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Primeiro entrou Luís Silva, porque levava consigo um bastão. Depois, Duarte Laja. Bruno Sousa a seguir. Quando abriram a porta, que estava encostada, o passageiro ucraniano que estava na sala entrou em “sobressalto”. O espaço estava vazio e não tinha mobiliário: apenas um colchão. Lá dentro estava Ihor Homeniuk “agitado” e “sentado no chão”, com “algum tipo de descontrolo”, nas palavras de Duarte Laja. Estava “completamente amarrado com fita adesiva”, que tentava rebentar contra a parede, nas mãos e nas pernas, dos tornozelos às canelas. Estava “bastante” marcado nos braços, mas também tinha marcas no rosto. Duarte Laja reparou logo no “estado de arroxeado em que estavam as mãos” do cidadão ucraniano. Já o que chamou a atenção de Bruno Sousa “foi que o movimento do olhar tremia bastante”. “Não fixava o olhar”, disse.
O cenário que os três inspetores do SEF encontraram na Sala dos Médicos do Mundo, no aeroporto de Lisboa — ou pelo menos, aquele que dizem ter encontrado — “não correspondia” à informação que lhes “tinha sido transmitida” antes, argumentou Bruno Sousa. “Foi-nos omitido que o senhor já estava todo imobilizado com fita. Não sabíamos como é que essa situação tinha surgido. Não vimos quem colocou aquelas fitas”, acrescentou. Não estava à espera de “encontrar” o passageiro ucraniano “nessa situação”. Duarte Laja não tem memória de um procedimento assim: diz que “nunca tinha reparado” em nenhum outro cidadão a quem tivessem sido colocadas fitas adesivas como forma de o imobilizar, no aeroporto onde trabalhava.
O que se passou dentro desta sala do Centro de Instalação Temporária (CIT) do SEF, no aeroporto de Lisboa, durante a cerca meia hora em que os três inspetores de SEF lá estiveram era uma incógnita — até hoje. Nenhum deles tinha antes contado ainda a sua versão da história. Não havia nenhuma câmara de videovigilância na sala. E nenhuma outra pessoa lá entrou durante essa meia hora. Só eles podiam contar o que se passou na sala onde Ihor Homeniuk morreu.
A única versão conhecida e possível era a da acusação do Ministério Público: a de que, em março do ano passado, os três agrediram este cidadão, a quem tinha sido recusada a entrada em Portugal, de forma tão violenta que ele acabaria por morrer quase oito horas mais tarde. Uma versão que levou a que fossem acusados de homicídio qualificado e que agora arrisquem a pena máxima de prisão. Uma versão que levou a uma série de demissões no SEF, incluindo a da diretora nacional. E uma versão que todos eles negaram por completo esta terça-feira, no arranque do julgamento do homicídio de Ihor Homeniuk.
O que fizeram então? O que lhes foi ordenado que fizessem? Como foram lá parar? E que indicações deram depois de terem ido embora? Esta é versão dos inspetores do SEF sobre o que se passou na sala onde Ihor Homeniuk morreu. E a que os juízes determinarão, no final do julgamento, se é a verdadeira ou não.
Inspetores foram chamados para “algemar” uma “das piores pessoas que teria passado naquele centro” — “uma história de terror”
Os três inspetores estavam no seu turno normal de trabalho, quando foram contactados pelo então diretor de fronteiras, entretanto demitido: a missão era deslocarem-se ao CIT e algemar Ihor Homeniuk, um cidadão ucraniano a quem não tinha sido permitido entrar em Portugal. A Luís Silva a justificação dada foi a de que este cidadão estava a ter um “comportamento violento e autodestrutivo” e a Duarte Laja a de que era “uma situação de urgência com uma passageiro que estava a gerar problemas“, segundo se recordam e contaram em tribunal.
Chegados ao CIT, depararam-se com “uma certa agitação na zona da receção”, contou Bruno Sousa. “Apercebi-me de vários comentários [de vigilantes e inspetores] a dizer que o senhor era muito conflituoso e que era das piores pessoas que teria passado naquele Centro”, afirmou ainda. “Fui abordado por um dos vigilantes que lá estava que me pôs ao corrente da seguinte situação: um passageiro violento, agressivo, que tinha arranjado problemas, tinha havido destruição de propriedade, tinha tentado morder-se e que um dos vigilantes tinha sido agredido com um sofá. Contou mais ou menos uma história de terror“, disse por sua vez Duarte Laja. Luís Silva acrescentou ainda que lhes foi dito que “o passageiro já tinha tentado fugir“.
Face a estes alertas, os inspetores preparam-se para a intervenção. “Presumimos que ia ser violenta“, admitiu Luís Silva, acrescentando que em algum momento “alguém falou do historial que já se tinha passado” com o cidadão, nomeadamente que tinha passado a noite anterior no hospital. “Eu desarmei-me porque o cenário era de hipotético conflito para baixar a intensidade desse conflito caso acontecesse”, disse Duarte Laja, em declarações ao coletivo de juízes presidido por Rui Coelho.
Ideia era substituir algemas metálicas por ligaduras, mas Ihor estava muito agressivo: “Não havia necessidade de bater no homem”
O objetivo dos três inspetores era algemar o cidadão ucraniano para garantir a sua própria segurança e causar menos danos possíveis. Em resposta ao juiz Rui Coelho, Luís Silva admitiu que há “muitas intervenções que podem descambar neste tipo de procedimentos”. “Temos passageiros a comer vidros de lâmpadas para evitar serem expulsos do país”, exemplifica, para depois afirmar: “Temos de assegurar a integridade física dos passageiros. Pensei que ele não queria regressar e estava a fazer tudo para não regressar“.
Só que, lá chegados, Ihor Homeniuk já estava amarrado com fita adesiva — uma situação que, garantem, desconheciam. Luís Silva e Bruno Sousa agarraram o passageiro nos braços — este último colocou-lhe as algemas —e Duarte Laja segurou-lhe os pés. “Simultaneamente, começámos a tirar-lhe a fita adesiva dos pulsos e tornozelos. Levámos algemas médicas, as que se usam nos hospitais. A ideia era prender o passageiro com as fitas, que permitem outra elasticidade. Começou logo a gritar, extremamente agressivo, a tentar pontapear”, afirmou Luís Silva.
Bruno Sousa confirmou que foi ele quem colocou as algemas a Ihor Homeniuk e também que “a ideia” era substitui-las por uma “ligadura elástica”. “Retirei a algema metálica de um dos braços e o senhor começou a reagir muito mal”, explica, detalhando que optaram por isso por colocar novamente a algema metálica já que as médicas não seriam suficientes para o imobilizar.
Já Duarte Laja estava a segurar-lhe os pés e tentou remover as fitas adesivas, mas sem sucesso. “Não consegui tirar a totalidade e durante esse processo, como sentiu alguma mobilidade nas pernas, pontapeou, esperneou e fui alvo de algumas investidas e pontapés. A única forma para conseguir controlá-lo foi imobilizar as pernas colocando as mãos em cima dos joelhos”, disse, acrescentando que depois colocou as fitas elásticas nos pés.
Agressões? Zero. “Não houve necessidade. Não houve uma situação de confronto. Não havia necessidade de bater no homem porque ele já estava numa posição de fragilidade. Somos agentes de autoridade. Nunca iríamos provocar uma violência sem necessidade”, explicou Luís Silva, garantindo que durante toda a intervenção, o cidadão “esteve sempre sentado”. Aliás, nem sequer usou o bastão que levou consigo. Questionado pela sua própria advogada, Luís Silva esclareceu que o adquiriu em 2004 ou 2005, numa altura em que o SEF distribuiu bastões por vários inspetores, mas “não chegaram para todos”. “30% a 40% das pessoas tinham bastões extensíveis. No aeroporto era uma ferramenta útil de trabalho. Nunca ninguém nos referiu que não podíamos usar”, afirmou, acrescentando que sempre o usou de “forma vísivel no cinto”.
Bruno Sousa disse ainda que ao longo da intervenção sentiu que Ihor Homeniuk “tinha uma necessidade de se fazer compreender”. “Tentei falar com ele. Havia a barreira linguística, tentei usar alguns gestos para mostrar que estávamos ali para ajudar”, afirmou. Também Duarte Laja disse ter feito o mesmo :“Tentei comunicar com ele, mas ele falava na língua materna e gritava. Tentei usar linguagem gestual”.
O que aconteceu na sala, de uma forma resumida e na perspetiva dos inspetores foi apenas isto: encontraram-no enrolado em fita adesiva, tiraram a maioria para o imobilizar com algemas médicas, mas optaram pelas metálicas já que o cidadão ucraniano continuava com um comportamento muito agressivo. Ihor Homeniuk ficou então com os braços atrás das costas presos com algemas metálicas e com os pés presos com ligaduras. No final, foi deixado numa posição lateral “segura” e “confortável”.
Como a PJ reconstituiu o homicídio de Ihor a partir das imagens de videovigilância do SEF
Inspetores garantem que pediram aos seguranças para tirar as algemas, quando Ihor se “acalmasse”.
Luís Silva, recorda, foi chamar os seguranças para verem “como o passageiro estava” colocado na tal posição de segurança. “Quando saí, deixei a chave das algemas com um segurança e dei indicação para tirar as algemas quando acalmasse“, disse. Na sua vez de ser ouvido, Duarte Laja confirmou estas declarações e disse: “Eu ainda acrescentei que era para ficar algemado pelo tempo estritamente necessário”. Só que, horas depois, Ihor Homeniuk viria a ser encontrado morto ainda com as algemas colocadas.
Por volta das 10h00, Luís Silva perguntou a um segurança como estava o cidadão ucraniano e foi-lhe dito que estava “mais calmo” e que “já tinha até tomado o pequeno-almoço”, afirmou. Também Duarte Laja disse ao tribunal que, no final do turno, foi-lhe dito por seguranças que o passageiro já estava “bem”, “mais calmo” e que já tinha comido. “Nunca me passou pela cabeça que da nossa atuação, sendo proporcional, houvesse alguma razão anómala para as coisas não se processarem como deviam ter processado”, acrescentou.
Ihor Homeniuk acabaria por ser encontrado cerca de oito horas depois repleto de marcas de aparentes agressões e acabaria por morrer. À versão do Ministério Público que dá conta de que os responsáveis foram os três inspetores, junta-se agora a dos arguidos. Faltam outras: as de outros inspetores que se encontravam no CIT e as dos seguranças. Esta quarta-feira começam a ser ouvidos os primeiros.