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Começou há pouco mais de três anos a curva ascendente de Pabllo Vittar rumo ao sucesso. Da música contagiante, com as raízes brasileiras a ressaltar, a cantora, compositora e drag queen nordestina virou estrela pop com pretensões internacionais. Esta quarta-feira, 24 de abril, pisa o palco do Campo Pequeno, em Lisboa, naquele que é o primeiro de quatro concertos em solo europeu. Segue-se Aveiro, já no próximo sábado, Londres e Dublin até ao fim do mês.
Vittar soma já três digressões e dois álbuns de originais. Por estes dias, promove Não Para Não, editado em outubro de 2018. Depois de uma infância pobre e marcada pelo bullying, a adolescência proporcionou-lhe um desbravar de terreno e de experiências que culminou na criação de uma persona de palco. Com a idade adulta, o sucesso internacional. Acaba de vir do Coachella e os seus segredos de beleza já estiveram em destaque na Vogue, ao lado de anjos da Victoria’s Secret. Aos 24 anos, é um embaixador dos direitos LGBTI no Brasil e um ativista no combate ao preconceito e ao discurso de ódio. Pabllo Vittar é um nome masculino antecedido por um artigo feminino — o que para muitos é um quebra-cabeças, para a cantora é a língua a ser fluida, tal como o género.
Infância: a família, o bullying e São Paulo
Phabullo Rodrigues da Silva Araujo nasceu a 1 de novembro de 1994, em São Luís, estado do Maranhão, no nordeste brasileiro. Filho de uma técnica de enfermagem, tem duas irmãs — Phamella, irmã gémea, com quem partilha a experiência de nunca ter conhecido o pai biológico, já que este abandonou a família antes de nascerem, e Polyanna, um ano mais velha. A profissão da mãe e as dificuldades financeiras fizeram com que mudasse de cidade mais do que uma vez durante a infância. Viveu em Santa Inês, no interior do mesmo estado, em Santa Izabel do Pará, no Pará, e regressou ao Maranhão, mais precisamente à cidade de Caxias, no início da adolescência.
Na escola, foi vítima de bullying. “Eu não tive ninguém pra passar nada para mim, tive de aprender aos trancos e barrancos. Sempre fui muito afeminada, e minha voz sempre foi muito aguda, então sofri muito de bullying. Na escola, uma vez um menino derrubou um prato de sopa quente em mim, disse que era para eu falar como homem. E ninguém fez nada, fiquei chorando num canto”, contou Pabllo Vittar numa entrevista ao jornal brasileiro O Globo, em janeiro de 2017.
Mais recentemente, em setembro do ano passado, a cantora voltou a falar sobre os episódios de violência na escola, desta vez no programa Altas Horas, na Globo. “A escola foi um período muito difícil para mim”, afirmou, recordando o primeiro dia de aulas numa nova escola, no Pará, quando tinha 10 anos. “Era uma criança gordinha, afeminada, de cabelo grande chegando ali naquela sala que tinha um monte de gente. E eu fui para a escola nesse primeiro dia muito contente porque era a quinta série, todo o mundo queria chegar na quinta série. No primeiro dia me bateram e foi horroroso. Eu não tinha a quem recorrer. Os professores não faziam nada. Eu lembro de ter chegado em casa chorando muito triste: ‘Mãe, não quero ir para a escola mais’. Minha mãe falou: ‘Você vai sim, sua vida inteira vai ser desse jeito, se você se esconder vai ser pior'”.
A par da violência física e psicológica, as memórias de Vittar também revelam o contexto humilde em que cresceu, bem as limitações financeiras da família. “Tenho muito orgulho de ter nascido na família da dona Verônica Rodrigues, que é a minha mãe, que sempre me aceitou e me amou”, referiu no mesmo programa de televisão. “Ela criou eu e minhas duas irmãs sozinha, no interior do Pará. E foi com muita garra. Eu lembro de ajudar minha mãe a botar o cimento da calçada da gente”, referiu.
Aos 13 anos, Phabullo já cantava covers em festas de família e na escola, sem maquilhagem, perucas ou roupas femininas. Dentro das possibilidades que tinha, a mãe fomentava o lado artístico do filho, colocando-o a cantar no coro da igreja e levando-o a ter aulas de ballet clássico. Com 16 anos, mudou-se para Indaiatuba, cidade no interior de São Paulo, com a irmã gémea, na tentativa de construir uma carreira no mundo da música. Viveram lá dois anos. “Fui para tentar carreira como cantora, mas acabei trabalhando nos Habib’s [cadeia brasileira de fast food] da vida e em um salão, maquiando e fazendo cabelo. Depois disso, fui para Uberlândia, onde a minha mãe estava morando”, relembra em entrevista ao jornal O Globo.
Pabllo Knowles, a primeira versão de Vittar
“Comecei a me montar aos 16, mas era um horror. Participei de alguns concursos de beleza e até cheguei a ganhar, mas queria mesmo era estar no palco. E aí resolvi levar a drag para o palco, profissionalmente”, afirmou numa entrevista publicada em dezembro de 2015, no site Medium. Regressou a casa com 18 anos, altura em que entrou para o curso de Design da Universidade Federal de Uberlândia, cidade do estado de Minas Gerais. Nos anos anteriores, Phabullo já tinha explorado novas formas de se expressar, nomeadamente através de roupa e acessórios, mas ainda não o tinha feito de forma profissional. Na nova cidade, deu os primeiros passos nesse sentido.
Terá sido por essa altura que adotou Pabllo Knowles como nome artístico. Inspirado pelo ídolo Beyoncé, segundo o jornal O Globo, a fase coincidiu com o auge do Orkut e com as primeiras incursões pela noite mineira. “Eu não tinha nem peruca, fui toda enfaixada e com uma sainha, bem piranhona. Foi bem legal”, revelou. A produção foi ficando séria, como na noite em que ficou à porta de uma discoteca a distribuir panfletos para promover a festa de uma amiga. “Fui na farmácia, comprei um lápis, um batom e umas extensões tão baratas que acabaram virando um dread só”, partilhou com a revista Trip, em fevereiro do ano passado.
A passagem pelo Belgrano, discoteca da cidade, foi decisiva. Este não foi só o sítio onde se começou a apresentar como drag queen, expressão de identidade pela qual se apaixonou na mesma altura em que descobriu o programa de televisão norte-americano RuPaul’s Drag Race, mas também onde conheceu Rodrigo Gorky, o homem que viria a produzir o seu primeiro grande êxito. Na altura, os dotes vocais de Vittar passavam também pelo YouTube, plataforma utilizada pela cantora para divulgar vídeos de covers de Whitney Houston, Beyoncé e outras divas. Quando pisa os primeiros palcos, nasce Pabllo Vittar, a artista que percebeu que, ao cantar “montada”, conseguia libertar-se. “A Pabllo Vittar é como se fosse a minha extensão, sabe? Como se fosse… Como posso dizer isto… É a minha armadura, mesmo, que coloco para fazer os meus shows. O Phabullo é um menino, mas os dois têm muito um do outro, é impossível um viver sem o outro”, referiu recentemente em entrevista à revista portuguesa Blitz.
A partir do Belgrano, a rede de contactos começou a funcionar. Gorky terá pedido a Hayashi e Rezende, donos do clube a quem, mais tarde, Vittar chamou de “pais”, para lhe apresentarem a drag queen. O produtor acabaria por sugerir que a cantora gravasse uma versão em português de “Lean On”, êxito dos californianos Major Lazer. O resultado foi “Open Bar”, lançado em dezembro de 2015. O curso de design já tinha ficado pelo caminho e Pabllo Vittar abraçava oficialmente uma carreira musical. A música foi um êxito, elogiada no Twitter pelo produtor da versão original, o norte-americano Diplo. O EP veio com outras quatro versões, incluindo dos temas “Diamonds” de Rihanna e “Partition” de Beyoncé, mas essas, tal como os respetivos telediscos, acabaram por ser retirados das plataformas digitais pois não tinham sido autorizadas.
Mas nem a questão legal se sobrepôs ao sucesso do primeiro single de Pabllo Vittar. A músico tornou-se viral. No YouTube, o vídeo, rodado durante dois dias na casa de um amigo da cantora, e com um orçamento de 600 reais (cerca de 136 euros), ultrapassou um milhão de visualizações em menos de quatro meses. O sucesso acabou por resultar na primeira digressão da artista. A Open Bar Tour prolongou-se de dezembro de 2015 a outubro do ano seguinte, com mais de 120 concertos em todo o Brasil (só não passou pelos estados do Acre e de Rondônia).
“A gente tinha uma expectativa, mas não esperava que fosse tão grandioso. Foi um trabalho que ganhou uma proporção muito grande e eu acho que tem sido de suma importância para o movimento LGBT, para o movimento trans, para o movimento drag“, admitiu numa entrevista, pouco tempo depois do lançamento do primeiro single. Atrás da música, vieram outras repercussões do fenómeno — Vittar ganhou os primeiros contratos de publicidade e foi convidado para o programa Amor & Sexo, da Rede Globo, no qual participou durante duas temporadas. Pelo meio, gravou o primeiro álbum.
Vai Passar Mal, a produção independente e o fenómeno
Em janeiro de 2017, saiu Vai Passar Mal, o primeiro álbum de Pabllo Vittar. “Nêga”, “Todo Dia” (entretanto retirado das plataformas digitais já que Vittar e rapper Rico Dalasam, com quem colaborou, não chegaram a acordo quanto aos direitos de autor da canção), “K.O.”, “Corpo Sensual”, “Então Vai” e “Indestrutível” foram os singles do disco, que culminou na segunda digressão da cantora, a Vai Passar Mal Tour, que se estendeu por cerca de um ano e meio. O álbum reuniu boas críticas — foi considerado o oitavo melhor disco brasileiro de 2017 pela Rolling Stone Brasil — e teve um desempenho assinalável nas plataformas digitais — o vídeo de “Então Vai”, que conta com a participação de Diplo, somou três milhões de visualizações nas primeiras 24 horas.
Em julho de 2017, “Sua Cara” junta Pabllo Vittar, Major Lazer e Anitta (e Diplo na composição) na mesma canção e no mesmo vídeo, este filmado em Marrocos. Com o sucesso imediato do single, Vittar tornou-se o primeiro artista a ter três músicas no top 5 do Spotify Brasil, em simultâneo. Nos Estados Unidos, o tema chegou a estar no top 30 da Billboard. Chegou mesmo a estar nomeado na última edição do Grammy Latino. Dúvidas houvesse, 2017 foi mesmo o ano da drag queen brasileira. O seu primeiro disco foi lançado por uma editora independente, a BMT Produções Artísticas, mas em agosto foi assinado um contrato de dois álbuns com a Sony Music, ao mesmo tempo que Vittar lançou mais uma colaboração, a música “Decote”, com Preta Gil. Em setembro, subiu ao palco principal do Rock in Rio com Fergie e em dezembro, mês em que lançou a Vai Passar Mal: Remixes, participou na canção “I Got It”, da britânica Charli XCX.
A escala aumentou, bem como a estrutura em torno da cantora. No início de 2017, o jornal O Globo falava em orçamentos de 15.000 e de 20.000 reais (cerca de 3.400 e 4.500 euros) para os vídeos “K.O.” e “Indestrutível”, respetivamente. Em janeiro de 2018, chegou um documentário à Apple Music. Além da sua música, a cantora aborda a questão da representatividade dentro da comunidade LGBTI. Outra colaboração internacional foi com o duo nova-iorquino Sofi Tukker. Curiosamente, o vídeo do tema foi gravado no verão do ano passado, em Lisboa.
Não Para Não, o segundo álbum de estúdio, chegou em outubro de 2018. Menos conectado com o funk carioca e com o arrocha da Bahia e a apontar a mira a águas internacionais, o disco teve todas as canções no top 50 do Spotify Brasil e quatro delas chegaram ao top 10. “Problema Seu” foi o single de estreia, seguido de “Disk Me”, “Seu Crime” e “Buzina”, este último lançado já em fevereiro deste ano. “São dois momentos incríveis da minha carreira. Vai Passar Mal marcou uma era maravilhosa, fulgurosa, brilhante, a bíblia do pop. Amo-o muito porque tem muito de mim, foi o álbum para o qual mais compus. No Não Para Não só compus uma música, mas tem muito de mim […] É no “Não Para Não” que vejo uma Pabllo mais focada, sabe? Mais sabendo o que quer. Não que não soubesse antes, mas estava tão feliz em poder fazer pela primeira vez tudo o que sempre quis que acabei por estar mais concentrada neste segundo álbum”, partilhou com a revista Blitz. A terceira digressão da cantora arrancou em novembro e, depois do Brasil, Vittar passou pela Argentina, México e Chile. Na Europa, tens espetáculos agendados em Lisboa, Aveiro, Londres e Dublin.
Ele ou ela? A imagem e o género escorregadio de Pabllo Vittar
“Com a Pabllo me sinto forte. Consigo colocar meus sentimentos para fora e, ao mesmo tempo, me sinto protegida, como se meu alter ego fosse um escudo. Já o Phabullo é mais tímido. Só tenho uma vida e quero ser quantas pessoas quiser. As pessoas vivem conformadas, às vezes presas em suas cabecinhas. Ver tanta gente morrendo e sofrendo com intolerância e ódio só me faz ter mais vontade de viver, experimentar e lutar pelas coisas em que acredito” — as palavras são de Pabllo Vittar, numa entrevista dada à edição brasileira da revista Marie Claire, em outubro de 2017. Como esta explicação, a cantora deu outras, sempre quando questionada sobre o seu género, orientação sexual e sobre a dicotomia entre masculino e feminino, desafiada cada vez que se apresenta como “a Pabllo Vittar”.
“Pabllo Vittar é um menino. Que é menina. Que não tem género. Que não tem medo. Que prefere mil vezes estar em um palco do que em qualquer outro lugar do mundo”, afirmou em dezembro de 2015, numa das suas primeiras entrevistas. “Porque eu acho que o meu nome, por si, já é meu alter-ego. Estamos aí pra desconstruir género. E um nome não define quem você é. Eu sou Pabllo Vittar. A Pabllo Vittar”, concluiu. Noutra ocasião: “Sou gay, me relaciono com homens, e também sou drag. Mas o que é ser menino? Menina? Trans? Não gosto de me encaixar, meu negócio é transitar” — explicou. “Sou gay, amo meu corpo, não tenho problema com minha identidade de género e sou feliz do jeito que sou. Só me sinto mulher quando estou montada”, referiu numa outra entrevista.
Em Pabllo Vittar, persona feminina, Phabullo encontrou uma fórmula libertadora, na qual a música e o espetáculo têm papéis essenciais. Apesar da aparência feminina e exuberante, a cantora já admitiu não fazer tenções de mudar de género. “Não quero mudar nada. Se eu tivesse nascido uma pessoa trans, você acha que já não teria mudado tudo e estaria por aí, linda?”, confessou na mesma entrevista à Marie Claire. Tem 1,87m de altura, atingido facilmente os dois metros com sapatos de plataforma. Assegura que a boa forma resulta de exercício físico (embora deteste ir ao ginásio) e de uma alimentação à base de vegetais e proteínas.
Nas horas vagas, Phabullo continua a existir por si só, sem maquilhagem nem saltos altos. “Demoro quase três horas para virar Pabllo Vittar. Não vou ao mercado nem à feira de peruca, salto, nada disso. Quando estou de folga, o que menos quero ver é maquiagem. Engraçado que, quando pequeno, chorava quando minha mãe raspava meu cabelo. Hoje, eu mesma raspo. Assim é mais fácil para colocar as perucas”, afirmou à revista Época. Ainda assim, a fama de Vittar já a levou à lista de destaques na Vogue norte-americana. Em novembro do ano passado, a revista fez um vídeo com os cuidados de beleza da cantora, uma rubrica fixa que já contou com a participação de Bella Hadid, Alessandra Ambrosio, Kylie e Kendall Jenner, Rihanna e Karlie Kloss, entre muitas outras.
Pabllo Vittar, a embaixadora sem fronteiras
Desde 2015 que Pabllo Vittar advoga os direitos da comunidade LGBTI no Brasil. “Num país onde 343 pessoas LGBT foram mortas em 2016, a cantora e drag queen assumidamente gay Pabllo Vittar tornou-se um símbolo de resistência”, escreveu o britânico The Guardian em outubro de 2017. O alcance e o poder de influência de Vittar é inegável — são mais de oito milhões de seguidores no Instagram (mais do dobro do que o seu ídolo RuPaul), quase 1.900.000 no Facebook e 711.000 no Twitter.
Mais do que uma figura de entretenimento, Vittar é uma ativista. Quando, em setembro de 2017, o juiz brasileiro Waldemar de Carvalho defendeu terapias para a “cura gay”, a reação da cantora chegou instantaneamente via Twitter: “O preconceito não vai vencer”. “Eu sempre falo que é isso que faz o meu trabalho valer a pena, é poder transformar a vida das pessoas de alguma maneira e poder fazer com que elas se afirmem nesse país que é tão preconceituoso, tão homofóbico, tão misógino, tão transfóbico”, admitiu a cantora numa entrevista dada no início deste ano. Com os fãs e admiradores, Vittar estabelece uma relação de identificação. Em entrevistas e aparições públicas, fala da própria experiência com o bullying e com o preconceito. “Eu sei como é difícil ser motivo de chacota, de risada, não conseguir emprego por ser quem você é, não conseguir namorar”, referiu no início deste mês durante uma entrevista a um canal de YouTube.
Aos poucos, Pabllo Vittar está a tornar-se um fenómeno além das fronteiras do Brasil. No passado fim de semana, atuou no festival Coachella, ao lado de Diplo e Major Lazer. No final de junho, a cantora é já presença confirmada na Marcha do Orgulho LGBT de Nova Iorque. Mas a exposição de Vittar e o protagonismo que tem assumido na representação da comunidade LGBTI brasileira também fizeram dela um alvo apetecível na hora de propagar as chamadas fake news.
A que tomou maiores proporções veio a público durante a campanha de Jair Bolsonaro para presidente. Segundo a informação veiculada nas redes sociais, Vittar garantia o fim da sua carreira no Brasil e a sua saída do país, caso o candidato do Partido Social Liberal fosse eleito. Em novembro, já depois das eleições, a cantora aproveitou um programa de televisão para retificar o boato: “Meus amores, eu não vou sair do Brasil […] Nem o negro vai voltar pra senzala, nem a mulher para a cozinha, nem o gay para o armário”, exclamou. Um mês antes, um canal de online aproveitou a deixa e juntou-lhe uma boa dose de humor. Vittar, ela própria protagonista do vídeo, leu alguns dos boatos em torno do seu nome durante a campanha do candidato que viria a ser o presidente do Brasil.