Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.
Os riscos para o pós-pandemia são numerosos. Não é apenas a crise da dívida soberana que é uma vulnerabilidade entre nós. Há também que avaliar as vulnerabilidades de uma crise bancária que é originada por deterioração das condições financeiras das empresas e/ou famílias e que o sistema bancário não consegue absorver. De facto, muitas vezes nos esquecemos que também os agentes económicos estão interligados: não existe a ficção de um setor empresarial muito frágil e um sistema bancário de excelente saúde, como os dirigentes políticos propagandeavam antes da crise de 2011.
Os empréstimos, que são ativos dos bancos, são exatamente os mesmos passivos que estão nos balanços das empresas. Se estas não conseguem pagar esses empréstimos a tempo e horas e entram em incumprimento, o malparado reflete-se no balanço do banco levando a uma perda de capital. É este um cenário possível para o nosso futuro?
A pandemia e o risco de perdas consideráveis
Atualmente, os relatórios dos bancos e os comentadores regozijam-se com a redução do crédito malparado nos balanços dos bancos. Nos finais de 2016, o stock de crédito malparado atingia o record de 30 mil milhões de euros. Mas este não desapareceu da economia, pois – repetimos – “não há almoços livres”. Uma parte traduziu-se em aumento da dívida pública e impostos futuros para os contribuintes, outra parte foi apenas transferida para fundos de gestão da dívida que irão tentar recuperar essas dívidas.
No final, se não houver recuperação da dívida, das três uma: ou foram os acionistas, credores e trabalhadores das empresas falidas que perderam, ou pagam os contribuintes, ou os fundos perderam os seus investimentos. Os efeitos sobre a economia real acabam sempre por se fazer sentir, com redução do PIB, seja agora ou para as gerações futuras.
As revelações do Tribunal e os contra-ataques do Banco de Portugal, Governo e Fundo de Resolução
Outra ficção é a que o Bloco de Esquerda tem difundido: a de que não devem ser os contribuintes a pagar o malparado dos bancos, sobretudo no caso BES/Novo Banco. Diz o BE que deve ser o Fundo de Resolução – que é suportado pelos bancos – a suportar esses custos, mas como este não tem fundos é o Estado que tem estado a fazer empréstimos para financiar o Novo Banco. Ora, quem vai pagar no fim? São os bancos que vão ter que pagar, e em última análise são os depositantes, quem pede empréstimos (sobem as margens de intermediação) e, em menor parte, os acionistas dos bancos. Mas a maioria dos contribuintes são depositantes e/ou devedores da banca. É até possível argumentar que há muitos depositantes que não pagam IRS, pelo que fazer os bancos suportar as perdas de outros bancos é regressivo.
Também a nacionalização de bancos com elevados níveis de malparado apenas transfere para os contribuintes os custos da recapitalização. E a gestão pública no pós-25 de Abril mostrou a ineficiência desta solução, que – combinada com a interferência política na atribuição de créditos – revelou ser a receita para o desastre do sistema financeiro.
Comparada com a última crise financeira, os bancos europeus entraram nesta crise com posições de capital mais fortes assim como uma melhor qualidade dos ativos e maior resiliência aos choques, segundo o relatório de supervisão do BCE. Como veremos mais abaixo, estas apreciações também se aplicam aos bancos portugueses. A pandemia levou à suspensão pelo BCE de alguns dos requisitos de capital e à recomendação de não distribuição de dividendos.
A crise pandémica levou a uma deterioração do ambiente macroeconómico, pelo que hoje existe um consenso de que, quando as medidas excecionais fiscais e monetárias de apoio às famílias e empresas cessarem, vai ser mais visível a deterioração da qualidade dos ativos. Por exemplo, o relatório do BCP – um dos “big five” na banca portuguesa – para 2020 avisa que “a maioria dos bancos pode vir a enfrentar perdas consideráveis”:
- O risco de crédito é o principal desafio, devido à deterioração da situação financeira das empresas e à menor capacidade de serviço da dívida das famílias. O fim das moratórias e do reconhecimento de perdas pelos bancos são uma das maiores vulnerabilidades dos bancos para 2021 e 2022.
- Os níveis elevados de endividamento do setor privado poderão amplificar o potencial impacto negativo nos bancos.
- O acréscimo extraordinário do risco em determinados setores mais afetados pelo lockdown aumentou a probabilidade de insolvência dos devedores dos bancos.
- Ao mesmo tempo, as famílias expostas a estes setores poderão enfrentar condições do mercado de trabalho mais adversas, o que diminui a sua capacidade de serviço da dívida. Os mercados das casas de habitação têm experimentado subidas apreciáveis dos preços, o que levanta a hipótese de uma correção.
- Também as bolsas de ações têm registado valores muito elevados, tendo em conta os fundamentais, o que levanta novamente a questão de uma correção dos preços e subsequente crise dos investidores.
- A forte subida dos rácios da dívida pública associada à potencial subida das taxas de juro dos bancos centrais para combater a inflação, devido aos enormes montantes do QE, aumentam substancialmente o risco de crise da dívida soberana. O acentuar do nexus do risco soberano-bancário devido às garantias de crédito prestadas, potencia ainda mais este risco.
Mas, como afirma o chefe da supervisão do BCE no Relatório para 2020, o sistema bancário europeu já estava a sofrer de ineficiências estruturais quando a crise se abateu sobre a Europa. Baixa rentabilidade, baixa eficiência e preocupações sobre a sustentabilidade dos modelos de negócio são as prioridades que têm de ser resolvidas, pois estes problemas agravaram-se com a crise pandémica.
E o relatório da Estabilidade Financeira do Banco de Portugal também identifica um acentuar das vulnerabilidades do sistema bancário derivados do acréscimo de insolvências das famílias e falências das empresas, que podem criar um efeito “cliff edge” (normalmente associado a uma retirada súbita de rendimento ou aumento de impostos) aquando da retirada dos auxílios estatais e monetários, sobretudo se houver uma retoma fraca e prolongada.
Emagrecimento e recapitalização da banca
Desde 2013 que se tem verificado um acentuado “emagrecimento” da banca, sobretudo no crédito concedido e na redução dos rácios de transformação. O crédito total dos cinco maiores bancos contraiu-se em 16%. Como os depósitos subiram cerca de 20%, o rácio de transformação caiu 34%, que foi um dos principais objetivos do Programa de Ajustamento da troika. O Gráfico 1 mostra a evolução destas variáveis para os cinco bancos. A maior queda do rácio deu-se na CGD, e atualmente só Novo Banco tem um rácio superior a 100%. De facto, com um rácio 126%, este banco continua a estar vulnerável ao financiamento externo.
A evolução dos ratings dos diferentes bancos é um indicador fundamental para avaliar a sua saúde financeira. Depois de se ter deteriorado da 9º para a 14ª posição na escala de ratings entre 2010 e 2016 (equivalente a cair de Baa2 para B1 na escala da Moody’s), a média simples de ratings destes cinco bancos subiu para a 12ª posição (equivalente a Ba2) em 2020, o que está ainda abaixo do rating pré-crise financeira.
As quotas de mercado destes cinco bancos também se alteraram significativamente entre 2010 e 2020 (Quadro 1), com um forte aumento do Santander-Totta e uma forte queda do BES/Novo Banco. Em termos de crédito, o BCP é hoje o maior dos cinco, seguido de perto pela Caixa Geral de Depósitos, e com o Santander-Totta um terceiro próximo.
O rácio de capital dos bancos portugueses aumentou substancialmente desde a crise bancária, tendo o rácio de solvabilidade subido de um mínimo de 11% em 2016 para 17% em 2020 (Gráfico 2). Também o rácio Core Tier 1 (CT1) mais exigente na definição dos ativos que podem ser incluídos como back-up dos créditos de risco ponderado, subiu de 10,2 para 15,1% no mesmo período. Este rácio está alinhado com a média dos bancos do Euro.
Contudo, é muito diferente a situação entre os cinco maiores bancos (Gráfico 3). O rácio mais elevado é o do Santander, que reforçou substancialmente o capital durante 2020, tendo terminado o ano com um CT1 de 20,8%, seguindo-se a CGD, com 18,2%, mas o Novo Banco registou uma deterioração, situando-se o CT1 em 11,3%, e o BCP também tem um rácio baixo, com 12,2%.
Também a qualidade dos ativos no balanço dos bancos tem vindo a melhorar substancialmente nos últimos anos devido sobretudo à alienação da carteira de crédito vencido. A situação mais preocupante continua a ser o Novo Banco (Gráfico 4), que tem um rácio de 22,4% em finais de 2020, segundo o seu Relatório e Contas de 2020. Segue-se o BCP, com 5,9%, e os restantes têm taxas inferiores a 4%.
Como compara esta evolução com os outros bancos da Zona Euro? Segundo dados da EBA, Portugal era ainda o terceiro país com um rácio mais elevado de NPLs (Non-performing loans, créditos não produtivos ou, simplesmente, mal parado), dados para 2019 (Gráfico 5), depois da Grécia e Chipre. Foi o sexto país que maior esforço fez na redução dos NPLs desde 2015, sendo a Eslovénia e Irlanda os que maior redução conseguiram.
O impacto da pandemia na rentabilidade dos bancos é evidente. São bem notórias as enormes perdas do Novo Banco, que já somam 8,9 mil milhões de euros entre 2013 e 2020, tendo o ROE (Return on Equity, rentabilidade dos capitais próprios) atingido -39,6% neste último ano. O ROE mais elevado foi o da CGD, com 8,1%, seguido pelo Santander–Totta, de 7,1%, que teve uma elevada constituição de provisões. Na zona Euro o ROE médio foi de 2,1% em 2020.
Fragilidade e vulnerabilidades no pós-pandemia
Os bancos portugueses aumentaram significativamente o recurso ao BCE, tendo aumentado a taxa de financiamento junto dos bancos centrais de 4,4% em 2019 para cerca de 8% dos ativos em 2020. Esta taxa é quase o dobro da Zona Euro, mesmo depois da redução do rácio de transformação acima referido.
Tanto o Relatório do BCP de 2020 (pg. 111) como o da CGD (pg. 48) elencam de forma clara os riscos acrescidos da banca portuguesa no pós-pandemia. Vamos destacar os dois mais importante, recorrendo a estes relatórios:
- Risco soberano e elevada exposição ao risco soberano: Ao nível soberano, os esquemas de garantia pelos Estados, não só da Zona Euro, assumiram um papel de enorme relevância no suporte da atividade económica numa primeira fase da pandemia. Estas garantias poderão, no entanto, resultar em perdas relevantes, em caso da uma retoma lenta, com impacto direto no montante de dívida pública e no aumento do risco de crédito soberano, resultando numa degradação das condições de refinanciamento da dívida e da capacidade de resposta das políticas públicas que a crise continua a exigir. Um agravamento das yields soberanas, ou a uma reavaliação dos riscos de inflação podem desencadear uma revisão dos preços dos ativos financeiros e desencadear quedas drásticas, causando volatilidade e perdas significativas nas principais instituições financeiras não bancárias.
- Moratórias e risco de crédito devido a falências e incumprimentos: O setor bancário poderá incorrer em perdas significativas em função da cessação dos regimes de moratórias, e alguns bancos comerciais poderão ser pressionados no que respeita ao cumprimento dos requisitos de fundos próprios. O término ou a suspensão de garantias estatais poderá conduzir a condições de crédito mais apertadas para as empresas não financeiras, sobretudo pequenas e médias empresas (PME), e condicionará a sua capacidade de endividamento e de investimento a médio prazo. Prevê-se assim um aumento do número de insolvências em 2021, mesmo que a retoma económica se concretize. Nas famílias, a quebra de rendimento irá restringir a capacidade de servir a dívida e aumentar o incumprimento, sobretudo num período de maior fragilidade social e após terminar igualmente o prazo em que as medidas de apoio aos agregados familiares se encontram em vigor.
O Gráfico 6 mostra o montante e a percentagem do crédito em moratória para os países da zona Euro. Como se pode observar, Portugal é o terceiro país com maior percentagem de moratórias, a seguir a Chipre e Hungria, correspondendo a cerca de 22% do crédito concedido às famílias e empresas, o que indica a vulnerabilidade mais elevada da banca portuguesa no contexto da zona Euro.
Risco sistémico e capacidade de resistência do sistema bancário
Um dos indicadores utilizados pelas instituições de supervisão para avaliar o risco sistémico no sistema bancário é o indicador de stress financeiro – Country Level Indicator of Financial Stress (CLIFS), publicado pelo BCE. A leitura do Gráfico 7 mostra que houve um período de stress equivalente às crises financeiras no 1º trimestre de 2020, seguido duma acalmia, tendo em maio de 2021 começado outra vez a haver uma certa deterioração. O problema é que este indicador é coincidente e não de antecipação da crise.
Olhando para as componentes do indicador de risco sistémico cíclico – Systemic Risk Indicator (SRI), do Banco de Portugal – verificamos que houve (i) forte deterioração da dívida soberana, (ii) subida, embora moderada, da dívida das famílias, (iii) subida do nível de endividamento das sociedades não financeiras, (iv) subida dos preços de habitação, e (v) alguma deterioração das contas externas. Ora, estes indiciadores pioraram todos com a crise pandémica, e não deverão ter melhoria significativa nos próximos dois anos, o que indica que o nível de stress financeiro permanecerá elevado.
A fragilidade financeira das famílias e empresas portuguesas no pós-pandemia
Num ensaio anterior vimos que houve uma subida na vulnerabilidade das famílias, mas sobretudo a probabilidade de falência das empresas, com predomínio das microempresas e um nível extraordinário de stress no setor dos restaurantes, alojamento e conexos. O BCP indica um nível de exposição a este setor de 2 mil milhões de euros.
Suponhamos que cerca de 20% das moratórias entra em incumprimento e/ou 3% do crédito das sociedades não financeiras. Bastam estes dois fatores para gerarem imparidades adicionais de 4 a 10 mil milhões de euros. Ora o capital dos cinco bancos aqui analisados ascendia em finais de 2020 a 26,7 mil milhões de euros. Por conseguinte, numa destas hipóteses voltaria a ser necessária uma recapitalização da banca à custa dos contribuintes.
Conclusões
Acompanhando a evolução da banca da zona Euro, os bancos portugueses registaram uma melhoria dos níveis de capitalização e redução das carteiras de crédito malparado por alienação. Contudo, a crise pandémica veio provocar um forte aumento do risco sistémico, sobretudo devido à subida do risco soberano, e ao acréscimo de vulnerabilidade das famílias e empresas.
Acresce que, à semelhança da banca europeia, também os bancos nacionais sofrem ainda de baixas taxas de rentabilidade, ineficiência operacional e uma certa indefinição dos modelos de negócio.
Portugal foi um dos países que mais recorreu a moratórias, o que leva também a aumentar a probabilidade de sinistralidade do crédito. A garantia de créditos pelo Estado e a deterioração da qualidade da dívida soberana, aliada ao aumento do nexo entre dívida soberana-banca, faz também deteriorar a situação financeira da banca. Vimos que estas situações poderão levar a um aumento do crédito malparado, o que levaria a um elevado consumo do capital e à necessidade de recapitalização por fundos públicos.
Estas conclusões mostram a importância de continuar a melhorar a governação dos bancos e os instrumentos de supervisão bancária.
Professor Universitário de Economia. Doutorado pela Universidade de Pennsylvania, EUA. Foi economista sénior do Banco Mundial e administrador do Banco de Portugal. Presidiu à Autoridade da Concorrência