Estas coisas já existiam. Claro que há formas diferentes de abordar… É apenas uma forma de reconhecer as coisas de uma forma diferente, e de as descrever de outra maneira. Os romanos já faziam marketing, eram estrategas neste sentido. Claro que temos sempre que falar de processo, de criatividade, de sustentabilidade económica, cultural.
O que existe é um léxico novo?
Sim. Vou dar um exemplo. Ainda hoje nos rimos sobre isto quando passámos pelos Olivais. Como é que o design responde hoje ao genderless? Bom, chama-se unissexo e foi inventado nos anos 60, bolas! Talvez o design tenha que mudar a etiqueta, é uma questão de comunicação muitas vezes, ou da nossa capacidade de escutar os novos medos, sonhos e necessidades de uma comunidade. As necessidades reais, claro.
O que não é real neste conjunto de necessidades?
Se há algo que odeio e que afasto da nossa escola é a ideia de que o design é a livre expressão de zero controlo criativo. Quer dizer, o design deve aumentar a qualidade de vida do ser humano. Portanto, se a sua ideia não tiver qualquer propósito, para que serve? Há uma base ética sob a conceção de design que tem que ser usada para que o design brilhe e cresça.
Mas não é algo também muito humano gostar do excesso, do acessório que não serve para grande coisa, tal como acumulamos roupa de que não precisamos?
É verdade, mas isto é o efeito do marketing e da comunicação, acaba por ter pouco a ver com o design de moda. O design de moda corre atrás disto tudo, isso não acontece porque os designers estão a fazer mais casacos mas porque há um sistema poderoso que nos diz que precisamos de mais um casaco. Portanto, Zara, allez, traz lá mais não sei quantos casacos. Mas isto é válido para moda, casas, carros, e é evidente que a culpa não é o design. É ridículo dizer isso.
Temos estado a falar de design de uma forma mais abrangente. Formou-se em Arquitetura, e estudou em Portugal, no começo dos anos 90.
Sim, em 1992, um ano na escola de Arquitetura, aqui em Lisboa, [começa a falar em Português], na faculdade de Belas Artes, foi um tempo fantástico. Eu estudava em Turim e vim fazer Erasmus. Mudou a minha vida.
Como?
Porque tinha aquele mito da escola [de Arquitetura] do Porto. Comecei por ficar muito triste porque não conseguir ir para lá, mas em Lisboa descobri que havia uma outra escola, do Carrilho da Graça, do Manuel Graça Dias. Havia ali uma rede de pessoas, que incluía também a Ana Salazar, por exemplo. Aquilo mudou-me. É algo que gostamos de fazer quando trazemos aqui os estudantes do polo de Milão. Sorry, cambio de língua [volta a falar inglês]. A melhor forma de crescer é quando te expões, tens que ser suficientemente corajoso para mostrar o teu trabalho e ser suficientemente humilde para compreender que alguém, noutro lado qualquer, pode estar a fazer algo melhor que tu.
Que diferenças encontrou entre Lisboa anos 90 e este reencontro com passagem pelo Metro?
Temos que admitir antes de mais que a moda mudou imenso, o fast fashion tem estado a esbofetear toda a gente, sobretudo na Europa. Turim, Paris, Londres, Lisboa, deixo Milão para depois, eram estas as cidades originais da moda. A moda em Lisboa era uma ligação direta com o Londres e Paris. Este link entre moda e o lugar e a cultura não é que tenha sido quebrado, mas trazido para um nível diferente. Estava a falar sobre isso com a Olivia [Spinelli, Coordenadora e Diretora Criativa IED Moda Milano, que o acompanha], não nos Olivais mas no avião [risos] . Ela dizia-me que o street wear está finalmente a diminuir e que o formal está a fazer o seu regresso. Significa que de certa forma a moda é um reflexo da sociedade, os designers dão algo à sociedade mas a sociedade também está a pedir isso. É interessante perceber que essa formalidade também era muito genderbased.
Era isso que ia perguntar-lhe. Parece algo a contraciclo.
Entre finais dos 70 e começo dos 80, houve uma tentativa de genderless ou gendermix entre a formalidade mas não foi bem…
É curioso passar das tendências shapeless ou baggy para esse contexto. Como vê este regresso, num cenário de crise, guerra?
Não sou um especialista mas penso que há uma necessidade desesperada de ordem, seja qual for o “apesar de” no caminho. Eu preciso de ordem, na minha vida, com guerra, sem guerra. Se formos à etimologia de “formal” significa “forma”, dar limites e fronteiras às coisas.
Se pudesse mudar algo na moda, o que seria?
A moda é um espelho da sociedade, ou sociedades, e ela está a mostrar a decadência da sociedade, ou de algumas dessas sociedades. O que gostaria, como dizia [o poeta soviético] Mayakovsky, é que a moda fosse capaz de guiar a sociedade para fora desta decadência, e que nos levasse a algo diferente. Até agora o que vejo é que a moda está a assistir nos bastidores. Essa mudança de posição é possível quando introduzimos uma escala de valores, um pacote ético, que nos projeta para a dianteira. Talvez este abandono do streetwear seja um primeiro sinal nesse sentido. Sou otimista por natureza. A moda é como a arte, pode ser usada para mudar a sociedade
Costuma permitir-se a ser nostálgico quando o tema é design e moda?
Está tudo um pouco virado do avesso. Quando ouvimos que temos que desenhar o futuro, isso é um disparate. Não conseguimos saber o que vai ser o futuro. Apenas somos capazes de perceber um pouco o presente a acrescentar um passo a mais. Depois de cinco anos, mais um passo. Estes passos são hoje mais rápidos e pequenos que dantes. Não sou nada nostálgico, não porque seja errado ser nostálgico mas porque penso que o verdadeiro design não pode ser nostálgico, mas sim sincrónico. O design só é real se escutar o que as pessoas querem e precisam naquele momento. Se a resposta é olhar para o passado, muito bem, mas não é uma questão de “era uma vez etc etc”. Se pomos o nosso dedo no passado só para tentar dar uma resposta errada sobre o que é preciso hoje, é fake, está a enganar as pessoas e o mercado.
Vê muito isso hoje?
Penso que há muita coisa que é chamada de design mas na verdade… a decadência é exatamente isto. Por exemplo, food design. Mas que raio é o food design??! Isto é comida. Desenhar a experiência? Mas como assim? Não há algo mais subjetivo do que a experiência humana mas há alguém que quer desenhar a minha experiência? Fuck off [risos] Usam este tipo de bengalas para produzir novos mercados, blá blá blá, mas na realidade nunca vamos ter duas experiências iguais.
Não estamos a diabolizar a publicidade e o marketing?
Eles tentam, claro, vender-nos uma experiência mas tempos houve em que a publicidade era diferente. Hoje parece que há uma imposição. O tópico é: o que é mesmo novo? Vendemos coisas nos últimos 50 anos, a questão é como se tornam as coisas novas para alguém que viva hoje.
O que é cada vez um desafio maior?
Um ténis é um ténis e a diferença entre um Timberland e um ténis é o material. Gosto de recuar às raízes do design e perceber quais são os verdadeiros motivos que nos levam a fazer escolhas. Se formos à essência do design verificamos que há muito poucas coisas que são novas e nós hoje estamos cegos com a novidade.