O Pavilhão Carlos Lopes, em Lisboa, já estava todo pronto. Limpavam-se uns recantos, ajeitavam-se uns pormenores, mas nada parecia vir a atrasar a gala de entrega das estrelas Michelin, que vai decorrer esta quarta-feira pela primeira vez em Portugal. No auditório improvisado onde muitos cozinheiros vão celebrar as suas conquistas reinava a meia luz e o vermelho. Perto do palco, Gwendal Poullennec folheava um caderno de apontamentos — estaria a rever o discurso de logo? — quando foi apresentado ao Observador. “Bonjour!”, disse imediatamente, de mão estendida. Alto, muito magro e de voz tranquila, sugeriu que se procurasse um sítio mais recatado para conversar. “Bem, estar a responder a perguntas aqui no escuro, só com luzes vermelhas… Parece que vou ser interrogado!”, brincou. Já com todos sentados — ele com a sua assistente ao lado — num canto da sala, começava a conversa.
Por muito que os famosos inspetores Michelin sejam as figuras mais conhecidas do guia — a seguir ao boneco insuflado, o bibendum, claro –, eles trabalham em conjunto com outros homens e mulheres, pessoas que não devem comer tantas vezes como os avaliadores secretos mas que são igualmente relevantes neste processo porque são quem coordenam tudo: que países visitar, quem contratar, que reestruturações fazer… Poullennec, o entrevistado, é o homem que lidera tudo isto.
Com quase 15 anos de trabalho no extenso organograma da Michelin, o francês foi nomeado no passado mês de Setembro como novo diretor global do Guia Michelin e tem hoje a responsabilidade de orientar 32 guias um pouco por todo o mundo — algo que lhe será relativamente fácil, dado que a sua função anterior estava ligada à internacionalização do “guia vermelho” e foi graças a ele que, por exemplo, Nova Iorque, Tóquio, São Francisco, Hong Kong, Quioto, Banguecoque e Taipé passaram a ter as suas próprias versões deste que ainda é uma das principais referências de qualidade no mundo da gastronomia. Saiba o que teve a dizer sobre as queixas de que Portugal é menosprezado pelos inspetores do guia, sobre se a Michelin ainda é relevante no mundo de hoje e como é que um comum mortal pode chegar a trabalhar para aqueles que dão estrelas por esse mundo fora.
Esta é a sua primeira vez em Portugal?
É a primeira vez enquanto novo diretor internacional do Guia Michelin, mas, como tenho estado envolvido na estrutura Michelin há muito tempo — como imagino que saiba, faço parte da estrutura do guia há quase 15 anos — tenho lidado frequentemente com equipas de vários países. Neste aspeto, o trabalho da equipa de Portugal e Espanha tem feito parte desse esforço — daí estar familiarizado com o que se passa cá. O facto de nos termos expandido até ao Brasil, há uns três anos, mais ainda nos ligou à realidade portuguesa. Parte do ADN do guia passa por trabalharmos sempre a um nível internacional e envolvermos as equipas locais em tudo o que fazemos.
Como é que se começa a trabalhar para o guia Michelin?
Pretende saber como funciona para cargos como o meu ou para inspetores?
Os dois…
No meu caso específico tenho de assumir que isto sempre foi um projeto pessoal, trabalhar com e para o Guia Michelin — foi por isso que, há muitos anos, concorri para trabalhar com eles. No caso dos inspetores, a realidade é um pouco diferente. Pode ser por candidatura, já aconteceu, mas está mais ligado ao networking que se vai fazendo e que nos leva a identificar pessoas que nos podem ser muito úteis. Em casos como esse contactamos as pessoas diretamente.
Que relação de trabalho existe entre si e as equipas de inspetores?
Atualmente tenho orientado as equipas de inspetores, mas toda esta relação é muito bem organizada e estratificada. Temos inspetores locais, júnior e sénior, chefes de equipa para todas as áreas de intervenção específicas e depois temos ainda outra equipa de “inspetores viajantes” que está responsável por equilibrar todas as grandes decisões tomadas pelo mundo fora, para que se consiga garantir que fazemos o melhor para analisar todos os tipos de gastronomia, usando sempre a mesma metodologia. A consistência das nossas avaliações é um ponto fulcral para nós, e é o motivo pelo qual temos uma organização totalmente empenhada. O meu trabalho é orientar esses esforços e trabalho com todos os elementos desta cadeia.
Ocupa este cargo há relativamente pouco tempo [começou a 17 de setembro de 2018]. Quais eram os principais desafios que pensava vir encontrar nesta nova etapa?
Boa pergunta… Eu tenho a sorte de ser um insider, alguém que esteve envolvido na maior parte dos projetos desenvolvidos pelo Guia nos últimos anos, isso facilitou. O facto de conhecer praticamente todas as equipas também é uma mais valia — conheço mesmo praticamente toda a gente que trabalha na organização (que continua a crescer, passo a passo). Não diria que me tivesse surpreendido, mas foi ótimo ver a paixão diária que a nossa equipa aplica todos os dias naquilo que faz. Todos eles a partilham, até os que já têm carreiras muito longas. Foi muito revigorante sentir isto. Globalmente, acho que o nosso principal desafio continua a ser a expansão internacional, que pretendemos que seja mais acelerada. O guia tem o dever de procurar novos talentos, independentemente do sítio onde esteja, do tipo de gastronomia que utilizem e da personalidade dos chefs. Acho que o guia terá de explorar muitos mais territórios, num futuro próximo, e estamos a fazer aumentar a nossa equipa de forma a conseguir fazer isso. Estamos a procurar juntar pessoas com novas competências e, cada vez mais, com um mindset internacional — sempre respeitando culturas locais, obviamente. Nunca nos podemos esquecer que estamos a reunir perfis diferentes para que possamos servir de referência em Portugal, Espanha, etc.
Diria que existe um equilíbrio muito difícil de alcançar no momento de avaliar culturas e tradições gastronómicas diferentes? Por exemplo, a importância de um bom hambúrguer nos EUA é diferente da que terá em Portugal. Acha que é difícil equilibrar padrões de avaliação iguais para coisas tão diferentes?
Isso é o nosso trabalho diário. Quando entramos num novo país temos de aprender muito sobre a sua cultura, e é por isso mesmo que temos tido cada vez mais interesse em contratar pessoas novas, de diferentes backgrounds, para que a equipa de inspetores seja o mais heterogénea possível. Trabalhamos há quatro anos no Japão, por exemplo, e a primeira coisa que fizemos, quando decidimos ir para lá, foi definir o perfil japonês, encontrar uma espécie de tradutores culturais que trabalhem com os inspetores internacionais. É por tudo isto que digo que o nosso trabalho diário passa por equilibrar estas variantes, tendo sempre um conjunto de aptidões que nos permita julgar de forma justa os principais tipos de cozinha de cada país, de forma global. Também procuramos garantir isso misturando uma série de pessoas no processo de avaliação de restaurantes, não só para garantir a aplicação de conhecimentos diferentes mas também, por exemplo, para ter a certeza de que as nossas equipas permanecem anónimas. Temos grandes profissionais a trabalhar connosco, anónimos, que pagam sempre as suas contas, que procuram manter-se fiéis aos nossos princípios orientadores e avaliar da mesma forma, seguindo a nossa metodologia. Diferenças à parte, queremos sempre que um três estrelas em Espanha proporcione o mesmo tipo de experiência que um nos EUA ou em Tóquio.
Com a crescente relevância das redes sociais e com um aumento do número de publicações especializadas em gastronomia, por exemplo, o guia continua a ter a mesma importância?
Na minha opinião, tudo isso são boas notícias! É bom saber que a gastronomia nunca teve tanto impacto como tem agora — e que continua a crescer de dia para dia. Estamos muito convencidos de que o Guia Michelin nunca teve tanta relevância como hoje, precisamente por existirem tantas (e cada vez mais) opiniões, críticas, rankings… É por tudo isto que mais e mais pessoas têm olhado para nós como uma forma de bitola, um garante de que nos sítios que aconselhamos podem reservar uma mesa à vontade, cientes da qualidade daquilo que vão encontrar. Temos um papel muito importante a desempenhar em tudo isto e, francamente, também sentimos — mais que isso, sabemos — que o nosso impacto tem aumentado. Isto porque seja qual for a cultura gastronómica, ela está referida no guia.
Sente que todos estes mesmos fatores obrigaram, pelo menos, a repensar a forma de comunicarem as vossas avaliações?
No que toca à metodologia e ao processo de avaliação temos sido consistentes há mais de um século e os media ou a Internet não têm interferido nisso de nenhuma maneira. Contudo, não deixa de ser algo importante no que toca ao dinamismo com o cliente — conseguimos chegar a mais público e isso é essencial para continuarmos a nossa expansão internacional.
A versão impressa do guia ainda é relevante?
Acho que depende de cultura para cultura, sinceramente, mas, de forma global, o guia em papel ainda é muito icónico. Continua a haver pessoas à espera que eles sejam publicados e, por enquanto, não consideramos a hipótese de não o publicar. Vamos ver o que acontece. O nosso objetivo é sermos relevantes, tanto no que diz respeito a decisões (de dar estrelas ou não) como na forma mais apropriada de as divulgar. Hoje ainda existem muitas pessoas dispostas a pagar para ter um guia em papel. Como lhe disse, eu ajudei a lançar o guia japonês e passei lá quatro anos, é um país extremamente digital. Mesmo assim, quando lançámos o primeiro guia de Tóquio esgotámos meio milhão de livros! Isto numa nação muito digital! É parte do paradoxo.
Nos últimos anos têm surgido algumas vozes que criticam a forma de o guia atuar em Portugal, defendendo que ele é muito mais centrado em Espanha e que há uma certa negligência perante o que acontece por cá. Como é que vê tudo isto?
Se olharmos para o guia, hoje, vemos que temos duas seleções reunidas num único sítio. Contudo, no que toca a processos de escolha, culturas e tipos de comida temos dois cenários distintos. A Michelin percorre ambos da mesma forma, usando a mesma metodologia e, sinceramente, digo-lhe que conseguimos avaliar bem tanto a comida portuguesa como a espanhola, da mesma forma que o fazemos com a japonesa, por exemplo. Para nós, Portugal é um destino muito, muito interessante. No espaço de uns cinco anos, o vosso panorama gastronómico começou a crescer de forma muito rápida, começou a ser muito mais vibrante — o mesmo se vê em outros aspetos mais turísticos. Portugal já faz parte de um conjunto de sítios onde todos sabem que se come muito bem, tanto no panorama da cozinha típica como na de autor. Portugal faz parte da nova vaga e é precisamente por isso que decidimos fazer a cerimónia cá, este ano. Sentimos que temos algo a dizer sobre a cozinha portuguesa.
O grande fluxo turístico que tem chegado a Portugal fez com que prestassem mais atenção ao que se está a passar no país, não?
Sem dúvida. A comida funciona como impulsionador de um destino, pode realmente ser uma atração. Quando uma pessoa vem a Portugal vai comer bem de certeza e vai guardar essas memórias. Isso ajuda a convencê-los a voltarem, a conhecer mais. Sem dúvida que para nós, no caso de Portugal, a comida é um fator determinante para definir a imagem que o mundo tem de vocês.