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Dicionário do Europeu: o campeonato de A a Z

No último dia do torneio, Bruno Vieira Amaral recorda as palavras-chave essenciais, letra a letra. E sim, o "K" é de Pepe e o "S" é de Renato. Já Ronaldo está espalhado um pouco por todo o alfabeto.

Adeptos. Uma vez mais, os irlandeses mostraram que nas bancadas e nas esplanadas são os melhores do mundo. Beberam, cantaram, ajudaram velhinhos franceses e, mesmo depois de eliminados, festejaram com aquela contagiante e um tanto maliciosa alegria de duendes celtas.

Albânia. A “minha” selecção deu luta –por alguma razão são albaneses -, ganhou um jogo e foi para casa no final da fase de grupos. O festejo colectivo depois do golo de Armando Sadiku à Roménia – o único da Albânia em toda a prova – foi mais emocionante – porque espontâneo – do que a coreografia riefenstahliana do haka viking.

Árbitros. Onde é que andam os árbitros? Os roubos escandalosos? As discussões intermináveis? Está bem, subtraíram-nos três penáltis e ainda falta a final, mas o balanço geral é positivo. Nenhum árbitro se tornou tão conhecido como os jogadores e isso é um bom sinal.

Bale (Gareth). Defendia o seu país mas tinha um olho no trono da hierarquia interna do Real. Marcou dois golos de livre (um a meias com Joe Hart) enquanto Ronaldo continuou a sua saga de tentativas falhadas. Não facturou depois da fase de grupos. Assistiu em lugar privilegiado à ascensão de Nosso Senhor Ronaldo aos céus. Ainda assim fez um excelente campeonato e a sua selecção superou todas as expectativas. Continuará a ser o nº 2 em Madrid.

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Mike Hewitt/Getty Images

Buffon (Gianluigi). O príncipe das balizas saiu em lágrimas. Levantar o caneco em Paris teria sido o final perfeito para uma carreira maravilhosa, mas jogadores desta dimensão mítica nunca saem derrotados.

Calcanhar. O de Ronaldo contra a Hungria. Rapidez de raciocínio, inteligência em movimento, elegância. O golo mais astucioso do campenato.

Conte (Antonio). O treinador do Euro. Pegou em onze jogadores medianos e transformou-os em guerreiros com muita cabeça. O jogo contra a Espanha foi perfeito. O jogo contra a Alemanha esteve lá perto. Vai agora enfrentar o seu maior adversário, Roman Abramovich, o homem que o contratou para treinar o Chelsea.

Croácia. Foi a equipa mais impressionante da fase de grupos, ao ponto de alguma imprensa a considerar favorita à vitória final. Modric e Rakitic comandavam a máquina a partir do meio-campo, Perisic acelerava na ala esquerda e Srna liderava pelo exemplo. Nos oitavos-de-final tiveram o azar de esbarrar com a equipa de Fernando Santos e não ficaram em bom estado.

Deschamps (Didier). Tem aquela cara maurrassiana do país real e isso basta para anular todas as qualidades que possa ter. Perguntem ao Cantona.

Dier (Eric). O único jogador formado em Alcochete a marcar um golo de livre directo neste Europeu.

Estética. A discussão atingiu proporções filosóficas: jogar feio ou bonito? Jogar bem e jogar bonito não são a mesma coisa? O que interessa é ganhar? É seguro comer bolas de Berlim na praia? A quanto está o quilo da cereja? Uma cueca do Quaresma é mais bela do que a Vénus de Milo? O que é a Vénus de Milo?

França. A chegada à final dos franceses era tão indesejada quanto previsível. Já se sabe que quando organizam torneios chegam sempre à final e, pior do que isso, costumam ganhá-los. Espero que os nossos jogadores os obriguem a traduzir Maracanazo para francês.

Golo. O de Shaquiri, uma obra-prima absoluta. Ainda bem que a Suíça não passou dos oitavos-de-final pois dessa forma aquele pontapé de bicicleta pode brilhar solitário na nossa memória.

Griezmann (Antoine). Autor de 6 golos e da celebração mais irritante, Antoine Griezmann é neto de um senhor de Paços de Ferreira e espero que ele tenha isso em conta quando amanhã Bruno Alves lhe partir uma perna (mentalmente). O seu momento mais filosófico foi numa conferência de imprensa quando disse que pensa em francês mas que se irrita em espanhol.

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Hart (Joe). Durante alguns anos, os ingleses acreditaram na doce ilusão de que tinham finalmente um guarda-redes de categoria mundial. Hart pagou-lhes a confiança com dois frangos.

Hazard (Eden). Autor da melhor exibição individual do torneio na goleada à Hungria, nem ele foi capaz de salvar a equipa do naufrágio táctico contra o País de Gales. Deve estar ansioso pela chegada do novo treinador.

Hodgson (Roy). Depois do jogo com a Islândia, o ar de Hodgson era o de um professor de físico-química que vê os alunos rebentarem com a sala pela enésima vez. As campanhas da Inglaterra em campeonatos da Europa geram sempre alguma perplexidade e dificultam bastante a avaliação do treinador. Olhamos para o trajecto e pensamos que é difícil algum treinador fazer pior. Olhamos novamente e pensamos que é difícil algum treinador fazer melhor.

Iniesta (Andrés). Teve um jogo mau, contra a Itália, e quando Iniesta tem um jogo mau quem sofre é a equipa. Foi provavelmente o seu último campeonato ao mais alto nível, o que é uma pena porque se trata dos poucos jogadores que faz coisas mais extraordinárias em campo do que o seu avatar na Playstation.

Islândia. Foram os darlings do torneio, com barbas de hipster ensopadas em lágrimas atlânticas, futebolzinho carracento, jaime-pachequista e celebrações colectivas que despertaram por todo o mundo a nostalgia gregária e perigosamente sentimental da multidão. Superaram as expectativas e a mais não éramos obrigados.

Jesus (Jorge). Sem qualquer dúvida, o grande responsável pela chegada da nossa selecção à final. Também contribuiu para o excelente desempenho do País de Gales e Antonio Conte muito lhe deve pela fantástica prestação da Itália. E também merece os nossos aplausos pela forma extremamente eficaz como orientou as forças de segurança francesas.

Kepler Laveran (Pepe). Um monstro, desta vez só por boas razões.

AFP/Getty Images

Kiraly (Gabor). Quando Kiraly começou a jogar ainda havia Império Austro-Húngaro. Pelo menos é a impressão que dá ao olharmos para ele e para as suas inseparáveis calças de pijama. Os jovens guarda-redes húngaros devem ter todos mudado de nacionalidade ou então foram viver para o campo onde se dedicaram à produção de palinka. Daqui a quatro anos, Kiraly jogará de robe, chinelos e dois netos às costas.

Löw (Joachim). O criador do “truck und track” (o tiki-taka alemão) não conseguiu levar a mannschaft ao título europeu embora tenho tido a arte para enfiar a mão nas calças e depois passá-la pelas narinas, no que talvez seja o seu maior legado para os treinadores do futuro e uma mensagem para a ASAE. Foi prejudicado pelo facto de a Alemanha ter deixado de produzir tanques de grande área para investir na concepção de médios de fino recorte técnico.

Microfone (da CMTV). O melhor acessório jornalístico deste Europeu. Um mártir da liberdade de imprensa e da microfonia. Resgatado das águas turvas do lago, ainda prestou declarações a um companheiro, mas o feed-back impediu que se percebesse o que dizia.

Modric (Luka). Foi um dos jogadores em destaque nos primeiros jogos. É tão inteligente a jogar que os seus passes dão equivalência a algumas cadeiras nas mais prestigiadas universidades da Europa. Entretanto, nos oitavos-de-final, foi eclipsado por Adrien Silva. O Real Madrid já enviou uma equipa à Marcoussis para averiguar se Modric não estará por acaso junto à restante bagagem do jogador português.

Nainggolan (Radja). Marcou dois golos fabulosos, ganhou o troféu de penteado mais arrojado (talvez o prémio mais disputado nestes certames) e teve autorização do treinador para fumar os seus cinco cigarrinhos diários. Com cara de quem podia andar à porrada com Jean-Claude Van Damme na Tailândia, percebe-se a tolerância da equipa técnica.

Nani. Finalmente um campeonato à altura da sua carreira, entre o anonimato e o brilhantismo, entre uma Champions com o Manchester e um jogo qualquer do campeonato turco no Fenerbahçe. Três golos, uma assistência e nem demos pela ausência do Éder. Será dele o golo decisivo na final.

Nolito. Relegou Pedro González para o banco de suplentes e foi aquele jogador que todos conhecíamos do Benfica, eléctrico e um tanto descerebrado, capaz de ligar a equipa à corrente e também o único jogador capaz de provocar um curto-circuito no tiki-taka.

Özil. Tem 1.83 metros mas parece pequeno com aqueles olhos esbugalhados de Peter Lörre e o seu arsenal de fintas melancólicas e passes que chegam ao destinatário com a mensagem da grandeza perdida dos otomanos. É a antítese futebolística do Sturm und Drang.

Patrício (Rui). Reforçou o seu estatuto como melhor guarda-redes assim-assim do mundo. Não comprometeu em nenhum dos golos sofridos, sendo que dois deles resultaram de desvios em companheiros, o que prova a existência de uma conspiração tentacular para travar a sua ascensão rumo ao Valência ou ao Mónaco. Também não fez nenhuma defesa “impossível” (no jogo contra a Alemanha, Hugo Lloris fez duas). Aliás, Rui Patrício é daqueles guarda-redes que faz todas as defesas que lhe são anatomicamente possíveis e que por uma questão de princípios se recusa a fazer mais do que isso.

AFP/Getty Images

Payet (Dimitri). Dois grandes golos (à Roménia e à Albânia) e um quase grande golo, um remate em volley que bateu na barra da baliza suíça. Foi o abono de família da França nos primeiros jogos e depois voltou a ser um bom-jogador-para-um-West Ham, como se dizia há uns anos de jogadores razoáveis: “é bom, mas é para um Estrela da Amadora”. Que amanhã, depois do jogo, seja contratado pela equipa da Reboleira.

Quaresma (Ricardo). Ver Quaresma entrar a cinco minutos do fim com o empenho de um titular é tão estranho que só pode ser explicado por uma de duas teorias: a) Quaresma amadureceu e b) Fernando Santos mantém os familiares do jogador presos numa cave sob ameaça de tortura desde o início do campeonato. É perturbante pensar que a hipótese b) não é menos descabida que a hipótese a).

Quessefodismo. Anos e anos tolhidos pelo medo cénico, pelo pavor de maldições inventadas e bestas negras, pela insuportável proximidade da felicidade e da glória, até chegar Cristiano Ronaldo com a sua aguçada pedagogia e dizer a João Moutinho o que todos precisávamos de ouvir: “se perdermos, que se foda!” Isto é só futebol, a mais importante das coisas menos importantes.

Recepção. O golo de Giaccherini contra a Bélgica vale pela recepção perfeita da bola: com o pé esquerdo que a pôs de imediato à mercê do direito. Técnica é isto.

Ronaldo (Cristiano). Depois do primeiro jogo estava fora de forma, depois do segundo estava acabado para o futebol, depois do terceiro ultrapassou Messi, depois do quarto foi ultrapassado por Quaresma como estrela da equipa, depois do quinto foi ultrapassado por Renato como estrela da equipa, depois descobriu o esconderijo de Moutinho e mostrou quem manda, depois do sexto jogo mostrou que continua lá em cima a pairar sobre os outros.

Rússia. A dois anos do campeonato do mundo, os seus homens mostraram estar em grande forma. Falamos dos hooligans, claro. Quanto aos jogadores, comportaram-se de forma anti-putinesca como autênticas florzinhas e é de esperar que passem o próximo Inverno numa estância turística na Sibéria onde irão partilhar os quartos com ursos treinados especialmente para o efeito.

Sanches (Renato). Chegou como suplente com 18 anos e conquistou a titularidade aos 25. Para desespero de alguns jornalistas portugueses foi duas vezes eleito homem do jogo, uma com 19 anos e a outra com 36, iniciou a jogada do golo contra a Polónia aos 33 minutos e 27 anos e quando abraçou Quaresma tinha novamente 15. Para as cabeças mundiais que ainda não assimilaram o fenómeno Renato, o miúdo-velho é um enigma: domina os jogos como um veterano e ainda comete erros de juvenil. Não ligues, miúdo, joga o que sabes e o que podes porque só se tem 18 anos uma vez.

Santos (Fernando). De engenheiro do penta a despedido do Benfica após a 1ª jornada, de homem que não ganhou o campeonato com Jardel na equipa a herói grego, a vida de Fernando Santos tem alternado entre cumes modestos e buracos quase rasos. Agora reinventou-se como talismã e fica na história como o primeiro treinador português a levar a selecção a uma final. Pelo andar da carruagem, daqui a dois anos ou é canonizado ou está a treinar o Asteras Tripolis.

AFP/Getty Images

Tacho (rapar o). Além de exibições muito seguras em campo (outra coisa não seria de esperar do capitão do Southampton), José Fonte teve um momento de glória quando disse que depois de anos a rapar o tacho ter a confiança do treinador num Europeu era um momento único. Há doze anos, Fonte estava a tirar um curso para jogadores desempregados. Amanhã é quase certo que será titular no Stade de France. Ainda há histórias bonitas.

Ucrânia. O departamento legal da UEFA está ocupado a reunir provas da participação da Ucrânia no torneio. Até agora foram encontradas algumas camisolas suadas e há registos de avistamentos de pessoas de nacionalidade ucraniana nas imediações de alguns estádios, mas nada de muito concreto.

Vardy (Jamie). O melhor ponta-de-lança com físico de repositor de super-mercado desde Liedson.

Vieirinha. Decisivo na caminhada de Portugal pela participação no golo da Islândia que nos atirou para o 3º lugar e dessa forma nos pôs na metade mais fácil do quadro. Não só um excelente lateral-direito como um óptimo analista de dados.

Voo. O golo de Cristiano Ronaldo nas meias-finais entrou directamente para a história da aviação civil.

Wilmots (Marc). Após a eliminação com o País de Gales, o guarda-redes Thibaut Courtois foi tirar satisfações tácticas ao treinador, que demonstrou não ter mãozinhas para este Ferrari. Uma geração de ouro e um treinador de lata. Sim, povo belga, nós sabemos o que isso é.

Xhaka (irmãos). Taulant joga pela Albânia e Granit pela Suíça. Foi a primeira vez que dois irmãos se enfrentaram num Europeu. Ganhou o mais rico, como é costume.

Yarmolenko (Andriy). Afinal os ucranianos estiveram lá, como prova Yarmolenko.

Zaza (Simone). Há quarenta anos, o checo Panenka tirou um penalty da cartola que ficou para a história com o seu nome. Este ano foi criado o penalty à Zaza, que funciona assim: jogador no banco durante 120 minutos entra para marcar um dos penáltis. Parte em modo dressage, com pequenos trotes, e com um poderoso remate manda a bola para perto da sonda Juno. A namorada de Zaza defendeu-o nas redes sociais: “ele nunca falha”.

Zlatan. Despediu-se de forma totalmente anti-zlataniana, mas nem por isso deixa de ser o maior. Zlatan é o maior independentemente dos factos e das circunstâncias. Zlatan é Zlatan. É aquele que é. Zlatan forever.

Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015

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