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É um discurso que tem sido repetido nos últimos dias: “Estamos a aumentar significativamente a capacidade de testes”. Foi dito esta segunda-feira pelo secretário de Estado da Saúde, António Sales, repetindo o que já fora dito em dias anteriores. Mas os números não mostram isso: não há um aumento evidente do número de pessoas testadas. Além disso, são confusos os números relativos à capacidade de testagem: no mesmo dia, pouco depois de o secretário de Estado falar em 4 mil testes diários e 20 mil em stock, o primeiro-ministro falava numa capacidade instalada de 30 mil.
A confusão soma-se a uma denúncia. Apesar de a resposta oficial das autoridades portuguesas transmitir normalidade, há quem garanta que o discurso político não é um “discurso da verdade”. Trata-se de uma fonte da Direção Geral da Saúde (DGS), com conhecimento direto da forma como o Governo está a fazer a gestão do surto, que preferiu falar sob a condição de anonimato. Ao Observador, garantiu que o problema, na verdade, não tem a ver apenas com a escolha criteriosa de quem deve ou não deve ser testado, por orientação da OMS, mas com a necessidade de poupar os kits, porque “Portugal tem poucos testes”. “O discurso político devia ser: temos poucos testes, não podemos testar toda a gente“, diz. Sobre os números avançados em conferências de imprensa e entrevistas, a perplexidade é a mesma: “Fala-se em nove mil e depois faz-se mil”.
[As explicações do secretário de Estado da Saúde e do subdiretor-geral da Saúde sobre os testes, esta terça-feira:]
A garantia soma-se aos alertas que, nos últimos dias, têm sido feitos sobre a falta de transparência na forma como as autoridades portuguesas estão a tratar os casos suspeitos no que diz respeito aos testes. Também ao Observador, Ricardo Mexia, da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, admite que podem ser muitos mais os casos de infeção em Portugal e que estão longe dos radares, precisamente, porque não estão a ser feitos os testes que seriam necessários para os identificar.
E isto numa altura em que uma frase já ficou no ouvido e é repetida por governantes, um pouco por todo o mundo, incluindo Portugal: “Testem, testem, testem”. O conselho foi dado pelo diretor-geral da OMS há cerca de uma semana como forma de alertar os países para o facto de que combater o surto mundial do novo coronavírus passava por realizar mais testes.
"We have a simple message for all countries:
test
test
test.Test every suspected #COVID19 case.
If they test positive, isolate them & find out who they have been in close contact with up to 2 days before they developed symptoms & test those people too"-@DrTedros #coronavirus
— World Health Organization (WHO) (@WHO) March 16, 2020
É certo que a OMS mantém a recomendação de testar os casos suspeitos — pessoas com contactos com infetados e com sintomas —, mas a estratégia parece esbarrar na de outros países que estão a fazer muitos mais testes que Portugal, em termos proporcionais, tornando-se autênticos casos de sucesso — não só na contenção do surto, mas também naquilo que permitiram aprender sobre ele.
Por cá — pelo menos nas mais recentes conferências de imprensas diárias —, vai sendo dada a garantia aos portugueses de que está a ser aumentada a capacidade de realizar testes à Covid-19. Além disso, vão sendo instalados um pouco por todo o país centros móveis de rastreio para testar pessoas suspeitas de estarem infetadas com o novo coronavírus. E mesmo quando é dito, como no final da semana passada, que Portugal tinha a capacidade de fazer 9 mil testes diários, também é explicado que essa capacidade só vai ser usada “se for preciso”.
Quantos testes estão a ser feitos? Não se sabe. Pelo menos, 13.674
Não há um número oficial: pelo menos, a DGS não o revela. Mas há um valor que podemos concluir a partir dos relatórios da situação epidemiológica em Portugal, divulgados diariamente. Isto porque podemos deduzir que a soma de casos confirmados, não confirmados e que estão a aguardar resultados laboratoriais correspondem ao total de pessoas que fizeram testes. É esta também a interpretação que faz Ricardo Mexia, presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, que lamenta a falta de “dados concretos” e de “transparência”.
Assim, partindo do relatório desta segunda-feira, podemos concluir que já foram testadas, pelo menos, 13.674 mil pessoas. Também partindo deste número — e da evolução que vai tendo de dia para dia —, podemos calcular o número de pessoas testadas diariamente. Assim, verifica-se que não há um claro aumento do número de pessoas testadas. Aliás, desde o dia 21 de março, quando foram testadas pelo menos 2.122 pessoas, tem-se verificado até uma diminuição: no dia 22, esse número baixou para 1.925 e esta segunda-feira está em 1.895.
A constatação é relevante, sobretudo, quando se tenta avaliar como está a evoluir a curva de aumento de casos confirmados no país. Se se fazem menos testes, o mais provável é que se detetem menos infeções.
Questionada pelo Observador, a DGS também só refere esse mesmo número, relativo aos casos suspeitos. Diz que todos eles — os 13.674 — foram testados, mas não avança quantos testes foram feitos a cada pessoa. Confirma, apenas que há mais: “Alguns casos suspeitos fizeram teste de comparabilidade no Instituto Ricardo Jorge. Há casos duvidosos que tiveram de ser repetidos e os casos recuperados fazem três testes”, lê-se na resposta.
Apesar de não haver um número oficial, a DGS estará a centralizar o registo de testes realizados, não só no público, mas também nos laboratórios privados e ainda os que estão a ser feitos em centros móveis de rastreio. É isso que indica a resposta da DGS às perguntas do Observador, sem fornecer, no entanto, um total.
Fernando Maltez, diretor do Serviço de Doenças Infecciosas do Hospital de Curry Cabral, em Lisboa, e um dos consultores da DGS, também não sabe dizer ao certo o número de testes realizados em Portugal. Adianta que, no local onde trabalha, são feitas entre 150 a 200 análises por dia. E dá uma visão geral, em conversa com o Observador: “É testada qualquer pessoa que tenha sintomas e uma história epidemiológica que, no conjunto, faz dela um caso suspeito”. Ou seja, além destas, não estão a ser testadas mais pessoas — assintomáticos, por exemplo.
Jaime Nina, médico infecciologista no Hospital Egas Moniz e professor no Instituto de Higiene e Medicina Tropical, alerta ainda para outra questão. O especialista diz que os testes que estão a ser feitos atualmente “praticamente não têm falsos positivos, mas têm muitos falsos negativos“. Isto porque, explica ao Observador, o teste só acusa positivo “quando a pessoa começa a ter sintomas”, e, “quando a pessoa deixa de ter sintomas, deixa de ser positivo”. “É um teste péssimo para saber qual a percentagem da população que está infetada”, afirma.
É também por isso que Ricardo Mexia acredita que “o número de infetados potencialmente pode ser bastante mais alto, fruto de não estarmos a testar uma população mais abrangente”.
Há testes suficientes? “Portugal tem poucos testes e é evidente que devia estar a fazer mais”, diz fonte da DGS
Fernando Maltez afasta a ideia de que haja “carência de recursos técnicos ou humanos” e garante que estão a ser “seguidas as recomendações da OMS: testar, testar, testar, ou seja, testar o máximo número de doentes, com o diagnóstico precoce, para interrompermos as cadeias de transmissão”. E resume: “Neste momento, os testes são feitos a quem precisa deles” — um discurso semelhante ao da ministra de Estado e da Presidência, entrevistada este domingo na SIC. Mariana Vieira da Silva garantia que “o Governo tem tentado acompanhar a evolução [das recomendações da OMS]”.
A recomendação da OMS é testar casos suspeitos e pessoas que estiveram em contacto com eles, se apresentarem sintomas. Isso significará que as 12.562 pessoas que, esta segunda-feira, estavam sob vigilância ativa das autoridades de saúde — ou seja, pessoas que tiveram contactos próximos dos doentes infetados — podem não chegar a ser testadas, a menos que apresentem sintomas.
Admitindo que há testes suficientes para os casos suspeitos existentes no país, segundo esses critérios específicos, a fonte da DGS que falou com o Observador sem querer ser identificada alertou para a “discrepância entre o discurso político e a realidade de quem está no terreno”. “Fala-se em 9 mil, mas depois fazem-se mil”, denunciou, explicando porquê: “Portugal tem poucos testes e é evidente que devia estar a fazer mais. Como tem poucos testes, tem de rentabilizar a realização dos exames às pessoas que mais beneficiam deles. Que são, à partida, as pessoas que têm critérios positivos e as pessoas que tem critérios de gravidade para internar”.
Além da falta de testes, a mesma fonte diz que “a capacidade de execução é lenta”. O que traz outro problema: “Podemos ter uma pessoa no SO [sala de observação do serviço de urgências], que é preciso de internar, mas que não se pode misturar com as outras camas; e essa pessoa está ali 24 horas à espera do teste. É uma dificuldade enorme”, explica, por causa do risco de contagiar outros doentes até ser determinado o isolamento. “O discurso político devia ser: temos poucos testes, não podemos testar toda a gente. Isso era o discurso da verdade“, diz ainda.
A par da falta de testes e da lentidão em executá-los, que Jaime Nina também reconhece, o médico infecciologista fala ainda em “alguma demora na chegada das encomendas” dos materiais necessários para as análises.
Afinal, qual é a capacidade diária? 4 mil, 9 mil ou 30 mil?
Além das dúvidas no que diz respeito a quem é que está, afinal, a ser testado — ou que devia estar a ser —, há também alguma confusão em relação ao número de testes diários. Na passada sexta-feira, a diretora geral da Saúde anunciava que a capacidade diária em Portugal era de 9 mil testes. “Não quer dizer que os estejamos a fazer. Mas, se houvesse necessidade hoje, faríamos 9 mil”, garantia Graças Freitas.
Mas, na conferência de imprensa desta segunda-feira, o secretário de Estado da Saúde anunciava que a capacidade diária de fazer testes em Portugal “está a aumentar significativamente”, ao mesmo tempo que dizia que estava agora nos 4 mil diários — uma diminuição e não um aumento. “Neste momento, o SNS tem capacidade para 2.500 testes diários. No privado, são mais 1.500 testes diários. No entanto, existe uma capacidade em stock, entre público e privado de cerca de 20 mil testes”, explicou.
Neste mesmo dia, horas depois, numa entrevista à TVI, questionado sobre quantos testes era possível fazer por dia, o primeiro-ministro falava em 30 mil: “O SNS tem capacidade para fazer 10 mil testes e o privado 20 mil“, disse, referindo-se ao total em stock, um número diferente do apresentado por António Sales.
Em que é que ficamos? Questionada, a DGS esclareceu que “a capacidade instalada resulta dos equipamentos disponíveis e stocks de reagentes e consumíveis”. “Os stocks são variáveis”, lê-se ainda numa resposta enviada ao Observador por escrito, minutos antes da entrevista de António Costa à TVI.
Estes números incluirão também a capacidade diária dos centros móveis de rastreio que estão a ser instalados. Por exemplo, no Porto, numa primeira fase, o centro tem capacidade para realizar 400 testes diários, e, na fase seguinte, 700. Em Lisboa, abriram esta segunda-feira dois centros de rastreio: a Escola Básica Quinta dos Frades que terá capacidade para realizar entre 300 a 400 testes e o Centro de Rastreio Móvel, instalado no parque de estacionamento junto à Rua Vitorino Magalhães Godinho, que terá capacidade para 150 análises diárias – podendo este número aumentar de acordo com as necessidades.
O que está a faltar? Kits, dinheiro ou recursos humanos?
Em resposta ao Observador, a DGS garante também que estão a “procurar expandir a capacidade de testagem”. Na conferência de imprensa desta segunda-feira, o secretário de Estado da Saúde, António Sales, disse que 50 mil zaragatoas iram ser distribuídas “tendo em conta as necessidades” —, mas admitia que só as zaragatoas não chegavam: são precisos kits e os reagentes — depois de os laboratórios privados terem denunciado a falta de reagentes para analisar as amostras.
Graça Freitas aproveitou para explicar que a compra de material para fazer testes — como outros materiais — “é exatamente como a logística alimentar em nossa casa”. “Nós vamos ao mercado, vamos às compras, todos os dias, todas as semanas”, disse, acrescentando: “O que temos nessa semana, dá para essa semana. Temos um stock de segurança para se houver uma emergência e depois repomos esse stock — é assim que fazemos com as vacinas, com os medicamentos, com a insulina, com o oxigénio. Não temos armazéns enormes. As compras são dinâmicas”.
Em entrevista à TVI, na noite desta segunda-feira, António Costa anunciou que estão encomendados 280 mil testes rápidos que vão chegar “nos próximos dias”. “Esta semana chegarão 80 mil, até dia 29″, garantiu.
Portugal perde no ranking onde a Islândia e Coreia do Sul são exemplos (mas com espinhos)
Portugal tem, segundo os dados mais atualizados da Pordata, uma população de 10,3 milhões de pessoas – o que significa que, tendo havido até este sábado (data em que a Reuters fez a comparação de outros países) um total de 9.854 de casos suspeitos, calcula-se um rácio que nos diz que, por cada milhão de habitantes houve cerca de 985 testes feitos, o que colocava o país no pelotão de nações que menos testes de Covid-19 já fizeram à sua população.
A liderar a lista dos países que mais testes fizeram em relação ao total da sua população está a Islândia. De acordo com os números mais recentes a serem divulgados pelo Ministério da Saúde daquele país, foram 26.762 testes por cada milhão de pessoas — um feito que não se deve apenas ao facto de viverem naquele país apenas 340 mil pessoas, como veremos mais à frente.
De acordo com a Reuters, que, à data de 20 de março, compilou dados de vários países — salientando que o cálculo não leva em consideração os diferentes momentos em que se deu a aceleração do surto nos vários países — há outros países na dianteira: a Noruega (6.429 testes por milhão de habitante), Coreia do Sul (6.182) e a Austrália (4.294).
O caso da Itália, que surge em 4º lugar neste ranking, começou por fazer testes massivos à população quando o problema começou a agravar-se, mas depois passou a concentrar-se apenas nas pessoas que apresentavam sintomas – o que faz com que seja mais difícil detetar os casos de pessoas que não têm sintomas (ou ainda não têm sintomas) mas são portadores e transmissores deste vírus altamente contagioso. Neste momento, o mesmo rácio aplicado a Itália dá 3.019 testes por milhão de habitantes.
Depois, com cerca de 1.500 testes por milhão de cidadãos surgem países como a Dinamarca, Áustria, Canadá e, com cerca de 1.300, Irlanda e Israel. Abaixo desse patamar estava, a 20 de março, países como a Rússia, Reino Unido, República Checa e Taiwan, além de Portugal.
Ainda assim, Portugal não fica tão mal na figura quando comparado com países como os EUA (136 testes por milhão de habitantes), França (231) e Japão (117). Em países como a Indonésia, Paquistão e Índia o rácio não chega a 10 testes por milhão de pessoas.
De todos estes casos, olhamos a fundo para dois exemplos de relativo sucesso, contemplando não só as suas vantagens, mas também os erros identificados durante os seus processos: primeiro a Islândia, depois da Coreia do Sul.
Islândia
Não há outro país que tenha feito tantos testes por milhão de habitantes que a Islândia: à data de 21 de março (a que remontam os dados mais recentes), aquele país tinha feito 26.762 por cada milhão de habitantes. Tudo isto permitiu identificar até agora 588 casos, dos quais há apenas um morte a registar.
A particularidade aqui é que a Islândia não tem sequer população que chegue para esse “milhão de habitantes” utilizado para fins estatísticos. Ao todo, vivem naquele país 340 mil habitantes — algures entre a população dos concelhos de Vila Nova de Gaia (300 mil habitantes) e de Sintra (387 mil). Este é um cenário que, por isso mesmo, se aplica à escala de muito poucos países. Ainda assim, a maneira como a Islândia conseguiu chegar ao topo do pódio de testes ao novo coronavírus em todo o mundo contém receitas que, adaptadas a outras escalas, podem trazer vantagens.
Ali, naquela remota ilha vulcânica entre a Noruega e a Gronelândia, o grosso da iniciativa partiu do setor privado: mais propriamente, da deCODE Genetics. O CEO daquela biofarmacêutica fundada em 1996, Kári Stefánsson, disponibilizou os meios da sua empresa para fazer tantos testes quanto possível — idealmente, à população inteira da Islândia.
“É essencial saber como é que o vírus se espalha pela sociedade islandesa”, disse, de acordo com o Iceland Monitor. “Queremos ajudar o Landspítali [o hospital da universidade nacional], que tem uma capacidade limitada. Nós temos o equipamento, um laboratório preparado para lidar com vírus e especialistas no tema. Também queremos, além daquilo que o Landspítali está a fazer, fazer uma análise sequencial do vírus em todas as pessoas que forem positivas. O objetivo é perceber como funciona a mutação do vírus.”
A proposta de Kári Stefánsson surgiu a 6 de março, mas não arrancou de imediato. Dois organismos (a Autoridade para a Proteção de Dados e o Comité de Avaliação Ética) chegaram a levantar questões sobre esta iniciativa. Em causa estava a necessidade de uma autorização extraordinária para aquela entidade privada levar a cabo por um estudo científico através de uma parceria com o Ministério da Saúde da Islândia. Porém, de acordo com o jornal Fréttablaðið, recuaram nessa avaliação a 8 de março — aceitando a explicação de Kári Stefánsson de que o trabalho em questão seria equivalente à prestação de cuidados clínicos e não um estudo científico.
Poucos dias depois, a 13 de março, começaram os testes. Daquela data até 21 de março, o Ministério da Saúde dava conta de um total de 4.197 testes feitos pelo setor público e 5.571 pela deCODE Genetics. Os testes podem ser feitos por qualquer pessoa, sem custos para o utente. No caso da deCODE Genetics, há um sistema de drive-through, em que a pessoa pode fazer o teste sem sair do carro.
O facto de a Islândia ser um país pequeno e com pouca população permitiu identificar com precisão algumas das cadeias de transmissão do novo coronavírus, entre pessoas que viajaram em Itália, esquiadores que voltaram da Áustria ou uma pessoa que esteve em contacto com alguém que esteve no Irão.
Outra conclusão interessante dos dados inicialmente recolhidos é de que a percentagem de assintomáticos entre as pessoas infetadas ronda os 50% — acima das estimativas incluídas num estudo do Governo chinês, ao qual o South China Morning Post teve acesso, onde era referido um um terço dos infetados não apresentava sintomas.
“Os resultados iniciais da deCODE Genetics indicam que uma pequena proporção da população geral contraiu o vírus e que cerca de metade dos que deram positivo são assintomáticos”, disse ao Buzzfeed News Thorolfur Guðnason, epidemiologista-chefe da Islândia. “A outra metade demonstra sintomas de febre muito moderados.”
Apesar do relativo sucesso, há alguns espinhos no sistema encontrado na Islândia.
Um deles é a dificuldade de abastecimento daquele país, altamente dependente de importações. De acordo com o Icelandic Review, o número de zaragatoas (o instrumento inserido na garganta que servirá para recolher a matéria a testar para o novo coronavírus) está a baixar rapidamente e a compra de mais instrumentos daqueles é agora mais difícil. Esta semana, chegou a estar prevista a chegada de 5 mil novas zaragatoas, encomenda essa que depois foi reduzida para 2 mil — até que, no final, foi cancelada pelo fornecedor. De acordo com Þórólfur Guðnason, restam apenas 2 mil zaragatoas em todo o país.
Por essa razão, o número de testes tem vindo a diminuir (no domingo, pela primeira vez desde que começou este serviço, a deCODE não fez nenhum teste; e o serviço público fez apenas 183 no mesmo dia). Perante a escassez de zaragatoas, a prioridade agora será a de testar sintomáticos, deixando os assintomáticos (até aqui encorajados a apresentarem-se para os testes) em segundo plano.
Além disso, também já têm surgido tensões entre a deCODE Genetics e os reguladores, em particular a Autoridade para a Proteção de Dados. O CEO da deCODE Genetics, Kári Stefánsson, insurgiu-se este domingo contra aquele regulador, por não ter recebido luz verde para a divulgação de um estudo completo sobre as cadeias de transmissão até agora determinadas através dos dados partilhados por todos os que foram testados. “A Autoridade para a Proteção de Dados não trabalha aos fins-de-semana, mesmo que Roma e tantas outras cidades do mundo estejam a arder”, escreveu Stefánsson no Facebook. Em entrevista ao Morgunblaðið, a diretora daquele organismo, Helga Þórisdóttir, negou que tanto ela como a sua equipa tivessem folgado nos últimos dias, prometendo a luz verde para divulgação desse estudo para esta segunda-feira.
Coreia do Sul
No dia 27 de janeiro, dirigentes das autoridades públicas de saúde da Coreia do Sul reuniram-se com mais de 20 representantes de empresas do setor privado da saúde na Coreia do Sul. Em causa estava o então surto do novo coronavírus entretanto identificado na China e que, temia-se naquela sala de conferências de uma estação ferroviária, poderia entrar de rompante na Coreia do Sul e ter efeitos devastadores para o país, o seu sistema de saúde e a sua economia.
“Estávamos muito nervosos. Sabíamos que o que se passava podia resultar numa pandemia”, disse à Reuters Lee Sang-won, especialista de doenças infecciosas do Centro Coreano para o Controlo e Prevenção de Doenças, que esteve presente naquela reunião.
Naquela altura havia apenas quatro casos confirmados de Covid-19 na Coreia do Sul, mas, além disso, havia uma má memória de 2015. Nesse ano, outro coronavírus, que resulta no Síndrome Respiratório do Médio Oriente (SMER), infetou 185 pessoas e matou 36. À altura, ficou latente a falta de capacidade do setor público para testar este tipo de doenças de forma autónoma — e, por isso mesmo, foram reunidos ali naquela sala de conferências autoridades públicas e empresas privadas.
Estima-se que, na Coreia do Sul, 90% do sistema de saúde seja privado — e que, de igual forma, a capacidade laboratorial esteja na mesma proporção na mãos dos privados. “Por isso, precisávamos do apoio do setor privado”, reconheceu à NPR o autor daquelas estimativas, Lee Hyukmin, que lidera a equipa destinada para o combate ao novo coronavírus da Sociedade Coreana de Medicina Laboratorial.
Por isso, daquela reunião no final de janeiro, resultou o compromisso entre público e privado de que, ao contrário do que tinha acontecido durante a crise do SMER em 2015, também os privados teriam capacidade para testar — bastando para isso que submetessem as suas propostas a concurso público, cujo processo burocrático seria facilitado perante esta emergência. Também para acelerar o processo, o governo divulgou aos privados a informação de que dispunha sobre os métodos de testes, de forma a evitar que algumas das empresas fossem obrigadas a regressar à casa de partida.
Dias depois daquela reunião a 27 de janeiro, no dia 4 de fevereiro, já a primeira empresa tinha tido os seus testes aprovados. A esta, seguiram-se pelo menos quatro outras empresas.
Os testes são feitos em centros exclusivamente dedicados para esse fim, dos quais 43 funcionam em sistema de drive-through, permitindo fazer o teste sem sair do carro. Desta forma, a Coreia do Sul conseguiu atingir uma capacidade para fazer 15 mil testes ao dia, tendo ultrapassado já a barreira dos 320 mil testes.
Tudo isto permitiu à Coreia do Sul identificar um número elevado de infetados (8.961 a 23 de março, o 8º mais alto do mundo) com um total de 111 mortes (ficando em 11º desse ranking). O que estes números não revelam é que, durante várias semanas, a Coreia do Sul foi o segundo país com mais casos em todo mundo (sempre atrás da China, até ser sido ultrapassado primeiro por Itália e depois por outros), ao mesmo tempo que conseguiu manter o número de mortos relativamente baixo.
Tudo isto acontece sem que, ao contrário do que acontece em vários países, desde a China ao mundo ocidental, a Coreia do Sul tenha decretado quarentena à população em geral. A estratégia sul-coreana começa precisamente por testar um grande número de pessoas e colocar sob quarentena de 15 dias apenas aqueles que acusem positivo. Só recentemente, perante um novo aumento de casos, sobretudo em Seoul, é que foram aplicadas medidas de distanciamento social mais fortes — em linha com as que se aplicam atualmente em países como Itália, França, Espanha e também Portugal.
Porém, também neste sistema há espinhos.
Um deles é a vigilância a que são submetidas as pessoas que se encontram sob quarentena. A propósito da crise do novo coronavírus, a Coreia do Sul aprovou legislação que permite ao governo recolher os dados do telemóvel ou do cartão de multibanco, entre outros, de cada um dos infetados, tudo com o fim de perceber qual foi o seu percurso e de que forma pode ter espalhado o vírus. Essa análise é depois divulgada publicamente, sem identificação dos infetados. “Em tempos normais, muitas democracias poderiam ver estas medidas como muito intrusivas”, reconhece a The Economist em editorial publicado na última edição. Mas acrescenta logo a seguir: “Os tempos não são normais”.
Outro espinho é que, apesar dos esforços das autoridades sul-coreanas, o número de casos diagnosticados está a subir e estão a aparecer novos focos — com a capital, Seul, a tornar-se no principal centro dos novos casos. Tanto que depois de permitir que estabelecimentos como restaurantes, discotecas ou salas de karaoke continuassem abertas, o governo tomou a decisão de fechar a porta também àqueles estabelecimentos. Uma decisão que prova que, apesar de demonstrar bons indicadores, a Coreia do Sul ainda está longe de ter dominado esta pandemia no seu território.
*Com Edgar Caetano
[Artigo atualizado às 9h11 desta terça-feira]