“Ninguém faz ideia do que pode acontecer a seguir”. A frase, relatada por uma fonte partidária que esteve presente na reunião desta terça-feira na sede do Infarmed, resume aquilo que diz ser o sentimento geral que reina entre especialistas, médicos e elite política: a incerteza. O pico da pandemia em Portugal “pode até já ter acontecido”, disseram os peritos numa resposta ao Presidente da República, ou pode ser no final de maio/início de junho. Ninguém sabe. À ministra da Saúde coube pôr ordem no encontro. Foi ela quem conduziu os trabalhos dando a palavra a quem se inscrevia, de mão no ar, para intervir. Aos peritos da DGS e do Instituto Ricardo Jorge coube explicar tudo quanto possível a uma plateia de políticos atenta — ora nas cadeiras vermelhas, ora no ecrã, à distância. “[Os peritos] estão com vontade de mostrar alguma esperança, mas estão muito cautelosos ao mesmo tempo”, nota uma fonte.
A reunião, que decorreu à porta fechada, e que juntou o núcleo de especialistas da Direção-Geral de Saúde e do Instituto Ricardo Jorge com a elite política e os parceiros sociais, deixou alguns presentes mais “optimistas”, mas com um pé atrás. Segundo apurou o Observador, os especialistas da DGS foram os primeiros a pedir cautela na análise da curva e admitiram mesmo que o número real de infetados em Portugal pode ser “superior a 9.500”, em vez dos estimados cerca de 6 mil – que eram os únicos números conhecidos oficialmente a essa hora.
A razão? Há uma “decalage” entre o aparecimento de sintomas numa pessoa e a realização do teste a essa mesma pessoa. Ou seja, há “naturalmente” um atraso entre os números que são publicados nos boletins diários da DGS, que são os números reais de casos diagnosticados (e que agora remetem apenas para os dados do SINAVE, o Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica), e os eventuais casos reais de infeção que possam ainda não ter sido diagnosticados. Esta foi uma das novidades transmitidas pela equipa de epidemiologistas na reunião desta terça-feira, que antecedeu a decisão do Presidente da República de prolongar o estado de emergência nacional (a decisão será tomada esta quarta-feira, consultado o primeiro-ministro, que irá reunir o Conselho de Ministros, mas só será anunciada na quinta-feira) e do reforço (ou não) das medidas restritivas para evitar a propagação do vírus.
Ao que o Observador apurou junto de fontes presentes no encontro, os dados relatados diziam respeito a segunda-feira, onde havia um total confirmado de 6.408 infetados em Portugal — número que os especialistas admitem ser inferior ao número real de infeções. A estimativa é que possa haver mais cerca de 40% de casos reais que ainda não foram testados.
O problema está então na falta de testes? Segundo relatos ouvidos pelo Observador, há intuito e vontade de “haver maior esforço de resposta” em matéria de testes, estando previsto sobretudo um reforço intensivo nos locais considerados mais críticos, como os lares e as prisões, mas no grosso da população, esta divergência temporal é considerada normal e incontornável. Segundo outra fonte presente na reunião, a média de atraso no diagnóstico da doença está neste momento nos “cinco dias”, prevendo-se que venha a diminuir com o avançar da fase de mitigação. A chave está no isolamento das pessoas sintomáticas, mesmo que não tenham ainda sido testadas, para evitar a propagação.
Pico “pode já ter ocorrido”. Mas também pode ser só em maio
A primeira ronda de intervenções foi aberta às três principais figuras do Estado: Presidente da República, presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro. “O Presidente da República é sempre o primeiro a questionar”, nota uma fonte presente na reunião. Marcelo Rebelo de Sousa, à semelhança do que tinha acontecido na semana passada, questionou os especialistas sobre a evolução da curva e sobre se mantinham a perspetiva de ter o tal planalto que prolonga o “pico” do surto para maio ou se pode ser em abril.
Segundo relataram ao Observador alguns dos líderes partidários presentes, o epidemiologista Manuel do Carmo Gomes lembrou que as previsões eram sempre arriscadas e brincou: “Se o senhor presidente me obriga a responder, eu respondo”. E arriscou na resposta, embora fazendo ressalvas de que existe uma grande imprevisibilidade: “O pico pode ser já na primeira quinzena de abril, como pode estar a ocorrer neste momento, como pode até já ter ocorrido“. A verdade é que “nenhum especialista se comprometeu” com uma data para o pico da epidemia em Portugal.
Tudo depende da evolução do índice R0 (o número básico que mede o índice de propagação do vírus), que já esteve nos 2,35, está atualmente abaixo dos dois e, se continuar a tendência de evolução dos últimos dias, pode chegar a menos de 1 ainda nas primeiras semanas de abril, o que significaria que o pico já podia ter ocorrido. Os especialistas alertam, no entanto, que o facto dos últimos dois dias terem sido bons não significa que a tendência se mantenha. Todo o cuidado é pouco, daí a incerteza das previsões.
“Mostraram-nos vários cenários da evolução da pandemia e disseram-nos que, apesar de ter havido uma inflexão da curva nos últimos dois dias, o que dá alguma esperança, os dados de hoje voltaram a pôr-nos na mesma trajetória”, nota uma fonte partidária, sublinhando que os peritos da DGS recomendaram cautela na precipitação das conclusões: não se deve concluir nada apenas com base nos avanços conseguidos num ou dois dias. A trajetória global é que importa, e mesmo assim a incerteza é grande. Em Espanha e Itália, nota a mesma fonte, no seguimento do fim de semana também costuma haver uma ligeira quebra, mas depois, na terça-feira, volta em força. Ou seja, pode ter a ver com alguma falta de informação relatada naqueles dias, que, por isso, não deve alimentar falsas esperanças.
Entre os diferentes modelos e cenários apresentados à plateia de políticos e parceiros sociais, o pior dos cenários prevê um crescimento exponencial de 30% a 40% dos casos. A curva portuguesa, que segundo os especialistas, parece começar a aplanar — se é uma tendência ou não, ainda não é claro —, está neste momento abaixo da de Itália e de Espanha. Além disso, informaram os especialistas, a velocidade de contágio está a diminuir: ou seja, entre esta reunião e a de terça-feira passada, caiu o número de pessoas que são infetadas por cada pessoa positiva. No entanto, se olharmos para o número de novos casos por cada 100 mil habitantes, a curva portuguesa continua mais acelerada do que a de Espanha e Itália, nota outra fonte. Ou seja, “houve uma viragem relevante nos últimos dias, mas estamos muito longe de cantar vitória”.
Apesar destes dados, contudo, nada aponta “para que se possa aliviar o estado de emergência e as medidas de distanciamento social”, diz ao Observador Luís Mira, secretário-geral da Confederação de Agricultores de Portugal (CAP), que esteve na reunião. Aliás, os profissionais de saúde deixaram a cautela de que, se houver uma diminuição da intensidade das medidas, poderia haver uma subida do número de novos casos. “Os especialistas são claros e objetivos na explicação, só não são objetivos nas respostas que as pessoas querem, porque não têm resposta, explicam isso incessantemente”, refere Luís Mira.
António Costa, relataram ao Observador fontes presentes na reunião, falou no final da reunião e fez referência às “milésimas no R0” que podem mexer com a altura do pico. O primeiro-ministro quis, mais uma vez, deixar claro que tem de tomar decisões políticas quando da parte dos cientistas e especialistas há muita incerteza, o que dificulta essa tomada de decisão. “O primeiro-ministro foi o primeiro a reconhecer que as medidas tomadas são sempre tomadas em cima de informação parcial e incerta”, diz uma fonte.
Reabrir escolas? Dia 7, Costa quer toda a informação possível
Sobre a abertura das escolas, Costa admitiu ser uma situação complicada, lembrando que nalguns casos está em causa o acesso dos estudantes à universidade e que esta situação cria implicações na vida das pessoas. O primeiro-ministro lembrou, no entanto, que dia 9 é dia de tomar decisões, e pediu especificamente ao núcleo de peritos para até ao dia 7 de abril lhe fornecerem toda as informações possíveis. Alertou para a dificuldade da decisão, mas não revelou, no entanto, se estava inclinado a manter as escolas fechadas ou a reabri-las. A hipótese de haver uma reabertura “gradual” também não está descartada.
Marcelo Rebelo de Sousa explicaria cá fora que haverá nova reunião a 7 de abril, precisamente para que todos possam estar informados sobre se reabrir as escolas é ou não uma boa medida. “O primeiro-ministro pediu para dia 7 haver uma análise rigorosa sobre o surto. Disse que queria decidir sobre o terceiro período letivo com base no maior conhecimento possível”, notou uma fonte política presente na reunião.
Em cima da mesa esteve ainda a possibilidade de um regresso gradual à normalidade na vida social e económica do país — mas também isso depende do pico, e também para isso não há resposta. A título de exemplo, falou-se no caso da Suécia, que reabriu gradualmente algumas escolas para permitir aos progenitores o regresso ao trabalho. A hipótese não foi concretizada para o caso português, mas não está ainda descartada.
Para já, e tal como Marcelo Rebelo e Sousa confirmou no final da reunião aos jornalistas, parece certo e sabido que o estado de emergência vai ser prolongado por mais 15 dias (a lei obriga a uma reavaliação a cada 15 dias). Resta saber se as medidas restritivas vão ser agravadas ou apenas mantidas. Ao que o Observador apurou, não foram lançadas muitas pistas na reunião sobre o agravamento das medidas, com António Costa a remeter sempre para o Presidente da República, que é quem dá o primeiro passo formal sobre o decreto do estado de emergência. Ou seja, antes da formalização, nada revelado.
Ainda que nada tenha ficado garantido, um dos parceiros sociais presentes na reunião interpretou, das palavras do primeiro-ministro, que um prolongamento do decreto, a existir, não conheceria grandes mudanças face ao que está em vigor. A decisão será tomada e anunciada pelo Presidente da República na quinta-feira ao final do dia. Se for prolongado o estado de emergência, durará até ao dia 17 de abril.
Outro dado que foi mostrado pelos peritos e considerado interessante por alguns dos presentes foi a ideia de que os modelos matemáticos que calculam a curva estão a ter em conta “dados das operadoras móveis” que permitem ver a afluência das pessoas ao centro de Lisboa e Porto. Trata-se de dados anónimos, que distinguem apenas se o utilizador é português ou estrangeiro, e que permitem ver se houve deslocações ao centro da cidade depois de ter sido decretado o estado de emergência. A conclusão é de que as pessoas não deixaram de ir para a rua de um dia para o outro, mas sim de forma gradual. “É importante saber que os peritos estão a incluir nos modelos matemáticos todos estes desvios, não estão a fazer uma avaliação cega de que está toda a gente em casa a partir do decreto do estado de emergência”, diz uma fonte.
Ministra pediu instruções para lares de idosos, e peritos dividem-se sobre utilização de máscara
A palavra de ordem é disciplina e manter a pedagogia da prevenção. De acordo com relatos feitos ao Observador, António Costa não esclareceu se ia apertar a malha legal para obrigar à quarentena das pessoas enquadradas em grupos de risco, tendo sido debatido na reunião que há medidas que foram tomadas em países como a China e a Coreia do Sul, consideradas bem sucedidas, que “são impossíveis de tomar em Portugal por questões culturais e outras”. É o caso da georeferenciação nos infetados ou da imposição de que só determinada pessoa da família pode sair de casa em determinadas regiões do país. A chave não parece estar nas obrigações legais, mas na disciplina individual.
Entre os dados e gráficos que foram exibidos pelos peritos, fontes ouvidas pelo Observador destacam os dados sobre o predomínio de idosos, mas também do aumento de casos em pessoas mais novas. Os lares, contudo, são a “grande preocupação” e foram um tema transversal a toda a reunião. A ministra do Trabalho e da Segurança Social, Ana Mendes Godinho, tomou a palavra para garantir que todos os lares serão testados nas próximas semanas designadamente com recurso a testes de diagnóstico produzidos em Portugal, do Instituto de Medicina Molecular, e pediu inclusive mais instruções sobre a forma de atuação nos lares, visto que muitos deles queixam-se de falta de orientações. Foi aí que os peritos da DGS deixaram claro que “muito em breve” vão sair novas diretrizes sobre a forma de atuar em relação aos lares. A ideia é que essas instruções cheguem de forma clara às autarquias locais, que devem agir sem esperar por ordens do Estado central.
Onde também estão previstas novas diretrizes é no capítulo do uso de máscaras de proteção individual. O secretário de Estado da Saúde anunciou, na conferência de imprensa diária, que na noite desta terça-feira “chegam ao Porto 3.5 milhões de máscaras, 300 mil toucas, 100 mil batas entre outros equipamentos”. Mas o Observador sabe que, na reunião que decorreu na sede do Infarmed, ficou em evidência que “há opiniões divergentes sobre o uso de máscaras” entre os peritos. Por essa razão, a diretora-geral da DGS reconheceu que é preciso uma maior clarificação sobre o tema, estando a trabalhar no sentido de emitir informação mais concreta sobre o uso de máscaras por parte da população em geral.
O uso de máscaras, de resto, foi particularmente discutido. “O que disseram foi que na Europa não se está a usar massivamente máscaras, mas na China sim. Primeiro porque cá não há, segundo porque os cientistas não estão de acordo sobre a eficácia”, diz Luís Mira ao Observador. Um outro parceiro social adianta ainda que Graça Freitas, diretora-geral da Saúde, voltou a frisar que o uso de máscaras deve ser feito por profissionais de saúde e por pessoas infetadas, e portanto, não há indicação de generalizar a toda a população. Mas novas instruções serão divulgadas em breve.
Ramalho Eanes, o único dos conselheiros que fez perguntas. Rio por videoconferência
Os conselheiros de Estado, que não tinham estado na primeira reunião, marcaram desta vez presença por videoconferência (ao contrário dos restantes que estavam presentes na sala a uma distância de segurança). Dos conselheiros de Estado apenas o antigo Presidente da República, António Ramalho Eanes, fez uma pergunta dirigida ao presidente do Infarmed, questionando se a autoridade do medicamento não deveria dar uma palavra pública sobre os tratamentos, os avanços de uma eventual vacina e a eficácia dos medicamentos.
O presidente do PSD, Rui Rio, que já na primeira reunião não tinha feito qualquer pergunta, desta vez não marcou presença física. O líder da oposição assistiu à reunião por vídeoconferência (afinal, também ele é conselheiro de Estado), fazendo-se representar pelo vice-presidente da bancada do PSD, Ricardo Batista Leite. Fizeram ainda perguntas a líder do Bloco, Catarina Martins, o líder do CDS, Francisco Rodrigues dos Santos, o líder da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, o líder do PAN, André Silva, o líder parlamentar do PCP, João Oliveira, ou a secretária-geral da CGTP, Isabel Camarinha.
Francisco Rodrigues dos Santos perguntou se a DGS não devia aumentar a testagem e também se não era possível um novo fluxo de informação que torne o boletim da DGS mais credível, alertando que com o SINAVE só vão ser conhecidos uma parte dos casos (cerca de 75%). Rita Sá Machado, da DGS, respondeu que é preciso equilibrar as expectativas com o rigor, mas que ela preferia números incompletos, desde que fossem rigorosos. O líder do Chega, André Ventura, questionou depois os especialistas sobre a possibilidade de reinfeção, querendo saber se as pessoas curadas — que, como se fala na Alemanha, podem ter uma espécie de “passaporte” para circular por se terem tornado imunes ao vírus — podem contrair uma segunda infeção. O vice-presidente da bancada do PSD, Ricardo Batista Leite, que também é médico, quis saber se os especialistas consideram as medidas tomadas pelo governo suficientes. Bloquistas e comunistas centraram-se ainda nas questões dos testes, da pressão sobre o SNS e no grande problema dos lares de idosos.
Numa reunião que deixou a economia e as questões laborais de lado, entre os parceiros sociais as perguntas não foram muitas. Isabel Camarinha, secretária-geral da CGTP, colocou duas questões. Primeiro sobre os materiais de proteção, não só para os profissionais de saúde, mas para todos os restantes. “Temos recebido relatos de trabalhadores que não têm condições para respeitarem as regras de segurança no local de trabalho determinadas pela DGS. Em muitos casos não há distribuição de equipamentos de proteção”, conta ao Observador. À CGTP foi dada a garantida de que ainda esta terça-feira ou na quarta-feira sairá uma orientação da DGS a indicar quais os equipamentos de proteção individual indicados para cada setor de atividade — do comércio, à indústria, serviços, etc. Isabel Camarinha pediu depois um reforço do Serviço Nacional de Saúde.