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PAULO NOVAIS/LUSA

PAULO NOVAIS/LUSA

Devem os médicos ser obrigados a exercer no SNS?

O Ministério da Saúde admite obrigar os médicos recém-graduados a trabalharem para o SNS antes de poderem ir para o privado. Quais são os argumentos? E fazem sentido? Ensaio de Mário Amorim Lopes.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

Tem sido recentemente veiculado nos meios de comunicação social que o Ministério da Saúde está a estudar a possibilidade de introduzir um período de fidelização de médicos no SNS. Na prática, um médico recém-graduado seria então obrigado a exercer no SNS por um período pré-determinado de tempo antes de poder transitar ou acumular com o sector privado. É também ecoado nos media a reintrodução dos contratos de exclusividade com o SNS, regime jurídico que foi terminado, em 2009, por um governo socialista.

São três as justificações dadas para a introdução de tal obrigatoriedade. Em primeiro lugar, no entender do Ministério da Saúde parece fazer sentido compensar o Estado pelo investimento realizado na formação dos médicos: seis anos de curso geral de Medicina mais 4 a 7 anos, consoante a especialidade, de internato médico. Em segundo lugar, para fazer face ao aumento da procura por cuidados de saúde, um fenómeno que se tem intensificado e continuará a intensificar com o envelhecimento da população, que traz consigo doenças crónicas e várias co-morbilidades. Finalmente, é também apontada a escassez de médicos no SNS como justificativa, sendo esta uma das formas de colmatar o problema.

Será mesmo assim? Neste ensaio iremos dissecar cada um dos argumentos apresentados para justificar esta proposta. Começaremos pelas recorrentes notícias de falta de meios e analisaremos a evolução dos recursos humanos em Portugal e, em especial, no SNS. Iremos depois estudar alguns precedentes, em vigor noutros sectores, para a instituição de um período de prática obrigatória. Por fim, lançaremos algumas reflexões gerais (para que cada leitor possa aferir a justeza, ou não, de tal imposição), assim como sugestões de políticas alternativas para melhorar a retenção de médicos no SNS.

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Faltam recursos humanos no SNS?

São recorrentes as notícias que dão conta de falta de médicos ou da falta de equipamento em determinados hospitais do SNS ou zonas do país, às vezes com consequências bastante gravosas. Neste mês de Agosto, por exemplo, foi noticiado que um bebé tinha morrido depois de a mãe, grávida, ter sido transferida do hospital de Faro para o hospital Amadora-Sintra devido a “insuficiência de meios“. Também recentemente, um conjunto de médicos obstetras do hospital Santa Maria pediu escusa de responsabilidade por falhas nas maternidades, afirmando que não está garantido o número mínimo de obstetras para assegurar as escalas com segurança. O número mínimo era de cinco, sendo que, com a saída de dois, ficou reduzido a três — três obstetras para servir um dos maiores hospitais do país. Ou então o caso de António Marques, o doente de cancro do pulmão que nunca chegou a iniciar tratamento de quimioterapia porque um desentendimento entre duas instituições do SNS, o Hospital de Portimão e o IPO Lisboa, fez com que uma biópsia tivesse demorado 50 dias a ser realizada. Em 2016, morreram 2.605 pacientes enquanto esperavam por uma cirurgia.

Pode concluir-se, com bastante segurança, que a situação do SNS é de facto periclitante e que a falta de meios, tanto humanos como físicos, tem impactado o seu desempenho.

Este problema parece ser corroborado pelas enormes listas de espera verificadas em algumas zonas do país. Por exemplo, uma rápida consulta pelo Portal do SNS permite verificar que uma consulta de cardiologia no hospital Padre Américo, integrado no Centro Hospitalar Tâmega e Sousa, tem um tempo de espera de 1.650 dias (4 anos e meio), estando neste momento 938 pessoas em espera. Se for um doente prioritário, então o tempo de espera cai para 282 dias, cerca de 9 meses, estando nessas condições 13 pessoas em espera. Estes são os casos extremos, mas os tempos médios não são muito melhores. Por exemplo, o tempo médio, em dias, para uma consulta de urologia no hospital Espírito Santo, em Évora, é de 476 dias. Uma consulta de Oftalmologia no hospital Garcia de Orta demora 263 dias e uma consulta de ortopedia no hospital São José demora quase um ano — 333 dias (para uma análise mais detalhada das listas de espera no SNS pode consultar o ensaio “Porque é que há listas de espera? E como podemos melhorar?“).

Nenhum destes problemas é novo, mas há uma percepção generalizada de que se tem agravado nos últimos tempos. Com efeito, tanto o número de pessoas em lista de espera como o tempo médio de espera têm aumentado. Em 2015, estavam 191.874 pessoas em lista de espera, sendo que, em 2018, esse número aumentou para 234.726, observando-se assim um aumento muito substancial de 22% nos inscritos (gráfico 1). Isto significa que estão a entrar mais pacientes do que aqueles que estão a ser sujeitos a cirurgia, pelo que o problema tenderá a agravar-se ainda mais.

O aumento da procura justificará parte deste fenómeno, mas não explica tudo. A redução para as 35 horas de trabalho semanais, por outro lado, terá tido um impacto muito substancial no SNS. A redução afectou sobretudo os enfermeiros e as outras categorias profissionais de saúde (Técnicos Superiores de Diagnóstico e Terapêutica, Assistentes Técnicos, entre outros), o que por sua vez impactou todas as valências de centros de saúde e hospitais. Como? Por exemplo, os blocos operatórios têm agora menos uma hora por dia de disponibilidade, pelo que serão realizadas menos cirurgias (qualquer equipa cirúrgica tem de ter enfermeiros presentes). Ou seja, embora a medida não tenha afectado directamente a maior parte da classe médica, esta sentiu também os efeitos da redução.

É uma das principais queixas do Ministério da Saúde: a transição para o sector privado torna mais difícil a contratação e a retenção de médicos. Pese embora o número de médicos em Portugal estar em linha com a média da OCDE e terem sido contratados mais médicos para o SNS, o governo aponta a incapacidade de reter os médicos como um foco de problemas.

O reforço do número de enfermeiros entretanto contratados não compensou, de todo, a redução em quase 15% no horário de trabalho dos profissionais, como o gráfico 2 atesta. Quando convertemos o “número de cabeças” em Equivalentes a Tempo Integral, verificamos que ainda existe um défice de cerca de 1.517 enfermeiros em relação a 2015. Contas simples permitem demonstrar este efeito. Em 2015, existiam 38.472 enfermeiros no SNS com contratos de 40h, o que equivale a cerca de 73,9 milhões de horas de trabalho (admitindo 5 dias por semana e 48 semanas de trabalho por ano). Em 2018, por sua vez, existiam 42.451 enfermeiros, mas menos 1h de trabalho por dia faz com que, no final do ano, apenas sejam prestadas 71 milhões e 318 mil horas de trabalho — um buraco de 2,55 milhões de horas de enfermagem por ano. Ou seja, mesmo com a entrada de 3.979 enfermeiros ainda estão em falta o equivalente a 1.517 enfermeiros em regime de 35h ou 1.327 em regime de 40 horas.

Da breve análise destas notícias e destes indicadores pode-se concluir, com bastante segurança, que a situação do SNS é de facto periclitante, e que a falta de meios, tanto humanos como físicos, tem impactado o seu desempenho.

Há poucos médicos em Portugal?

A par com as queixas de falta de meios no SNS, são também recorrentes as notícias que dão conta da incapacidade do SNS em preencher vagas de especialidade. Por exemplo, no concurso da segunda época de 2018, 45% das vagas ficaram por preencher. No caso específico de jovens médicos de família ficaram por preencher quase 86 vagas, especialmente na zona de Lisboa e Vale do Tejo e Alentejo.

De 1991 a 2018, o número de médicos quase que duplicou, passando de 28.326 para 52.657, dados do INE/PORDATA (gráfico 3). Outro fenómeno observado nestes últimos 30 anos foi a feminização da classe médica. Se, em 1991, as mulheres correspondiam a apenas 40% da força de trabalho médica, em 2018 compõem cerca de 55% dos médicos.

Esta informação isolada, contudo, não nos permite saber se temos médicos a mais ou a menos. Note-se que o envelhecimento da população leva a um aumento da procura por cuidados de saúde, aumento esse que só poderá ser suprido com recurso a mais médicos. Excepto, claro, se ocorrer uma mudança significativa que permita aumentar drasticamente a produtividade, o que é pouco provável no sector da saúde (para uma análise mais detalhada convidamo-lo a ler o ensaio “Portugal tem médicos a mais ou a menos? As contas que falta fazer“).

Os dados de Portugal são também frequentemente comparados com os de outros países, em particular com os países da OCDE. Segundo o indicador “Número de médicos por cada mil habitantes”, dados de 2015, Portugal, que regista 4.26 médicos por mil habitantes, aparenta estar acima da média da OCDE, que se cifra nos 3.2 médicos por mil habitantes (gráfico 4).

O diabo está nos detalhes e este caso não é excepção. A acompanhar esses dados vem uma nota explicativa da OCDE, referindo que o número de médicos está sobreavaliado em cerca de 30% no caso de Portugal. Por este motivo, a OCDE não reporta dados para Portugal no indicador “Médicos no activo”, em contracorrente com todos os outros países, reportando apenas “Médicos com licença para praticar”. Quando descontamos os 30% que a OCDE estima, o número de médicos está em linha com os restantes países (gráfico 5). No entanto, uma vez mais, esta informação não pode ser analisada de forma isolada. O modelo organizativo e de prestação de cuidados do sistema de saúde tem também bastante influência no número de profissionais necessários. Sistemas de saúde com mais enfermeiros têm geralmente um rácio menor de médicos, por exemplo. Em sentido oposto, países como a Grécia ou como Portugal, com um rácio elevado de médicos por enfermeiro, tendem a necessitar de mais médicos.

Um médico interno está, de facto, ainda em formação, e ainda não exerce a especialidade de forma independente. No entanto, muitos médicos internos trabalham continuamente (embora sob supervisão), conduzindo consultas e diagnósticos, e ainda tendem a fazer bastantes mais escalas de urgência. Ou seja, estes médicos estão efectivamente a produzir, pelo que o salário que lhes é pago corresponde justamente a esse esforço.

Quando nos focamos especificamente no SNS, observamos uma evolução similar em termos de número de médicos. No total existiam, em 2018, cerca de 27.781 médicos a trabalhar no SNS, sendo que os médicos internos (isto é, que ainda estão a tirar a especialidade) representam cerca de 32% da força de trabalho (gráfico 6). Do total de 18.775 médicos especialistas, distribuídos entre cuidados primários e secundários, apenas 5.587 estão em regime de exclusividade com o sector público, regime contratual que terminou em 2009. Os restantes médicos têm assim a liberdade para fazerem escalas de urgência noutros hospitais ou para exercerem, em regime de acumulação, no sector privado.

Esta é uma das principais queixas do Ministério da Saúde: a transição para o sector privado torna mais difícil a contratação e a retenção de médicos. Pese embora o número de médicos em Portugal estar em linha com a média da OCDE e terem sido contratados mais médicos para o SNS, o governo aponta a incapacidade de reter os médicos como um foco de problemas no SNS.

Quanto custa formar um médico?

Outro dos principais argumentos à volta do qual revolve a discussão da obrigatoriedade de exercer no SNS é o elevado custo para o Estado. A suportar a tese do enorme investimento do Estado na formação surgem algumas contas rápidas (ou, na gíria dos anglo-saxónicos, back-of-the-envelope) que dão um valor entre 300 e 500 mil euros por médico – sendo que cerca de 90 mil euros serão para a formação base (os 6 anos de curso) e os restantes seriam para os anos de internato médico (formação de especialidade). Este valor a multiplicar por cerca de 1700 internos (que todos os anos terminam a sua especialidade) daria cerca de 850 milhões de euros/ano despendidos em formação de médicos. De acordo com a narrativa por detrás das propostas sob análise, este investimento anual estará a reverter para o sector privado.

Os valores acima são indicativos. Não existem estudos oficiais, excepto um da Universidade Nova de Lisboa, já muito datado, que compara o custo interno de cada curso. Segundo esse estudo, medicina é, com efeito, um dos cursos mais caros, ficando cerca de 12 mil euros por ano, por aluno. Direito, por sua vez, é dos mais baratos, ficando entre 4 e 5 mil euros aluno/ano. Em média, um curso do ensino superior fica por 6.800 euros/ano/aluno. Tendo em conta que o curso demora cerca de 6 anos, teríamos então 72 mil euros só de formação geral.

As contas mais difíceis de fazer surgem com o internato de especialidade, isto é, com os anos em que o médico já graduado estará a estudar e a exercer para se tornar especialista. As contas que surgem na comunicação social multiplicam o salário do interno (cerca de 1900€ brutos) pelo número de anos da especialidade, que varia entre 4 e 7. Ou seja, no caso de uma especialidade de 4 anos, o interno custaria uns adicionais 106 mil euros ao Estado, totalizando assim cerca de 180 mil euros de formação. No caso de 7 anos de formação, haveria um custo total de 258 mil euros. A estes valores acresce também o custo de oportunidade da indisponibilidade do médico especialista, que tem de alocar parte do seu tempo à supervisão dos internos. Este valor é difícil de apurar. Em ambos os casos chegamos a valores muito inferiores aos 300 mil – 500 mil euros frequentemente noticiados. Mesmo que o custo de supervisão seja considerável, dificilmente fará duplicar o custo de 180 mil euros estimado para uma especialidade de 4 anos.

Mas o mais interessante não são os números per se, mas o pressuposto de que um interno é um custo para o Estado. Ora, esta análise não é apenas equívoca, como está liminarmente errada. Um médico interno está, de facto, ainda em formação, e ainda não exerce a especialidade de forma independente. No entanto, muitos médicos internos trabalham continuamente (embora sob supervisão), conduzindo consultas e diagnósticos, e ainda tendem a fazer bastantes mais escalas de urgência. Ou seja, estes médicos estão efectivamente a produzir, pelo que o salário que lhes é pago corresponde justamente a esse esforço. Em caso de dúvida, uma breve passagem por qualquer hospital português confirmará esta afirmação — casos há em que os internos são o garante do funcionamento do hospital e sem eles não haveria escalas suficientes. É, como tal, errado contabilizar o salário dos internos como um custo de formação dos mesmos.

Seja como for, este é o terceiro grande argumento apontado: a formação médica representa um elevado investimento para o Estado, pelo que tem de existir alguma forma de retribuição por esse esforço. Leia-se, obrigatoriedade de trabalhar no SNS.

Devem os médicos ser obrigados a exercer no SNS?

A introdução de um período de obrigatoriedade de permanência no SNS decorre então destes três pressupostos: a falta de recursos no SNS, especialmente nas zonas interiores e no Algarve; o aumento da procura, resultado do envelhecimento da população, que agudiza ainda mais a falta de recursos; e o investimento realizado na formação dos médicos.

A obrigatoriedade de permanecer ao serviço do Estado existe em alguns ramos das Forças Armadas. Por exemplo, um piloto aviador que tire o seu brevet na Força Aérea (um curso que custa entre os 50 e os 60 mil euros) está obrigado a ficar lá durante um dado número de anos, evitando assim os “turistas”, como assim eram apelidados, que faziam o curso e logo depois transitavam para a aviação comercial. Este modelo é também usado nas “Big 5” da consultadoria e em várias outras empresas. Por exemplo, é oferecido ao trabalhador a possibilidade de realizar um MBA numa das melhores universidades do mundo (com um custo, assumido pela empresa, a rondar 80–150 mil dólares), mas, em troca, o trabalhador terá de permanecer na empresa durante 2 ou 3 anos, ou então pagar o valor integral do MBA.

Importa também salientar que a ideia de obrigar médicos a exercer no SNS não tem precedente em nenhum outro país europeu. Para encontrarmos outros países onde é obrigatório exercer no sector público teríamos de ir à Bolívia, Equador, Etiópia, Gana, Quénia, Lesoto, Myanmar ou Tailândia

Refira-se, contudo, algumas especificidades destes dois exemplos. No caso dos pilotos de avião existem cursos particulares, pelo que ninguém é obrigado a ingressar na Força Aérea para poder ser piloto comercial (quem o faz fá-lo justamente para evitar pagar o brevet). E, no caso das consultoras, todo o processo é voluntário: o colaborador não é geralmente obrigado a fazer a formação executiva para continuar na empresa. O sector da saúde tem algumas diferenças substantivas, porém. Em primeiro lugar, (ainda) não existem cursos de medicina privados em Portugal, pelo que qualquer futuro médico terá mesmo de ingressar numa universidade pública para realizar os seis anos obrigatórios, mesmo que estivesse disposto a financiar directamente o curso. Em segundo lugar, o acesso à especialidade é feito sobretudo no sector público e nas instituições públicas, pelo que também aqui não há grande opção por parte dos médicos internos. Ou seja, ao contrário do que acontece nas “Big 5” ou nas Forças Armadas, os médicos seriam efectivamente obrigados a ter de exercer no sector público apesar de não ser essa uma escolha voluntária. Em terceiro lugar, e embora não seja obrigatório ter uma especialidade médica, não a ter é uma enorme limitação ao exercício da actividade médica, pelo que não se trata realmente de apenas mais uma pós-graduação adicional.

Importa também salientar que a ideia de obrigar médicos a exercer no SNS não tem precedente em nenhum outro país europeu. Para encontrarmos outros países onde é obrigatório exercer no sector público teríamos de ir à Bolívia, Equador, Etiópia, Gana, Quénia, Lesoto, Myanmar ou Tailândia, países que têm elevadíssimas taxas de emigração e com uma enorme dificuldade em reter profissionais de saúde no país, especialmente nas zonas rurais. Na Europa, teríamos de recuar a 1954, quando a Noruega implementou um programa de retenção em zonas rurais, ou então à defunta União Soviética. Em moldes semelhantes ao proposto, isto é, permitindo aos médicos praticar no sector privado após o período de permanência obrigatória, apenas no Equador, Myanmar e África do Sul, sendo que a estes programas estão acoplados incentivos financeiros e não-financeiros. Se considerarmos países com programas de obrigatoriedade não voluntários e sem incentivos (o que tem sido discutido), então teremos de ir até ao Iraque, Malásia, México, a antiga União Soviética ou a Venezuela [cf. Frehywot et al., 2010].

Não obstante todos estes argumentos, talvez o mais relevante seja o pressuposto moral em que assenta a ideia da obrigatoriedade. A sociedade e os contribuintes mobilizaram-se no sentido de providenciar educação superior à população, confiando ao Estado a sua execução, pois há um entendimento geral que um curso superior melhora não apenas as competências do indivíduo como gera externalidades positivas para toda a sociedade. Ou seja, sociedades mais instruídas são sociedades mais prósperas. O objectivo é, assim, beneficiar a sociedade como um todo.

Assumamos este pressuposto como verdadeiro. O corolário deste pressuposto, feito por determinados sectores políticos, incluindo os do governo, é que existe uma “dívida” apenas para com o Estado e não para com a sociedade no seu todo, que extravasa certamente o sector público. Esta visão está obviamente inquinada, pois ignora que o sector privado e o sector social também fazem parte e compõem a sociedade — com efeito, o sector privado é o financiador do Estado. Ou seja, todos os actores privados que financiam o Estado, que por sua vez financia o ensino superior, só teriam direito a beneficiar desse mesmo investimento no caso de recorrerem ao sector público, isto é, ao SNS.

Este entendimento de que qualquer forma de retribuição pelo investimento se deva cingir ao sector público é muito questionável. A existir uma dívida, essa dívida seria para com toda a sociedade, e sobretudo para com todos os contribuintes, o que obviamente pressupõe uma visão holística da sociedade que inclua todos os sectores, e não uma Estado-cêntrica, constrita ao sector público.

Acresce a isto um outro factor específico ao caso dos médicos: a profunda iniquidade que isto geraria para com outras profissões. É que nenhuma outra profissão — desde economistas a psicólogos, engenheiros a juristas — é obrigada a trabalhar para o Estado, pese embora a sua formação ser também financiada pelos contribuintes, conquanto realizada numa universidade pública. O entendimento, presume-se, é que essa formação já beneficia a sociedade. Os médicos não são excepção e o entendimento lógico seria o mesmo. O contributo dos médicos é para a sociedade — uma sociedade mais saudável, com menor carga de doença, com um melhor estado de saúde —, estejam eles a actuar no sector público ou não.

Finalmente, um ângulo mais jurídico. Importa também reflectir sobre a reposição dos contratos de exclusividade, vínculo laboral que foi terminado em 2009: não fica claro como é que tal solução poderia resolver o problema de falta de recursos no SNS. Os médicos têm de cumprir as horas semanais estipuladas no seu contrato de trabalho, pelo que qualquer prestação adicional no sector privado sai fora do horário laboral no SNS. Como não é possível, por lei, celebrar contratos de 50 ou 60 horas, o regime de exclusividade não garantiria, de forma alguma, prestação adicional de cuidados. De facto, a medida só seria eficaz se admitirmos que os médicos, ou grande parte deles, não prestam as 35/40 horas no sector público, usando parte desse tempo para exercerem no sector privado. No entanto, isso configura uma ilicitude, sendo matéria judicial e não política, e a solução é a responsabilização e a introdução de mecanismos que permitam aos hospitais agir em caso de incumprimento.

Soluções: é possível reter médicos no SNS de uma forma voluntária?

Feita a análise dos pressupostos que fundamentam o intento do governo, resta deixar algumas ideias de como o problema de retenção de médicos no SNS poderia ser resolvido de uma forma voluntária, sem recurso a regimes de permanência obrigatória, que são políticas pouco compatíveis com o espírito de democracias liberais, como a nossa.

A Administração Pública tem vindo cada vez mais a inspirar-se nas práticas do sector privado, e, neste caso, também o pode fazer. Uma empresa, deparando-se com uma baixa taxa de retenção e incapacidade de contratar ou fixar recursos humanos, terá de recorrer a um de dois mecanismos, e eventualmente aos dois ao mesmo tempo: rever incentivos financeiros/fringe benefits e melhorar condições laborais. O Estado também pode equacionar estes instrumentos como forma de mitigar o problema, ao invés de fazer uso de abordagens mais coercivas. Isso implicaria rever os salários praticados, alinhando-os com os do sector privado, assim como as condições de trabalho no SNS, que, como as Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros têm reiteradamente apontado, levam repetidamente ao burnout dos profissionais de saúde.

Esta seria, aliás, uma boa oportunidade para alinhar parte da remuneração dos profissionais à sua produtividade. O modelo de Pay for Performance, actualmente em prática nas Unidades de Saúde Familiar do tipo B, permite que equipas mais produtivas recebam um financiamento maior. Esse é, aliás, o pressuposto do médico que quer praticar no sector privado: ele fá-lo justamente porque a sua remuneração está, na maior parte dos casos, associada à sua produtividade, o que é um claro incentivo para trabalhar mais.

Outra das queixas recorrentes dos profissionais é a inexistência de uma carreira médica. Embora a carreira médica exista estatutariamente, com diferentes níveis salariais, a sua progressão esteve congelada durante muitos anos e a diferenciação entre os vários níveis da carreira, descontando a diferença salarial, é baixa. Adicionalmente, a falta de autonomia dos serviços (para além da falta de autonomia da própria gestão do hospital) acaba também por desmotivar bastantes profissionais. A introdução de novas práticas clínicas, terapêuticas inovadoras ou projectos experimentais, como hospitais de dia, está sempre sujeita a enormes condicionalismos das administrações hospitalares.

A obrigatoriedade para os médicos criaria uma enorme assimetria para com outras profissões. É que nenhuma outra — desde economistas a psicólogos, engenheiros a juristas — é obrigada a trabalhar para o Estado, pese embora a sua formação ser também financiada pelos contribuintes, conquanto realizada numa universidade pública. 

Em termos de fringe benefits, o SNS pode conceder tempo para investigação clínica, permitindo assim uma maior articulação entre as ciências da saúde e o exercício da actividade médica. Muitos médicos, mesmo os que não são docentes no ensino superior, mantêm e cultivam actividade de investigação, e esse é, aliás, um dos motivos para preferirem hospitais-universitários públicos, pois é onde ainda se conduz uma parte substancial da investigação.

Uma outra solução, também do lado da oferta, seria alargar a formação de medicina ao ensino privado (ou posto de outra forma, não bloquear as tentativas de oferecer formação privada), assim como facilitar a abertura de vagas de especialidade em hospitais-universitários privados, reforçando assim a capacidade formativa na especialização. Efectivamente, o maior entrave à formação médica em Portugal não é hoje o acesso à universidade, mas sim a (falta de) capacidade formativa nas especializações médicas, sendo que cada vez mais há médicos sem especialidade, os chamados médicos indiferenciados. Um aumento dessa capacidade formativa permitiria formar mais médicos especialistas e, desta forma, reforçar o mercado de trabalho tanto para o sector público como para o sector privado e social sem obrigar os profissionais a exercerem num dado local.

Algumas conclusões gerais

Deixamos, em jeito de síntese, alguns pontos mais relevantes que resultam deste ensaio:

Ponto 1. O SNS vive momentos turbulentos, muito em parte justificados por falta de recursos humanos. A redução para as 35 horas semanais, que afectou sobretudo enfermeiros, técnicos de diagnóstico e terapêuticas, assistentes operacionais, entre outros, mas que teve um impacto transversal no SNS, agravou sobremaneira o problema. Mesmo com a entrada de mais enfermeiros no SNS entre 2015 e 2018, estão ainda em falta cerca de 1500 enfermeiros para cobrir o mesmo número de horas que era coberto em 2015, quando ainda vigorava o regime de 40 horas na Função Pública.

Ponto 2. O número de médicos aumentou nos últimos anos, mas ainda existem bastantes dificuldades em fixar médicos em algumas especialidades em diversos estabelecimentos do SNS, especialmente no interior. O número de médicos por 100 mil habitantes está em linha com a média da OCDE, mas este dado, por si só, não nos permite aferir se existe um excesso ou uma falta de médicos. É necessário olhar também para a procura por cuidados de saúde e, em especial, para a sua evolução futura.

Ponto 3. Os valores para o custo de formar um médico, que circulam recorrentemente pela comunicação social, estão, provavelmente, inflacionados, dando uma ideia desfasada do custo efectivo. De igual forma, os médicos internos, não tendo ainda o título de especialista, já exercem medicina, pelo que o seu salário não pode ser visto como um custo, mas sim como uma retribuição pelo trabalho prestado, à imagem de qualquer outro trabalhador.

Ponto 4. A ideia de obrigar médicos a exercer no sector público não tem precedente em nenhum outro país europeu. Para encontrarmos outros países onde é obrigatório exercer no sector público teríamos de ir à Bolívia, Equador, Etiópia, Myanmar ou Venezuela, países que têm elevadíssimas taxas de emigração e com uma enorme dificuldade em reter profissionais de saúde no país. Na Europa, teríamos de recuar a 1954, quando a Noruega implementou um programa de retenção;

Ponto 5. A obrigatoriedade criaria uma enorme assimetria para com outras profissões que, também sendo financiadas pelos contribuintes, não estão sujeitas a tal obrigatoriedade;

Ponto 6. Finalmente, nem a obrigatoriedade de exercer no SNS nem a reposição do regime de exclusividade iriam resolver os problemas estruturais do SNS, que não se prendem apenas com a dificuldade em fixar recursos humanos, e é mesmo discutível se contribuiriam de alguma forma para aligeirar as dificuldades do SNS. Em muitos países onde foi tentado, os médicos abandonaram o sector público assim que terminou o período de permanência, pelo que toda a experiência acumulada acabou por se perder. No caso do NHS (SNS britânico), a redução da prática do sector privado não aumentou a actividade no próprio NHS e pode até ser uma barreira ao aumento de produtividade no NHS [cf. Bloor t al., 2004].

Ponto 7. O SNS é uma estrutura pesada, em que as unidades operacionais estão dotadas de pouca autonomia, com um modelo de governança top-down, e onde não é possível introduzir incentivos de produtividade para atrair e reter os melhores médicos. Só um conjunto de reformas que resolva estes problemas é que permitirá tornar o SNS mais eficiente e melhor servir os seus utentes.

Mário Amorim Lopes é Professor Auxiliar Convidado na Universidade do Porto, Assistente Convidado na Católica Porto Business School, Investigador no INESC-TEC, membro do Parlamento da Saúde, doutoramento na área de Gestão e Economia da Saúde.

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