Um, dois, três. Entrada da bateria, a guitarra prepara o arranque e o baixo segue disparado, abre-se uma pista de dança, descem purpurinas, bolas de espelho, reluzem faíscas e golpes de violino. O groove de Mulher Homem Bicho é capaz de ressuscitar um morto. A proposta do single de Ana Frango Elétrico é erótica, compromete-se a morder orelhas, cafungar o pescoço e roer até ao osso, feito cachorro. Certamente houve algum engano, a coqueluche do indie brasileiro, uma pessoa séria com pergaminhos na imprensa inglesa e norte-americana, não pode estar aqui a dançar e cantar esta pouca vergonha.
“Há imagens e estereótipos queer na música ou no cinema, mas não há subjetividade, a gente não sabe como essas pessoas transam, não conhecemos a intimidade”, justifica Ana Frango Elétrico, que lançou em 2020 esta canção lasciva, completa reinvenção musical e narrativa, em plena pandemia, com tiradas à Rita Lee cunhadas por Ava Rocha:
“Não se assuste comigo
Sou mulher ou um bicho
Não venha que não tem
Sou bruxa e neném
Bolhas doces de coco e sabão”
Mulher Homem Bicho é disco music descarada, bailarico selvático, em simultâneo ao renascimento da disco nos últimos anos, quando Jessie Ware, Róisín Murphy, Dua Lipa ou Beyoncé declararam o final da pandemia. “Mulher Homem Bicho é uma virada na minha música, tanto no sentido poético como na produção. É uma faixa que aponta totalmente para este meu novo disco, Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua”. O terceiro álbum de Ana Frango Elétrico é apresentado dia 1 de novembro, no Salão Brazil, em Coimbra, e dia 2 de novembro no Jameson Urban Routes, Musicbox, em Lisboa, festival que continua nos dias seguintes com Eddie Chacon, Lord Apex, Conferência Inferno ou DJ Marfox.8
[o álbum “Me Chama de Gato que Eu Sou Sua” na íntegra no Spotify:]
O regresso da disco music foi uma reação à distância de segurança, aos sucessivos confinamentos: a cultura pop apontou novamente para os corpos suados, o cabedal, o glamour decadente de outrora, o tudo ao molho, uma pândega de bar aberto a todos os géneros, sexualidades e raças. “Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua é um título que tenho há três anos. A questão queer e não-binária é o assunto do disco. Além da sonoridade, a minha maior contribuição neste disco é eu — uma pessoa não binária, uma pessoa divergente, queer — ter controle estético da minha obra, de como eu quero ser visto”.
O gato é Ana Frango Elétrico, o bicho de mato que abandonou o conforto das canções arrumadinhas e agora vadia pela calada da noite, a começar por Electric Fish, a entrada no cenário de Me Chama de Gato que Eu Sou Sua. O baixo rechonchudo, de barriga cheia, faz a cama para uma noite nebulosa de engate, flashes de fumo de tabaco, pernas e bocas; acendam a meia-luz e coloquem Electric Fish numa playlist entre Ladies’ Night de Kool & the Gang e o charme de Chaka Khan. Electric Fish é Ana Frango Elétrico no parque de diversões funk-disco, um Nile Rodgers carioca, muito chic.
“A bateria e baixo como protagonistas é uma ponte que quis fazer com a atualidade, tentar compreender o que está rolando com a música de agora e trazer isso para a minha música orgânica.” A essência é a mesma de Mulher Homem Bicho: baixo, guitarra e baixo, ou seja, Alberto Continentino, Guilherme Lirio, Sérgio Machado. “Gravámos as bases sem ensaio. Deixei a galera muito livre, mas já sabia quais eram as tonalidades das músicas, sabia direcionadamente quais eram as características e as referências”, explica, apontando as tonalidades para final de setentas e início de oitentas, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, quando o sincopado encontrou o sintetizador.
Encostem-se no bar que ainda estamos no início da noite. A canção é Dela, a voz é tão delicada e açucarada como em Chocolate, o sucesso meloso do álbum anterior, mas não estamos em 2019, entretanto houve uma pandemia e uma viragem musical e pessoal: o tom Dela é pura malícia. O cenário prossegue carnal, em frente aos nossos ouvidos, até conseguimos ouvir as voltas na cama: “Quem eu era?/ Era algo em torno dela, dela/ Das voltas dela”.
A paixão está nos detalhes, o casaco amarelo ou os cigarros de Camelo Azul, a materialização de um processo, de tal forma intenso, que culmina na afirmação de identidade:
“Fumando um dunhill
Me dá um
Só mais um
Seu cheiro me lembra meu lado feminino mas hoje sou menino
Seu cabelo brega
Sua jaqueta amarela
Me deixa transar com você”
Hoje Ana Frango Elétrico é “menino”. Amanhã pode não ser. A identidade é uma questão extremamente pessoal, ainda mais para esta cantora que não era reconhecida pelas confidências — no máximo sabíamos que não gostava de picles nos hambúrgueres. Apesar da gravidade desta confissão, da complexidade do género não binário, Ana não resiste, logo atenua a seriedade e compara-se a personagens da Netflix: “I’m the boy of Stranger Things/ I’m not the girl that you think”. “O humor é um isca”, esclarece. “A galera fala que sou parecida com a garota de Stranger Things, aí eu falo, não, eu sou o boy of Stranger Things, o cara. Eu não sou a garota que você pensa.”
Uma série popular de ficção-científica, cigarros Dunhill ou picles não são propriamente temas habituais em canções. “O meu maior guia é a poesia e o som das palavras. O que fica engraçado é sem querer, eu não quero fazer uma música engraçadinha.” O delírio de Ana Frango Elétrico, como cantava Belchior, são as coisas reais, é suportar o dia a dia. “Gosto de falar de coisas não falando literalmente sobre elas. Gosto da fantasia. O mundano me inspira. E como compositor, acho que temos o dever de retratar o nosso tempo. Esta é a maneira como reproduzo o meu tempo.”
As canções de Ana Frango Elétrico são uma viagem pelos pensamentos fulminantes que esquecemos no segundo seguinte, as pequenas bizarrias do quotidiano: “Amanhã, por acaso, pode ver o passeador/ De cachorros/ Que parece o Lenny Kravitz”. Em certa medida, está na tradição de um Jards Macalé, Arrigo Barnabé ou Tom Zé, os especialistas em confundir para esclarecer. E assim como os hipsters originais da canção brasileira, é de feitio torcido, está sempre preparada para perverter qualquer expectativa, basta mencionar que adotou “Ana Frango Elétrico”, uma variação desconcertante do seu próprio nome: Ana Fainguelernt.
“É doido, eu sei que sou muito nova, tenho 25 anos, mas comecei com 16”, sublinha a filha de uma carioca e um paulista, criada em Santa Tereza, bairro de palacetes e favelas, ladeiras e calçada, a resvalar na Lapa, o centro boémio do Rio de Janeiro. Quando saiu o primeiro álbum, Mormaço Queima, em 2018, o espanto não foi somente com a tenra idade, mas também com a excentricidade de uma compositora carioca, nascida na terra musicalmente mais batida do terreiro. “O Rio de Janeiro é uma cidade muito segregada, há uma cena grime muito forte, por exemplo, mas há um interesse gringo voltado para coisas específicas”, defende, recordando o sucesso repentino de Bala Desejo em Portugal — uma banda coproduzida pela Ana Frango Elétrico. “Eu tenho uma briga com amigos que reforçam estereótipos que vocês gostam de ouvir, sobretudo esteticamente. Ficar reproduzindo uma certa estética fecha o espaço”.
Reproduzir uma certa estética, facilmente identificada, é algo que ninguém pode apontar às canções de Mormaço Queima, o álbum de estreia de Ana Frango Elétrico; a certa altura, uma cantiga lofi encarna uma marchinha carnavalesca, numa divagação em inglês macarrónico sobre ter fome de madrugada: “I have only farelos/ And I guess/ The kitchen is closed”. “Considero o Mormaço um anti-álbum, um chute na indústria da música, é antagonista, quer cuspir no negócio. Depois começo a gostar do fonograma, do álbum, da engenharia.” A guinada foi Saudade, a canção de abertura de Little Electric Chicken Heart, quando atirou-se, enfim, de pés juntos para a imensa paisagem carioca, samba e batucada, janela vista mar, trovoada ao fundo, em cinemascope.
Se Mormaço Queima foi uma navegação à vista, Little Electric Chicken Heart velejou pelas águas serenas de uma reconhecida tradição musical, do bolero ao samba-canção, estendeu a canga no areal e sentiu a temperatura da água. O resultado poderia ser um deleite nostálgico, uma recordação da época radiofónica, de canções e arranjos grandiloquentes, mas a excentricidade intransigente de Ana Frango Elétrico coloca-nos sempre na ponta da cadeira; ora ouçam Torturadores, que cantiga agradável, bem-conformada, até que: “Pesquisando o nome e o endereço de torturadores/ Só pra contar pros netos e porteiros/ Que têm todo o direito de saber”. Desculpe, eu ouvi mesmo isto?
“O Little Electric Chicken Heart foi uma pesquisa sonora. Normalmente a galera referencia os anos setenta, mas fiquei com vontade de ir mais atrás, qual era a referência dessas referências?”. O mergulho em Johnny Alf, Blossom Dearie ou Nora Ney, com arranjos de metais de António Neves, concebeu um universo selado, cuidadosamente polido, fechado em quatro paredes. “Sou uma pessoa muito construtivista, no sentido do sublime, da redução das coisas. E sou obsessiva em pensar o raciocínio do álbum, o começo e fim, não gosto de um álbum repetitivo, não há aqui repetições de andamento, de começos, de tonalidades.” A produção habilidosa, e a voz idiossincrática, convenceu metade do Brasil a chamar esta tal de Frango Elétrico para perto de si: Luiza Brina, Péricles Cavalcanti, Thiago Nassif, Ava Rocha, Julia Branco, Pedro Fonte, JOCA, Jadsa ou Sophia Chablau estão entre os músicos que colaborou ou produziu nos últimos dois anos. “Sou perfeccionista nos timbres, no conceito que quero passar, mas sou muito livre com a música. Eu gosto de magia, gosto de sentimento. É muito mais importante passar sentimento num take do que estar tudo milimetricamente bem executado”.
Sentimento é a palavra-chave de Me Chama de Gato que Eu Sou Sua. Muito sentimento. Ninguém no seu perfeito juízo, em 2023, convida mais de vinte músicos para entrarem em estúdio, com a respetiva parafernália, trombones e violinos, saxofones e flautas, para interpretar uma balada erótico-romântica que decorre sobre o amor a quadris e pés. Insista em Mim é do campeão Roberto Carlos, o tipo de proposta ordinária de Cavalgada, ou claro, Proposta; em teoria, nada impede Ana Frango Elétrico de ultrapassar a barreira indie e invadir os lares brasileiros. A nossa aposta de sucesso vai para Nuvem Vermelha, a canção mais MPB do álbum, arranjos sumptuosos que merecem abertura de novela, ou como diria Gilberto Gil, é cantiga para tocar na rádio, para uma moça dengosa fazer amor.
“Neste disco os arranjos não são os protagonistas, não são estruturais. O protagonistas neste disco é bateria e baixo”, repete, não vá alguém confundir Me Chama de Gato que Eu Sou Sua com o álbum anterior. “Não sinto vontade de me repetir. Tenho vontade de me estar reinventando. Talvez o próximo disco nem faça arranjos!” Ana Frango Elétrico foge da repetição como o gato do banho, o único caminho em frente é continuar a renascer, conceber outra caixinha de som completamente diferente, conceptualmente amarrada, da primeira à última canção.
O primeiro passo é o engate, a meio caminho assume-se “menino”, no final, em Dr. Sabe Tudo, auto-intitula-se o “doutor”. “Quis fazer essa jornada de começar com Electric Fish e terminar com Dr. Sabe Tudo. Quis dar o ponto na pesquisa, deixar claro, afirmar o gato.” Dr. Sabe Tudo é o auge do bailarico, é o gato dançante, o Top Cat de corpete e chapéu roxo, o indiscutível líder do gang; infelizmente, Dr. Sabe Tudo é também a despedida desta noite, ainda agora estávamos a aquecer, esperemos que Ana Frango Elétrico volte o quanto antes, seja quem for, quanto mais purpurina melhor.