As agressões com seringas que estão a instalar um clima de insegurança na vida noturna espanhola estão envoltas em mistério: em mais de 60 pessoas picadas até agora, não se descobriu que substância foi injetada. Exceto num caso: uma jovem de 13 anos que se encontrava nas festas do bairro de Montevil, em Gijón, no Principado das Astúrias, a 31 de julho. A menor estava num grupo de amigos, a pouca distância dos seus pais, quando sentiu uma picada na perna. Algumas suspeitas recaem sobre um grupo de homens na faixa dos 50 anos que estava ao lado da jovem no momento da picada, mas acabaram por não ser localizados, segundo revelou o jornal local El Comercio. Já a menor, depois de alertar os pais, começou a sentir tonturas e sonolência e foi levada para o hospital, onde chegou com a perna dormente.
O caso não é muito diferente das dezenas de outros que já foram reportados em, pelo menos, nove comunidades autónomas espanholas: mulheres — na sua grande maioria — que estão em bares, discotecas, concertos ou festivais e que, a determinado momento, sentem uma picada no corpo. Só que este foi o único em que, após exames feitos no hospital de Cabueñes, a substância foi detetada: a jovem testou positivo para MDMA, ou seja, ecstasy líquido.
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Nas restantes análises realizadas, não só não foram encontradas substâncias tóxicas como as vítimas relataram que não foram alvo de qualquer crime. “É possível que haja casos em que algum tipo de substância tenha sido injetada e que depois tenha surgido um grupo de imitadores que estão simplesmente a picar pessoas, sem qualquer droga”, considerou Juan Carlos Miranda, enfermeiro das urgências do Hospital Costal del Sol de Marbella, que tem falado sobre este fenómeno nas redes sociais. Ainda assim, em declarações ao jornal El Español, o enfermeiro alertou que, mesmo que nada seja inoculado, o simples facto de agredir alguém com uma seringa já é “um crime contra a saúde pública”. E o suficiente para instalar o pânico entre a população — especialmente mulheres, que têm recorrido às redes sociais para expor os seus casos e fotografias das marcas.
Um desses exemplos é o de Miriam Alba, que foi picada na perna quando estava na discoteca Arena Classic, em Barcelona. “Assim que me apercebi disso, corri até ao segurança da discoteca que me ajudou, sentou-me num sofá e, em 10 minutos, desmaiei, ficando semi-inconsciente e com uma sensação de que tinha de dizer e fazer o que me mandassem“, escreveu a jovem de 20 anos na sua página do Twitter, numa publicação em que afirma: “Fui vítima de submissão química”. Miriam Alba relatou que, depois, a polícia e uma ambulância chegaram à discoteca e acabou por ser levada para um hospital. Lá, foi submetida a análises e o resultado foi o mesmo às dezenas de outro casos espalhados por toda a Espanha: “A equipa médica não me soube dizer que substância é que me injetaram”.
Hoy en la discoteca arena classic me han pinchado en el muslo. En cuanto me he dado cuenta he ido corriendo al portero de la discoteca, el cual, ayudandome, me ha sentado en un sofá y a los 10 minutos me he desplomado, quedándome semi insconsciente y con una sensación
— Miriam Alba (@miriamalbalopez) July 27, 2022
A jovem de 20 anos partilhou também fotografias do relatório médico, onde é referido que tinha “uma lesão na zona interna da coxa esquerda de um centímetro”. “Parece que se trata do mesmo modus operandi que se está a ver ultimamente nas redes sociais e também nas notícias recentes. Desconhece-se a substância tóxica utilizada“, lê-se ainda no relatório.
É precisamente a Catalunha que regista mais casos, especialmente nas áreas de Lloret del Mar, Lleida e Barcelona. Até ao momento e desde 11 de julho, 24 mulheres e um homem foram picados, segundo uma contagem do jornal El Mundo feita esta sexta-feira. Algumas destas vítimas denunciaram o caso em conjunto uma vez que se encontravam juntas quando sentiram a picada. Segue-se o País Basco, onde a polícia está a investigar 12 casos — dois deles a envolver menores de idade — e Cantábria, que regista 11 casos, todos registados num festival de Reggaeton em Santander. Também nas ilhas Baleares foram detetados casos: quatro em Ibiza e dois em Maiorca.
Portugal ainda sem casos, mas PSP está a acompanhar fenómeno “atentamente”
O fenómeno que começou em Inglaterra e já tem casos em França e Espanha ainda não terá chegado a Portugal. “Até ao presente momento, a Polícia de Segurança Pública não registou ocorrências com os contornos referidos“, informou o Gabinete de Imprensa e Relações Públicas desta força de segurança, numa resposta enviada ao Observador. Ainda assim, as autoridades estão em alerta: “Constitui um tema que nos preocupa e que acompanhamos atentamente, porquanto poderá interferir objetivamente com o sentimento de segurança nos espaços de diversão noturna”.
A PSP fornece, assim, vários conselhos de segurança sobre o que fazer no caso de se ser picado e como diminuir o risco de o ser:
- Sempre que possível, desloque-se no contexto de um grupo de amigos e pessoas que conheça bem e nas quais possa confiar;
- Ao sentir algum tipo de indisposição ou desorientação, independentemente da possível causa, procure de imediato o grupo que acompanhou;
- Deixe sempre informação com algum familiar sobre os locais que pretende frequentar e com quem;
- Se for vítima de um crime (ou de uma tentativa) não resista e procure fixar aspetos relevantes da fisionomia e comportamento do(s) autor(es);
- Em caso de emergência, ligue de imediato o número de emergência nacional (112).
A PSP fez também um apelo a que “possíveis vítimas (passadas ou futuras) denunciem qualquer tentativa de abuso, dirigindo-se a qualquer esquadra”. Até porque “grande parte dos espaços de diversão noturna terá de dispor de diversas medidas de segurança para poder operar, nomeadamente circuito de videovigilância” — o que pode permitir identificar os suspeitos. “A denúncia no menor tempo possível constitui um passo de grande relevo para o sucesso da investigação”, escreve a PSP.
“O rapaz estava vestido de preto e tinha uma seringa na mão”. Vítimas são maioritariamente mulheres e sentem tonturas e dor de cabeça
Como é já habitual, Andrea e a melhor amiga foram sair à noite em El Puerto de Santa María, uma cidade na província de Cádis em Andaluzia — região que já contabiliza mais de uma dezena de casos. “Pedi à minha amiga para ir comigo à casa de banho — vamos sempre juntas. Enquanto passávamos no meio da multidão, ela agarrou-me o braço e gritou que tinha sido picada. Não sabia como reagir, não conseguia acreditar”, contou a jovem de 22 anos ao jornal El País, acrescentando que a amiga ainda conseguiu ver aquele que pensa ser o responsável: “Ela viu que o rapaz que a picou estava vestido de preto e tinha uma seringa na mão”.
Andrea e a melhor amiga saíram daquele estabelecimento e avisaram os seguranças — que fecharam o local e chamaram a polícia e uma ambulância. Quando a melhor amiga — que sentiu um pouco de febre e desconforto — estava a ser vista pela equipa médica, percebeu que não tinha sido a única vítima: uma outra jovem apareceu a chorar porque tinha sido picada. Segundo Andrea, esta segunda vítima acabou mesmo por desmaiar.
Casos de agressão com seringa a mulheres em discotecas e bares sob investigação em Espanha
Em Málaga, uma turista francesa de 22 anos também apresentou uma denúncia à polícia depois de, no passado dia 8 de julho, ter sido picada numa discoteca. Mas a jovem só se apercebeu na manhã seguinte quando acordou com tonturas e detetou num dos seus braços duas picadas, aparentemente de seringa. No Festival Monegros Desert, com cerca de 60 mil pessoas, realizado no último fim de semana de julho em Huesca, na comunidade de Aragão, uma mulher também sentiu uma picada na perna. Instantaneamente, começou a sentir-se mal, com dormência e tontura, acabando por ter de ser levada de ambulância para o hospital, segundo contou ao El Mundo.
Os sintomas são outro elemento em comum à grande maioria dos casos. Quase todas as vítimas relataram sintomas como tonturas, náuseas, dores de cabeça, vómitos e até desmaios. Além disso, todos os casos denunciados coincidem com o perfil típico de vítimas de agressão sexual por submissão química, na realidade espanhola: jovens mulheres em estabelecimentos de diversão noturna. “A mulher é o perfil maioritário, embora ultimamente vejamos muitos casos de homens ”, afirmou María Teresa Martín Acero, presidente da Comissão de Combate à Violência do Hospital Clínico San Carlos, em Madrid, em declarações ao El Español.
“Estava lenta. Só dizia disparates e não conseguia andar direita”. No Reino Unido, houve cerca de 1.300 casos só em janeiro
Rachel está entre as primeiras vítimas deste fenómeno — cujo primeiro caso surgiu em outubro de 2021, em Nottingham, Inglaterra. Neste caso, a jovem universitária estava num bar, em Londres. Era precisamente dia 31 de outubro e festejava com o seu namorado a noite de Halloween. Mas ao fim de duas bebidas e apenas algumas horas depois de chegar ao bar começou a sentir-se mal e a ter um discurso incoerente. “Estava lenta. Comecei a sentir náuseas, mas não conseguia vomitar. Pouco depois, fiquei em branco. Só dizia disparates e não conseguia andar direita”, contou ao jornal El Mundo.
Rachel não percebia porque se encontrava nesse estado e, dois dias depois, também não tinha encontrado explicação para o facto de o seu casaco azul ter um furo. Mas depois acabou por perceber que tinha sido picada no ombro esquerdo: “O local do hematoma coincidiu com o buraco que meu pai encontrou mais tarde nas roupas que eu estava a vestir”.
Esses ataques misteriosos começaram a ser registados no Reino Unido em 2021, mas passaram as fronteiras e chegaram a França e, agora, Espanha. Naquele ano, em meados de novembro, já tinham sido relatados 274 casos de alegadas picadas. E só no mês de janeiro deste ano houve 1.300 casos. França contabiliza já mais de 800 denúncias — lá, em nenhuma das situações foi possível descobrir a substância utilizada. Segundo o El Mundo, nos poucos casos em que se conseguiu apurar uma substância, concluiu-se ser ecstasy líquido.
O que querem os agressores com este método?
Vários especialistas têm tentado explicar o que poderá estar por detrás deste fenómeno: não há crimes após as picadas e a grande maioria das pessoas que denunciou os casos não apresentou vestígios de substâncias nas suas análises. Aliás, existem algumas dúvidas de que a administração de substâncias psicoativas seja possível por este método já que, para tal, não só a a agulha deve ser de grande calibre como “é preciso tempo para injetar a substância”, explicou Juan Armengol, médico de emergência e presidente da Sociedade Espanhola de Emergência e Medicina de Emergência (SEMES) em Madrid, ao jornal El Español.
Ainda assim, mesmo que, com uma picada rápida através de uma agulha fina, seja possível introduzir uma pequena quantidade de uma substância psicoativa, não seria suficiente para deixar a vítima num estado de submissão. Apenas acusaria uma sensação de sonolência, dormência ou desorientação — que juntamente com a ingestão de álcool, que funciona como potenciador, pode traduzir-se num quadro clínico preocupante, explicou ainda a presidente da Comissão de Combate à Violência do Hospital Clínico San Carlos, em Madrid.
O médico Juan Armengol prefere identificar este fenómeno como “agressão” e não tanto “submissão química”. “Um agressor que queira cometer um crime, a última coisa que quer é injetar uma pessoa uma vez que alerta a vítima”, explicou o presidente da Sociedade Espanhola de Emergência e Medicina de Emergência. De facto, a grande maioria das vítimas apercebeu-se da picada e conseguiu pedir ajuda. Ainda assim, destaca o especialista, “o que fazem com a seringa é causar uma lesão, o que tem várias implicações, a começar pelo facto de não sabermos se está contaminada, com risco potencial de causar doenças contagiosas”.