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Não foi preciso mais de meia hora para que, a 10 de novembro, os deputados europeus aprovassem a resolução sobre o mundo dos videojogos e dos desportos eletrónicos (eSports) no Parlamento Europeu. Esta votação era o passo que se seguia depois de, em outubro, ter sido revelado um relatório recheado de recomendações sobre este ecossistema na Europa.
Segundo as estatísticas, 52% da população europeia joga videojogos. Dada a expressividade do mercado, que vale 23,3 mil milhões de euros na Europa, esta resolução do Parlamento Europeu pede uma abordagem que valorize os videojogos enquanto indústria criativa e com capacidade de promoção cultural, mas que permita também estimular o desenvolvimento económico do setor. Nas entrelinhas fica ainda o pedido para os videojogos serem vistos como uma “atividade social” e para que o “estigma” que afeta a indústria e que “ainda está generalizado em toda a sociedade” seja combatido.
A resolução, que vai ser agora transmitida ao Conselho Europeu e à Comissão Europeia, não inclui só os videojogos, também faz várias recomendações sobre um fenómeno que cresceu ao longo dos últimos anos, os eSports. Também conhecidos como desportos eletrónicos, tornaram-se célebres as competições à escala global, onde há prémios chorudos em jogo para as melhores equipas, em torneios onde se joga FIFA ou Counter Strike: Global Offensive (CS:GO).
Nestas competições de eSports, que também já chegaram a Portugal, há fãs nas bancadas capazes de acompanhar com a mesma devoção um jogo de FIFA como se de um clássico do futebol no mundo real se tratasse. O montante que faz mexer esta indústria comprova o fenómeno: o mercado global estava avaliado em 1.084 milhões de dólares em 2021, perspetivando-se que em 2024 possa chegar aos 1.618 milhões de dólares. Os patrocínios, direitos de transmissão ou ainda a venda de bilhetes e merchandising representam algumas das principais fontes de receita. De acordo com um relatório publicado este ano pela ISFE, a federação que representa a indústria europeia de videojogos, só no velho continente estima-se que existam 29 milhões de entusiastas dos eSports – o equivalente a quase 4% da população europeia.
Na resolução que recebeu luz verde do Parlamento Europeu, há uma série de recomendações e pedidos ligados especificamente à indústria dos eSports, que vão desde a necessidade de salvaguardar este mercado de questões como o doping e outros mecanismos de alteração de desempenho, mas também das apostas ilegais. E há ainda menções à necessidade de haver regras claras para o estatuto dos jogadores de eSports.
A resolução, que foi baseada no relatório elaborado pela deputada francesa Laurence Farreng, foi aprovada com uns expressivos 560 votos a favor. Embora não tenha um caráter vinculativo, deixou clara a vontade dos legisladores europeus de terem uma estratégia europeia de videojogos, pensada a longo prazo. Além disso, pede, tanto à Comissão Europeia como aos Estados-membros, que reconheçam não só a componente cultural dos videojogos, como também o peso do setor para “descobrir e desenvolver novos talentos criativos, bem como contribuir para a melhoria de competências e a requalificação de todos os criadores culturais (…)”.
Da parte da Comissão Europeia, ficou logo a garantia de que o braço executivo da União Europeia está disposto a trabalhar na questão. Thierry Breton, comissário Europeu para o Mercado Interno, marcou presença no debate e deixou felicitações sobre a “abordagem holística” do documento. “Vimos que o assunto envolve muitos elementos – e aproveito esta oportunidade para dizer que a Comissão está disposta a trabalhar em estreita colaboração convosco, juntamente com o Parlamento, para o seguimento deste relatório”, disse Breton.
Proteger a integridade dos eSports e facilitar as questões de burocracia para os jogadores
A indústria de videojogos já tem décadas, mas o fenómeno de eSports é relativamente mais recente. No relatório aprovado no Parlamento Europeu, tal como acontece com os videojogos, é reconhecido o “potencial social e cultural significativo” dos eSports para conseguir “ligar europeus de todas as idades”. Além disso, tanto os videojogos como os desportos eletrónicos são descritos como veículos com “grande potencial para promover a história, identidade, o património, os valores e a diversidade europeia através de experiências imersivas”, salientando até que podem “contribuir para o poder de influência” do bloco dos 27 noutras geografias.
No texto é pedido a Bruxelas que não só crie uma carta para promover os valores europeus nas competições de eSports, com a particularidade de isto ser feito “em parceria com editores, equipas, clubes e organizadores de torneios (…)”, mas que também se conheça em pormenor o setor dos eSports à escala europeia para que seja possível tirar conclusões no futuro. Nesse campo, é incentivada a realização de um levantamento a nível local, regional e nacional para que se perceba quem participa neste género de competições.
A partir desta resolução também é possível ter um vislumbre do que poderiam ser algumas medidas ou recomendações para o setor, nomeadamente na proteção dos desportos eletrónicos. É nesse âmbito que entra em jogo a necessidade de resguardar a indústria europeia de “problemas relacionados com a viciação de resultados, o jogo ilícito e a melhoria do desempenho, incluindo o ‘doping’”. Especificamente neste ponto, é sublinhada a “necessidade de prevenir a dopagem e a viciação de resultados nos jogos profissionais e de sensibilizar os jogadores para estas questões, bem como de proteger a integridade das competições”.
O Parlamento Europeu também sublinha nesta resolução a necessidade de Bruxelas estudar a “possibilidade de criar linhas diretrizes coerentes e completas relativas ao estatuto dos praticantes profissionais de desportos eletrónicos”.
Já numa solicitação à Comissão Europeia, que é também alargada aos Estados-membros, é feito um pedido sobre a possibilidade de criar uma autorização especial de entrada associada aos eSports, sugerindo como modelo de inspiração os “vistos culturais e desportivos Schengen”. Estes vistos poderiam ser aplicados não só aos atletas participantes nas competições, mas a todas as pessoas associadas à realização das competições. Fica ainda o pedido aos países europeus para que avaliem a “adoção de medidas para facilitar os procedimentos de emissão de vistos, a fim de permitir que os trabalhadores do setor dos videojogos entrem na União Europeia”.
Federações veem resolução com bons olhos, mas discordam da distinção entre desporto e eSports
Após a aprovação da extensa resolução do Parlamento Europeu, várias federações e associações teceram comentários sobre o tema. Tiago Fernandes, presidente da Federação Portuguesa de Desportos Eletrónicos (FPDE), explica ao Observador que este desenvolvimento em Estrasburgo é visto “de forma positiva”. A organização portuguesa, que integra também a EEF, a Federação Europeia de eSports, aponta que a resolução “integra vários pontos que são muito positivos para a indústria, tais como a integração dos eSports nos programas escolares ou a promoção da diversidade.”
Mas há um ponto de discórdia, conforme destaca a EEF: a distinção entre desporto, “chamado tradicional”, e os eSports. No texto da resolução, o Parlamento Europeu ressalva a necessidade de uma distinção clara entre eSports e desporto, uma vez que se tratam de “setores diferentes”. Um dos pontos de distinção, defende Estrasburgo, está no facto de os “videojogos utilizados em competições ou os desportos eletrónicos são jogados num ambiente digital e pertencem a entidades privadas que detêm total controlo jurídico e todos os direitos exclusivos e ilimitados sobre os próprios videojogos.” Ainda assim, é feita a ressalva de que os dois setores podem funcionar numa lógica de complementaridade e promoção de posições “positivas semelhantes”, incluindo o desportivismo, não discriminação, trabalho de equipa, inclusão social ou igualdade de género.
“Acreditamos que os desportos eletrónicos são, de facto, desporto e que devem ser reconhecidos como tal”, sublinha Tiago Fernandes, que é também vice-presidente da EEF. “Continuaremos a trabalhar com a Comissão e Parlamento Europeu no sentido de chegar a um meio termo no que se refere a este tema”, garante em declarações escritas. “Reconhecemos que os videojogos são propriedade intelectual das empresas que os desenvolvem, porém acreditamos que a categorização dos eSports como desporto seria benéfico para o desenvolvimento da comunidade e apoio dos futuros jovens atletas digitais.”
Já a missiva enviada pela Federação Europeia de eSports ao Parlamento Europeu após a votação descreve muitas das recomendações da resolução como “bem-vindas”, mas atira também à proposta de distinção entre desporto e eSports, vendo-a como “um retrocesso” para os desportos eletrónicos na União Europeia. “Os desportos eletrónicos beneficiam muito de estar categorizados como um desporto. O desenvolvimento de longas décadas de infraestruturas legais e regulatórias que já existem no desporto completa muitos dos elementos necessários para os eSports serem praticados de forma justa, segura e com recursos já existentes”, é possível ler na missiva. Esta federação europeia considera que esta distinção presente na resolução poderá “trazer divisão, falta de harmonização e confusão”.
A carta da federação europeia lembra ainda que, “sem os atuais programas e infraestruturas que definem e regulam a indústria do desporto, os jogadores de eSports não vão ter acesso aos mesmos benefícios e proteções” que os praticantes do desporto dito “tradicional”. E lembra que a “indústria de eSports precisa de recursos institucionais que já estão disponíveis para o desporto”, incluindo as ferramentas “para combater a viciação de jogos e doping”.
Em relação a estes últimos dois temas, a portuguesa FPDE garante que está “completamente alinhada com as recomendações apresentadas” no Parlamento Europeu. “Como membro da Esports Integrity Commission (ESIC), a FPDE segue o Código de Ética do ESIC e todas as competições organizadas ou licenciadas pela FPDE estão em conformidade com o Código Anti-Corrupção, o Código de Conduta para Jogadores e Dirigentes, e com o Código Anti-Doping do ESIC”, lembra Tiago Fernandes. “São tópicos muito sensíveis que carecem de regulamentação, não só em Portugal como no mundo. O trabalho das federações, em conjunto com as instâncias governamentais, neste âmbito, é importante não só para as camadas profissionais, mas principalmente para as camadas amadoras e semi-profissionais.”
A FPDE é um dos vários membros da Federação Europeia de eSports, a EEF, estabelecida em fevereiro de 2020. A organização foi fundada por 26 membros, Portugal incluído. Atualmente, conta com 44.
Resolução pode ser o “início de uma estratégia” a longo prazo
Não é só entre as federações de eSports que a resolução é vista com bons olhos. Ann Becker, líder da área de policy e public affairs da ISFE, a Federação Europeia de Software Interactivo, dá “as boas-vindas” à resolução, explicando que representa um “reconhecimento adequado” do papel dos videojogos na economia digital e do “papel importante no setor criativo e cultural” a nível europeu.
Ann Becker destaca alguns dos pontos desta estratégia que figura nas recomendações do Parlamento Europeu, como o “reconhecimento da importância da propriedade intelectual nos videojogos” , que são “trabalhos complexos e criativos” ou ainda o “reconhecimento do valor acrescentado dos jogos na área das competências e educação.” “Ficámos muito satisfeitos por ter havido tempo para [deputados europeus] lerem o relatório e terem uma melhor compreensão sobre o setor dos videojogos na Europa, já que somos uma parte tão importante para a economia digital e cultural”, ressalva esta responsável.
Segundo números compilados pela ISFE e pela EGDF, esta última a Federação Europeia dos ‘Developers’ de Jogos, no ano passado havia 124,8 milhões de jogadores na Europa, um aumento de 6% em relação aos 118,3 milhões de 2020. A indústria dos videojogos empregava cerca de 98 mil pessoas na Europa (74 mil deles na União Europeia), num universo onde 22% eram mulheres, de acordo com dados de 2020.
O levantamento feito pela EGDF indicava ainda que, em 2020, havia 4.600 estúdios e 200 editoras de jogos na União Europeia. Portugal tinha um dos números mais baixos, com 56 estúdios, ainda assim à frente de países como Noruega (15), Islândia (19) ou Croácia (45). Reino Unido e França lideravam esta tabela europeia, com 2.163 e 780 estúdios de desenvolvimento de jogos, respetivamente. Os dados apresentavam algum contexto sobre os números expressivos no Reino Unido, “atribuível, em parte, à facilidade de criação de uma empresa e também a um possível atraso na retirada de registo no Reino Unido” após o brexit.
O retrato de Portugal foi feito com dados fornecidos pela APVP, a Associação de Produtores de Videojogos Portugueses, que integra a federação europeia EGDF. Em 2020, a indústria empregava em Portugal 1.093 pessoas e movimentava 9,5 milhões de euros. Os números portugueses também eram modestos em relação às instituições de ensino com oferta de formação na área de desenvolvimento de jogos – uma dezena, ainda assim o suficiente para ficar a meio da tabela europeia.
Em conversa com o Observador, através de videochamada, Jari-Pekka Kaleva, diretor da EGDF, explica que a resolução é uma espécie de culminar de “anos de pedidos de atenção” às instituições europeias. “É algo a que damos as boas-vindas, porque finalmente reconhecem a importância do setor a nível europeu”, sublinha. E, na ótica deste responsável, não só é “altamente relevante” a resolução saída do Parlamento Europeu como também a recomendação que é feita aos Estados-membros.
Kaleva defende que a “resolução torna mainstream a importância dos videojogos enquanto produto cultural” e que o facto de “pedir uma abordagem estratégica nos videojogos será possivelmente o início de uma estratégia e de um plano” que permita à Europa “estar em pé de igualdade” com outros mercados.
Ana Silveira é “artista de esports” e gere comunidade num setor “que cresceu sozinho”
Uma boa parte destes estúdios de desenvolvimento de jogos na Europa são considerados pequenas e médias empresas (PME). Na resolução, fica clara a necessidade de trabalhar para que haja maior financiamento para a indústria europeia. Nesse campo, o finlandês Jari-Pekka Kaleva dá como exemplo a recomendação que menciona a facilitação de regras da UE nos auxílios estatais, como o Regulamento Geral de Isenção por Categoria, que permite aos governos dos Estados-membros conceder apoios públicos mais expressivos sem necessidade de solicitar autorização a Bruxelas. Segundo Kaleva, ao incluir a lista de videojogos nas exceções, a indústria poderia ser reforçada. Este responsável explica que, uma vez que os videojogos são uma “junção entre tecnologia e cultura”, devido “aos silos artificiais, nem sempre é fácil conseguir ter acesso a financiamento” para desenvolvimento de jogos.
Selo de videojogo europeu
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Outra das recomendações do texto aprovado pelo Parlamento Europeu passa pela criação de um selo de “Videojogo Europeu”, com o intuito de “promover e apoiar o comércio e comercialização a nível internacional dos videojogos” criados na Europa. Embora reconheça a ideia do selo “como simpática”, o responsável desta federação rebate com uma pergunta: “quantos jogos europeus é que já conseguiu encontrar nas plataformas da Apple ou da Google?” O selo, defende Kaleva, “poderá tornar a descoberta [de jogos europeus] mais fácil”, mas só “poderá ser eficaz se for acompanhado por uma conformidade por parte das plataformas” de aplicações. Para isso acontecer, seria preciso que fosse criado um espaço com a indicação de jogos europeus nas lojas de aplicações, exemplifica.
Resolução é “expressão de que UE está atenta ao desenvolvimento do setor”
João Leitão Figueiredo, sócio de TMC – Tecnologia, Media e Comunicações da sociedade de advogados CMS, vinca que esta resolução aprovada no Parlamento Europeu deixa claro que as instituições europeias estão de olho no setor. Além disso, lembra que também poderá ser uma tentativa de a União Europeia conseguir colmatar algumas “lacunas”.
A resolução “apresenta uma estratégia de ação para fomentar o desenvolvimento, incentivar o investimento, traçando as linhas gerais para a futura regulação do setor”, resume o advogado. “Esta resolução é a expressão de que a União Europeia está atenta ao desenvolvimento do setor, quer pelo impacto que tem, e pode ter, quer em termos económicos e financeiros, quer no desenvolvimento sociocultural.” Nesse sentido, contextualiza que “é importante que o seu desenvolvimento a nível europeu seja harmonizado, e que as lacunas que se têm vindo a conhecer sejam colmatadas e reguladas.”
Sendo os eSports uma indústria “em crescente desenvolvimento”, os sinais de alerta levantados por vários especialistas, falando da necessidade de proteger os jogadores contra, por exemplo, práticas de práticas concertadas e de gambling, “já tinham chamado à atenção do regulador Europeu”. Por outro lado, explica João Leitão Figueiredo, “a própria qualificação dos eSports como desporto ou a regulação dos patrocínios continuam a ser preocupações prementes para os participantes”, daí que “o desenvolvimento de uma estratégia ponderada e harmonizada comum, a nível europeu, era já expectável”.
Já no campo do investimento, João Leitão Figueiredo considera que um dos principais objetivos da resolução “é sem dúvida ganhar escala e potenciar os benefícios económicos diretos e indiretos que estão associados ao ecossistema dos eSports”. A ideia, defende, passará por procurar, “num primeiro momento, estudar o atual estádio de desenvolvimento da indústria dos jogos de vídeo e eSports na Europa para perceber as estratégias mais adequadas para fomentar o seu desenvolvimento, identificar os principais desafios e integrar os valores europeus na indústria dos videojogos e eSports.”
Resta agora saber, a partir desta resolução e das respetivas recomendações, o caminho que vão tomar estes documentos para a estratégia europeia de videojogos.