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Blood diamonds in Sierra Leone
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Sygma via Getty Images

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Diamantes de sangue. A operação Miríade mostrou que esta é ainda uma história de secretismo e violência muito dura longe do fim

Diamantes traficados por militares portugueses podem ter financiado conflito na RCA, como acontecia na Serra Leoa. Malha apertou, mas o secretismo e a violência ainda marcam este negócio.

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“Sim, é assustador, mas neste negócio é preciso arriscar. (…) Este é um país de diamantes.” Não demorou muito até a equipa da ONG Global Witness conseguir entrar em contacto com um traficante de diamantes na República Centro-Africana (RCA), quando elaborou um dos seus relatórios mais completos sobre o tema, em 2017. Foi isto que um deles lhes disse ao telefone, quando um dos investigadores se fez passar por alguém interessado em entrar num negócio ilegal de tráfico de diamantes no país. Uma conversa provavelmente não muito diferente da que terão tido alguns militares portugueses que participavam na missão das Nações Unidas no país e que, segundo o Ministério Público, se terão envolvido num esquema de tráfico de diamantes do país.

Ian Smillie estudou o percurso dos chamados diamantes de sangue toda a vida, debruçando-se sobretudo no caso da Serra Leoa, no início do século. Ao Observador, confessa que não conhece a situação na RCA tão a fundo, mas sabe o suficiente para afirmar com certezas que o tráfico de diamantes no país é uma realidade banal nas ruas de Bangui: “Se você fosse à República Centro-Africana, provavelmente conseguia comprar um diamante ao fim de umas duas horas”, diz, a partir de Ottawa, o autor de Freedom from Want, Blood on the Stone: Greed, Corruption and War in the Global Diamond Trade (sem edição em português).

“Há já muitos anos que estão a ser feitas várias tentativas para que o Kimberley Process alargue a sua definição de ‘diamantes de conflito’ para incluir diamantes extraídos noutros contextos de violência, mas tal não tem acontecido.”
Ian Smillie, investigador de tráfico de diamantes e um dos fundadores do Kimberley Project

A probabilidade de esse diamante ser não apenas ilegal mas um chamado “diamante de sangue” é extremamente elevada. A RCA é atualmente o único país no mundo onde, segundo o processo formal de certificação de diamantes (Kimberley Process), os diamantes ainda são usados para financiar grupos rebeldes e fomentar um conflito militar. Não são todos: desde 2015 que, apesar de o conflito estar longe de terminar, o país tem algumas zonas de exploração “certificadas” e autorizadas. Mas as milícias Séléka e anti-balaka controlam muitos dos locais de exploração e grande parte da cadeia de tráfico.

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“A maioria dos diamantes da RCA, uns 90% a 95%, estão a ser traficados para fora do país”, afirma ao Observador Hans Merket, investigador do IPIS, um think tank especializado na exploração de recursos naturais em contextos de conflito em África. Questionado sobre se os diamantes traficados pelos militares portugueses poderão ser “de sangue”, Merket é cauteloso, mas arrisca: “É difícil dizer, depende de quais as minas onde foram encontrados. Mas creio que é provável”.

Um “símbolo do amor e da pureza” manchado desde 1860

“O termo ‘diamante de sangue’ tem uma conotação mais lata e emocional, a comunidade internacional prefere falar em ‘diamantes de conflito’. E esse é um termo com uma definição muito específica, estabelecida pelas Nações Unidas e pelo Kimberley Process”, explica Merket. Em concreto, as organizações definem os “diamantes de conflito” como “diamantes em bruto que são usados por movimentos rebeldes para financiar as suas atividades militares, incluindo tentativas para minar ou derrubar governos legítimos”.

Mesmo com a definição tão apertada, continua a ser este o caso da maioria dos diamantes traficados da RCA, assegura Ian Smillie, já que o país está mergulhado num conflito deste género desde 2012, quando os rebeldes Séléka (representantes da minoria muçulmana) começaram uma ofensiva para derrubar o governo — objetivo alcançado no ano seguinte. Desde então, e com o contra-ataque das milícias anti-balaka (representantes da maioria cristã) a RCA enfrenta um conflito que já matou mais de cinco mil pessoas. Os militares apanhados na Operação Miríade faziam precisamente parte da força de paz da ONU no terreno, a MINUSCA.

Presidential elections in Central African Republic

Os militares apanhados na Operação Miríade faziam precisamente parte da força de paz da ONU no terreno, a MINUSCA

Anadolu Agency via Getty Images

O problema da origem dos diamantes, contudo, está longe de ser limitado a este país. “Há já muitos anos que estão a ser feitas várias tentativas para que o Kimberley Process alargue a sua definição de ‘diamantes de conflito’ para incluir diamantes extraídos noutros contextos de violência, mas tal não tem acontecido”, explica Smillie, um dos fundadores do projeto que se distanciou entretanto dele e que imputa a resistência a governos como o chinês, o indiano e o russo. “Temem que se for incluída uma causa sobre direitos humanos neste tema, essa cláusula possa vir a ser aplicada noutro tipo de acordos.” Mas a mudança, diz o especialista, seria positiva até para a própria indústria: “Os diamantes são um símbolo do amor e da pureza. Tudo o que ponha isso em causa, como a violência, abusos e tráfico, é preocupante para uma marca.”

A história da exploração diamantífera, porém, tem sido marcada por essas violações desde sempre. Para Steven Press, historiador da Universidade de Stanford e autor de Blood and Diamonds: Germany’s Imperial Ambitions in Africa, a discussão sobre se um diamante é ou não “de sangue” é espúria, tendo em conta a falta de transparência nesta área: “A distinção é apenas de grau”, afirma ao Observador. “O que torna um diamante ‘valioso’ é, em parte, o mistério, alimentado pelas técnicas obscuras de avaliação e de marketing.”

A África do Sul foi o ponto de partida para a corrida aos diamantes por parte dos exploradores europeus no continente, mas rapidamente essa exploração se alargou a dezenas de outros territórios. Também Portugal fez parte dela: em 1917, foi criada a Companhia de Diamantes de Angola (Diamang). Já à altura, lembra o jornalista angolano Rafael Marques na sua obra “Diamantes de Sangue: Corrupção e Tortura em Angola” (ed. Tinta-da-China), “o regime de exclusividade outorgado pela entidade colonial conferia à Diamang o poder único de dispor da mão-de-obra local, conforme os seus desígnios, e de controlar toda e qualquer atividade comercial na região”.

Le leadeur indépendantiste Jonas Savimbi applaudit par la foule

A UNITA de Jonas Savimbi financiou-se durante anos com recurso a diamantes de sangue

Gamma-Rapho via Getty Images

O espaço para os abusos na exploração e comércio não é, por isso, novo. “Podemos até dizer que os consumidores andam a comprar diamantes de sangue desde 1870, quando os imperialistas europeus em África começaram a controlar a maioria do fornecimento mundial de diamantes e a usar os lucros para financiar a ocupação colonial de África”, aponta o historiador Steven Press. “E a ideia de que é possível identificar a origem de cada diamante sempre teve falhas. Os traficantes — e até os governos — podem usar vários estratagemas para contornar isso. Há o uso de animais, fundos falsos em malas, alteração de manifestos de voos, etc. Alguns são esquemas bem antigos”. Agora, com a Operação Miríade, encontramos um novo: o recurso aos voos militares da missão na RCA, cuja carga não era à data verificada.

O tráfico de diamantes que perpetua situações de violência em 2021, porém, não é tão alarmante como em outros momentos da História. Na década de 1990, os “diamantes de sangue” ajudaram a financiar a guerra civil de Angola, com Jonas Savimbi a controlar quase todo o setor diamantífero no país: Christian Dietrich, um dos maiores especialistas do mundo nesta indústria, calcula que entre 1992 e 1999 a UNITA terá conseguido quase quatro mil milhões de dólares a partir do mercado dos diamantes.

“Podemos até dizer que os consumidores andam a comprar diamantes de sangue desde 1870, quando os imperialistas europeus em África começaram a controlar a maioria do fornecimento mundial de diamantes e a usar os lucros para financiar a ocupação colonial de África.”
Steven Press, historiador

Mas o caso que fez o mundo despertar para o flagelo dos diamantes de sangue foi o da Serra Leoa. A guerra civil no país (1991-2002) foi financiada em grande parte com os recursos diamantíferos locais, vendidos à Libéria de Charles Taylor em troca de armamento, e deixou marca pela extrema violência. O grupo Revolutionary United Front (RUF), que controlava as minas, tornou-se infame pelo recurso a crianças-soldado e à violência aplicada sobre as populações. O jornalista Greg Campbell recorda que, quando dizia aos seus amigos que ia cobrir a situação na Serra Leoa, estes lhe respondiam com um gesto que ilustrava alguém a cortar uma mão: “Havia imagens muito gráficas sobre o uso de crianças-soldado e a brutalidade que era cortar as línguas e os membros às pessoas”, recorda o jornalista no seu livro Blood Diamonds: Tracing the Deadly Path of the World’s Most Precious Stones (sem edição em português). Nele, Campbell estima que a RUF lucrava entre 25 a 125 milhões de dólares por ano com o tráfico de diamantes.

Sierra Leone''s RUF Starts to Let Child Soldiers Go

As RUF, da Serra Leoa, ficaram conhecidas pelo recursos a crianças-soldado durante a guerra civil financiada com diamantes

Getty Images

A brutalidade da situação na Serra Leoa e a indignação pública levaram a comunidade internacional e a indústria dos diamantes a reagir. “Até cerca de 2001, 25% dos diamantes em bruto que circulavam eram de origem ilegítima. Eram usados para lavar dinheiro, sustentar o tráfico de droga, etc.”, resume Ian Smillie. Foi no rescaldo do conflito da Serra Leoa que foi criado o Kimberley Process, que passou a tentar controlar a origem dos diamantes e a proibir o comércio de minerais usados para financiar guerras. “Isso ajudou a que se alterassem muitos comportamentos. As empresas querem tentar provar que os seus diamantes são limpos. Mas histórias como esta de agora são um olho negro neste processo. E fazem-nos lembrar que ainda há problemas”, avisa o investigador canadiano.

A violência que anda de mãos dadas com os diamantes: exploração, trabalho infantil, crianças-soldado e maus-tratos

Na República Centro-Africana os problemas são agudos. O país não é dos maiores produtores de diamantes do mundo (fica aquém de Angola e da República Democrática do Congo, por exemplo), mas a qualidade dos seus diamantes é elevada. Em 2008, a IPIS fez um estudo a comparar o preço médio por quilate dos diamantes vindos destes três países e o valor não deixava margem para dúvidas: 30 doláres na RDC, 150 dólares em Angola, 180 dólares na República Centro-Africana.

Inicialmente proibido de exportar diamantes com o deflagrar do conflito em 2012, o país passou a ter autorização para vender os minerais em 2015, por decisão do Kimberley Project — mas apenas em cinco subprefeituras da RCA, consideradas controladas pelo governo interino e não pelos rebeldes. Só que, na prática, há muito mais diamantes a serem levados dali. “Antes do embargo, eles exportavam diamantes no valor de 50 a 60 milhões de dólares por ano. Agora exportam oficialmente apenas 10 milhões, portanto há muito diamante a ser produzido que não entra no sistema de forma legítima”, aponta Ian Smillie. As Nações Unidas confirmam: o valor de quase 11 mil quilates de diamantes exportados em 2019, diz a organização, corresponde apenas a “uma pequena porção da produção de diamantes nessas áreas [as autorizadas], que se estima ser superior a 160 mil quilates por ano”. E isto sem contar com a produção ilegal no resto do país.

Bangui Disconnect: Daily Life After Waves Of Rebel Violence Outside Of Capital

A RCA não é um dos países que mais produz diamantes em África, mas a sua qualidade é altamente elogiada

Getty Images

Isto significa que, na prática, grande parte da produção estará a servir para financiar as milícias. As ONG denunciam os casos no terreno: “A 1 de agosto, os anti-balaka apareceram com catanas, quase me mataram”, contou um garimpeiro à Amnistia Internacional em 2015. Os grupos rebeldes tentam assim intimidar os trabalhadores locais e tomar o controlo das explorações nos rios locais.

A ONU confirma também esta realidade. Em 2015, um responsável da missão de paz confirmou que na cidade de Bria “a principal atividade económica é controlada por antigos Séléka”. No ano seguinte, o painel de peritos no país das Nações Unidas confirmou que antigos guerrilheiros Séléka controlam a exploração diamantífera em Bria com instalações “militarizadas”. Já antes o mesmo painel dava conta de minas controladas pelos anti-balaka na zona oeste do país: “Grupos armados estão presentes em vários locais de exploração de diamantes na zona ocidental da RCA, dentro e fora das zonas autorizadas pelo Kimberley Process”.

A Amnistia Internacional denuncia ainda casos no leste do país em que, por não conseguir controlar os locais de exploração, os Séléka funcionam como uma máfia que aplica “taxas” e “pagamentos de proteção” aos garimpeiros locais. O Enough Project estima que os rebeldes consigam obter entre 3 a 6 milhões de dólares por ano relacionado com a produção de diamantes. “Num país onde uma granada é mais barata do que uma lata de coca-cola, podem imaginar o que este dinheiro pode fazer para alimentar o conflito”, apontava a especialista da Global Witness, Alice Harne, à Deutsche Welle, em 2016.

“Tanto dentro da RCA como nos países vizinhos, a maioria dos intermediários não quer saber de onde vem os diamantes. Só quer fazer lucro. Por isso não fazem perguntas.”
Hans Merket, investigador do IPIS

A maioria destes diamantes acaba por ser traficada por terra, passando primeiro para os países vizinhos, nomeadamente os Camarões e a República Democrática do Congo. “As redes de tráfico são complexas. Às vezes são apenas indivíduos à procura de fortuna, outras vezes são redes complexas e organizadas com ligações a grupos terroristas ou criminosos”, ilustra Hans Merket. “Tanto dentro da RCA, como nos países vizinhos, a maioria dos intermediários não quer saber de onde vêm os diamantes. Só quer fazer lucro. Por isso não fazem perguntas”.

As perguntas que não são feitas não são apenas as relacionadas com o destino final do pagamento. Muitas vezes são sobre as próprias condições em que os diamantes são extraídos, já que as violações de direitos humanos são recorrentes na maioria destas explorações — quer na RCA, quer noutros países africanos. “Há muitos casos de trabalho forçado e, também, de trabalho infantil, algo comum na região”, aponta Merket. Ian Smillie corrobora: “Na RCA, na RDC, em Angola, temos minas de aluvião [em leito de rio], onde a extração é muito fácil. Quando temos países com populações tão pobres, todos tentam a sua sorte. E é muito fácil para grupos rebeldes intimidarem-nos”.

Ndassima gold mine in Central African Republic

A maioria dos diamantes explorados na RCA são obtidos em minas de aluvião, de fácil acesso

Getty Images

A RCA é um dos países mais pobres do mundo — está em penúltimo lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU. A exploração dos que extraem os diamantes é visível. Um estudo do IPIS de 2019 apontava para, em apenas um ano, 87 mortes e mais de mil feridos em 42 locais de exploração no país. A mesma organização garante que as dificuldades económicas trazidas pela Covid-19 aumentaram em 50% o trabalho infantil em minas na RCA ao longo do último ano. E o lucro é pouco para um trabalho tão duro: “A maioria dos garimpeiros não tem noção do valor real de um diamante e, mesmo que o saiba, é obrigado a vendê-lo ao preço imposto pelo gestor da exploração. Este pode comprar um diamante de um quilate a um mineiro por 80 mil francos da RCA (160 dólares) e vendê-lo a um intermediário por 200 a 300 mil francos da RCA (400 a 600 dólares). Se o garimpeiro tiver alugado equipamento ao gestor, esse valor é deduzido. O que sobra é dividido a 50% com o garimpeiro que iniciou a exploração (o chef de chantier) e o resto com a equipa de cinco a dez homens. O dinheiro não dura muito quando há famílias grandes para alimentar”, ilustrava um relatório do Crisis Group já em 2010.

A violência está sempre presente. Veja-se o caso de Alfred Yekatom, que terá usufruído da exploração diamantífera do país: este comandante das anti-balaka, conhecido por “Rambo”, é suspeito de vários crimes contra a Humanidade, como homicídio de civis e recrutamento de crianças-soldado.

E apesar de a RCA ser o único país no mundo onde, de acordo com a definição do Kimberley Process, há “diamantes de sangue”, são vários os países africanos onde a exploração de diamantes é acompanhada deste tipo de violência. Em Angola, por exemplo, as explorações nas Lundas são acompanhadas de relatos de tortura aos trabalhadores por parte das empresas de segurança que controlam as explorações: Rafael Marques denunciou vários casos em que são usadas catanas sobre os trabalhadores “para violentar as nádegas, as plantas dos pés e as palmas das mãos […], causando, em muitos casos, a sua morte, sérias deficiências ou paralisia de membros”.

Angola - Diamond Mining

Uma mina em Angola, um dos países onde oficialmente não existem diamantes de sangue, mas há relatos de vários abusos sobre os trabalhadores das explorações de diamantes

Corbis via Getty Images

Também do Zimbabué surgem múltiplos relatos de violência sobre os garimpeiros, em particular na zona de Marange, onde a IPIS estima que haja cerca de 40 mortes por ano: “Davam-nos 40 chicotadas pela manhã, 40 à tarde e 40 à noite”, denunciou um antigo trabalhador à BBC.

Há ainda problemas semelhantes em países como a Tanzânia ou a RDC. Acidentes de trabalho, espancamentos, desaparecimentos e mortes são acontecimentos de rotina em muitas destas minas, bem como relatos de trabalho infantil e abusos sexuais. “Antes os diamantes eram usados para financiar guerras civis, era um cenário claro. Agora é tudo confuso. A RCA é o único caso claro em que os diamantes têm um papel numa guerra. Mas há muitos outros países onde há muita violência ligada à extração de diamantes”, aponta Merket. “Tem havido muitas tentativas de reforma do Kimberly Process, mas elas falham sempre”, diz o investigador.

RCA – Camarões – Antuérpia. Como o tráfico de diamantes percorre o mundo

Não sabemos de que minas foram extraídos os diamantes da Operação Miríade, se o pagamento foi para os bolsos de grupos armados, nem se os homens, mulheres e crianças envolvidos na sua extração sofreram violações de direitos humanos. Aquilo que sabemos é que estas são variáveis comuns numa RCA onde o Estado não tem mão na maior parte da cadeia de produção e exportação de diamantes.

Certo é que estes diamantes foram traficados — e, segundo os investigadores, terão chegado a Antuérpia, um dos principais entrepostos comerciais de diamantes do mundo, a par de locais como o Dubai e Bombaim. O que nos leva a um outro ponto do problema dos diamantes de sangue: o papel de cúmplice exercido por parte da comunidade internacional.

A Bélgica é um dos países que mais apertou a sua malha de controlo em Antuérpia, sobretudo depois de escândalos do passado que envolveram aquele entreposto no tráfico de diamantes que financiaram a UNITA e as RUF, em Angola e na Serra Leoa. Mas, mesmo assim, é possível fazer diamantes traficados chegarem a Antuérpia e serem integrados no sistema. “É muito fácil introduzir diamantes de conflito na cadeia internacional se tal for feito através dos Camarões, por exemplo”, ilustra o investigador da IPIS, que aponta a falta de controlo nesse país africano vizinho da RCA.

Gem Traders In Antwerp Under Pressure To Regulate Sales Of "Blood Diamonds"

Antuérpia é um dos maiores entrepostos de diamantes do mundo. Terá sido para ali que foram levados os diamantes traficados por militares portugueses

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Um traficante explica como: “É muito fácil obter um certificado falso quando se está a movimentar muitas pedras. O preço varia consoante o país de origem [falso] que se quer usar: 100 dólares se for Angola, 500 se for África do Sul”, explicou Douglas Tunga, traficante que opera na RDC, à revista Worlds Without Borders. “Se o comprador gastar mais de um milhão, dou-lhe um certificado falso de graça.”

Já para não falar das formas de contornar o sistema sem falsificações. “O Kimberley Project ainda permite muita flexibilidade, através dos certificados de origem mista, por exemplo. Assim que se misturam diamantes de duas origens diferentes num único carregamento, coloca-se esse tipo de certificado e deixa-se de ter de especificar a origem daqueles diamantes”, ilustra Hans Merket ao Observador. “Portanto, quando um diamante chega um entreposto como o Dubai ou Antuérpia com essa definição, o comprador seguinte não consegue saber de onde ele veio. Até os atores mais bem intencionados não podem fazer nada.

“A Operação Miríade mostra-nos como é que diamantes ilegais podem estar a passar por Antuérpia de uma forma nova, que ainda não tínhamos visto. E isto é como me disse uma vez um polícia da unidade de diamantes aqui do Canadá: ‘O tráfico de diamantes é como o roubo de carros: se achas que vais conseguir travá-lo, esquece."
Ian Smillie

Ian Smillie corrobora: “Eles podem ter uma noção clara de onde é que aquele diamante não veio. Mas não de onde veio”, afirma. “Agora, no caso da Operação Miríade, se estes diamantes chegaram à Bélgica ‘órfãos’, isto é, sem um certificado, é um caso mais complicado. Aí significa que devem ter sido levados para um lapidador que foge ao escrutínio do Kimberley Project. E aí é só encontrar um que não tenha escrúpulos.”

Oficialmente, o mercado belga não tem nenhum caso de um diamante de sangue em circulação através de Antuérpia desde 2014. Uma reputação que interessa manter ao país, já que os diamantes representam 15% das exportações belgas para fora da UE e são a quinta maior indústria da Bélgica. “Este caso mostra-nos como é que diamantes ilegais podem estar a passar por Antuérpia de uma forma nova, que ainda não tínhamos visto”, alerta Smillie. “E isto é como me disse uma vez um polícia da unidade de diamantes aqui do Canadá: ‘O tráfico de diamantes é como o roubo de carros: se achas que vais conseguir travá-lo, esquece. Os ladrões estão sempre um passo à frente, temos de estar alerta.’”

É por isso que o investigador crê que o caso das tropas portuguesas pode ser importante: para chamar à atenção para as inúmeras ilegalidades e violações ao Kimberley Process que ainda acontecem no mercado dos diamantes e para a violência que rodeia tanta da sua extração. “O controlo é fraco em locais como a RCA, a RDC, etc. Tem de haver sanções para os governos que não consigam cumprir as regras. A definição do que é um ‘diamante de conflito’ tem de ser alargada e as brechas nas leis têm de ser resolvidas. Mais do que apanhar criminosos, temos de apertar a malha em torno deles”, decreta Ian Smillie. “A Operação Miríade demonstrou que há diamantes a serem traficados da RCA e pessoas em Antuérpia dispostas a comprá-los. As tropas portuguesas aqui são apenas o intermediário num problema mais lato.

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