É num quarto andar de um prédio em Queluz que Fernando Conceição está imortalizado. A paisagem em volta, típica de cidade nos subúrbios da capital, não faz adivinhar o que ali se guarda. Helena Calado abre-nos a porta de casa com um sorriso que quase nos faz esquecer que perdeu o marido, Fernando, há cerca de dois meses. Vítima de cancro, não resistiu em junho à luta contra a doença, que durava há já seis anos. Ainda é recente. Helena emociona-se várias vezes ao longo de uma conversa de quase três horas com o Observador.
Fernando Conceição era fã incondicional dos Queen, em particular de Freddie Mercury. Durante duas décadas, dedicou-se a construir uma coleção com milhares de peças, a frequentar encontros de fãs fora do país, e a vestir-se como o vocalista da banda britânica. Talvez o sorriso rasgado, a estatura média, e um bigode que deixava crescer numa altura específica do ano — já lá vamos — levassem qualquer um a afirmar que Fernando era mesmo o “Freddie Mercury português”.
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Amigos e família querem agora levar a coleção para a cidade suíça de Montreux, onde o vocalista dos Queen passou os últimos anos de vida. Criaram para isso uma petição online com o título “Pedimos à cidade de Montreux que acolha a coleção do Fernando Conceição sobre o Freddie Mercury.” Uma petição por Fernando, pai de dois filhos, que morreu vítima de um tumor na coluna. A mulher diz agora que precisa de dar um novo rumo à coleção, porque “é demasiado doloroso olhar para ela todos os dias”.
Helena Calado hesita em receber o Observador em sua casa. “Ainda é tudo muito recente”, contava-nos ao telefone. Mas aceitou. Aceitou dar-nos a conhecer a coleção-museu que ainda tem disposta na sala e as histórias de cada peça, que vai recordando emocionada à medida que desenrola a fita do tempo e das memórias vividas com o marido. E é na sala, ao longo de uma parede branca, que uma vitrine dividida em várias prateleiras em forma de quadrado não passa despercebida. Cada um dos compartimentos está organizado com uma lógica que Helena ainda não teve coragem de desfazer — o dos jogos, o dos vinis, o das estatuetas de Freddie Mercury. São milhares os objetos relacionados com os Queen, desde os mais comuns aos fora do normal, como os carros em miniatura ao frasco de ketchup, passando pela vodka e pelas cervejas.
Mas é no canto, do lado esquerdo da grande prateleira da coleção de Fernando, que surge aquela que era a peça favorita do fã português. “Ui, isso é uma história… Esse Freddie em tamanho real… era o objeto preferido dele. Foi uma aventura”, conta Helena sem conseguir conter as lágrimas. “Isso foi num aniversário do Freddie, em setembro de 2011. Fiz uma surpresa ao Fernando e disse-lhe que passávamos o aniversário do Freddie em dois locais. Começámos o dia em Montreux, na Suíça, e terminámos o dia em Londres, no Reino Unido.” Mas um atraso nos aviões trocou-lhes os planos.
“Eu queria muito estar presente na festa no hotel Savoy, em Londres, e foi mesmo a loucura. Tivemos de mudar de avião, porque o nosso atrasou oito horas e não íamos chegar a tempo à festa, tivemos de comprar os bilhetes de avião mais caros de sempre da história da aviação para nós.” O casal não desistiu e conseguiu chegar à festa a tempo. “A recompensa foi exatamente este Freddie em tamanho real, que estava à entrada da festa. As drag queens que estavam na entrada reconheceram o Fernando porque ia vestido com o casaco amarelo, igual ao do Freddie, e reconheceram-no da exposição dos Queen em que tínhamos estado em fevereiro. E perguntaram ao Fernando se ele queria o Freddie. E ele diz automaticamente ‘Sim, claro que quero!'”, recorda, para logo partilhar a sua reação. “Eu fiquei a olhar para o Fernando, não disse nada… E portanto era uma da manhã e andávamos pelas ruas de Londres — ele vestido de Freddie, com o Freddie debaixo do braço… Ainda por cima chovia… Eu ia com as nossas malas, porque como nos atrasámos não conseguimos ir ao hotel, e já estava tão cansada, tão cansada que dizia ‘Eu vou a gatinhar para o hotel, eu já não aguento mais’. E ele dizia ‘Só mais um bocadinho, aguenta'”. Nos últimos meses de vida de Fernando, esse “Freddie Mercury em tamanho real” foi a cabeceira da cama, colocada na sala, para que ficasse mais perto da sua coleção. “Tive de montar um quarto aqui na sala para ele e essa peça era a cabeceira dele. As médicas vinham cá a casa e metiam-se com ele porque tinha a cama mais gira de sempre.”
As lágrimas dão lugar a um sorriso enquanto Helena lembra a história, numa autêntica montanha russa de emoções. A maioria das peças da coleção de Fernando foi adquirida em sites na internet ou em viagens que o casal fez em conjunto. Helena não consegue arriscar quanto pode valer esta coleção em termos monetários, mas sabe que ali estão poupanças e investimentos de uma vida. “Era o sonho dele, foi o que ele construiu ao longo dos últimos 20 anos. Tentou procurar todos os itens que conseguiu relacionados com os Queen, e com o Freddie Mercury em especial. Temos aqui uma vida.” À medida que partilha a história de vários objetos, Helena Calado vai-se emocionando enquanto destaca algumas das peças mais especiais da coleção.
A limpeza do pó e a aderecista cujo nome não podia ser pronunciado
Tudo começou com o single “Crazy Little Thing Called Love”, lançado em 1979, quando Fernando tinha 15 anos. “O irmão comprou, deu-lhe a ouvir. E o Fernando, com o maior dos desprezos — coisas de irmãos, já se sabe — disse ‘Ah, sim, a música é gira, mas não é nada de especial’. A seguir virou costas e foi a correr comprar”. Foi essa a primeira peça da coleção de Fernando, que obriga Helena a ajoelhar-se perante o móvel mais à direita, que suporta a televisão, para nos mostrar tal relíquia. É ali que estão muitos dos milhares de vinis, todos assinados com as iniciais do nome de Fernando. “A sério, este homem não existe”, comenta Helena, depois de demorar alguns minutos a descobrir o single, no meio de tantos, tantos outros.
“Depois, isto são mesmo puzzles, aquele é mesmo o Monopoly dos Queen, não tivemos oportunidade de jogar, mas acho que ele também não nos ia deixar jogar, para não estragar. O Lego, que retrata a banda, era dos preferidos e foi alvo de disputa cá em casa com o elemento mais novo da família, que também é aficionado.” Fernando Conceição procurava depois ter várias versões de uma mesma peça, algo “comum aos colecionadores”.
Helena vai abrindo a pequena porta de cada uma das prateleiras — vemos matrioscas dos Queen, carros em miniatura, pins, livros, baralhos de cartas. “As pop figures, isto foi uma luta, porque isto foi um lançamento que tiveram há muitos anos e o Fernando andou atrás da empresa que faz estas peças e mandou e-mails e chateou para saber quando é que lançavam. Até que agora, quando foi novamente a onda dos Queen, por causa do filme, eles voltaram a lançar, e então o Freddie nos seus diferentes outfits voltou a aparecer, e o Fernando comprou.”
“As matrioscas dos Queen, que ele adorava. Os carrinhos em miniatura. O ketchup dos Queen, que toda a gente acha imensa piada. Ele lá descobre estas coisas, é o ketchup, a vodka, e a cerveja. A cerveja fui eu que fui com ele comprá-la de propósito a Londres.” Helena Calado atribui a paixão e o gosto de colecionar peças dos Queen a Fernando. Mas o papel que teve em todo o processo foi fulcral. Era Helena quem o encorajava a comprar peças que “ficava a namorar” durante muito tempo, mas que não tinha coragem de comprar por serem caras.
É o caso de uma garrafa de água, que veio diretamente do Japão para aquele quarto andar de um prédio em Queluz. “O Fernando andou a namorar esta peça durante um ano porque o preço era elevado. A garrafa é de uma marca japonesa, é toda trabalhada, cheia de brilhantes Swarovski, numa edição especial dos Queen. Um dia o filho mais velho foi ao Japão e a primeira coisa que o Fernando disse foi ‘Vai à loja por favor e traz a garrafa!’ Combinaámos fazer-lhe uma surpresa e dissemos-lhe que já não havia na loja. O Fernando ficou desolado, para morrer. Esta era a última garrafa, a rapariga teve de ir buscá-la ao armazém. Foi para cima de 100 euros, mas foi a prenda de Natal dele. Eu só gostava que vissem a alegria na cara dele, no dia de Natal a abrir a garrafa. Era uma criança, como se lhe tivessem dado o melhor presente do mundo.”
A grande e alta estante disposta na sala, a que Fernando gostava de chamar coleção-museu, não mostra os milhares de objetos adquiridos. Muitos estão guardados na garagem, outros em gavetas ou mais escondidos nas prateleiras. Por isso, limpar o pó à coleção não era uma tarefa fácil, mas apenas uma pessoa o podia fazer. “Ele nunca me deixou limpar o pó, nunca deixou ninguém mexer, era sempre ele que o fazia, porque isto tem a lógica e a ordem que ele lá imaginava e que fazia sentido para ele. O Fernando era capaz de estar um dia de volta disto. Ele era uma pessoa muito minuciosa, muito cuidadosa.” No entanto, a doença foi debilitando Fernando, que nos últimos tempos de vida já não era capaz de dar conta do recado sozinho. “Eu limpava, ele ia-me dizendo como queria e como não queria.” Desde que Fernando morreu, Helena ainda não foi capaz de tirar o pó às peças da coleção, de tocar ou mesmo de mudar as coisas de sítio. “Com calma, lá chegarei”, afirma.
Além de minucioso com as suas coisas, Fernando Conceição era tímido. Quando em encontros de fãs reconhecia alguém famoso, tinha receio de ir falar. “Ele tinha medo de incomodar as pessoas, por isso era eu que o encorajava a ir falar e a pedir para tirar fotografias.” Era um traço de personalidade que parecia não condizer com a forma como Fernando se vestia a rigor para essas ocasiões. Mandava fazer os fatos a uma aderecista cujo o nome “não queria que se soubesse, porque dizia que não queria que o copiassem”. As três vestimentas que tinha — e que agora saltam à vista na grande estante da coleção de Fernando na sala — eram autênticas réplicas de fatos utilizados por Freddie Mercury. O preferido era o casaco amarelo, utilizado por Freddie no mítico concerto no Estádio de Wembley, no ano de 1986. Mas também a coroa vermelha, usada pelo vocalista dos Queen no mesmo concerto, durante a atuação da canção “God Save The Queen”. “Eu tinha o sonho de lhe fazer o manto vermelho, a combinar com a coroa, mas já não tive oportunidade de o fazer. Mas a coroa, sim. Um rei tem sempre de ter a sua coroa, e aqui o nosso rei cá de casa também tinha”.
Fernando não se vestia como Freddie no dia a dia. Mas era farda obrigatória em encontros de fãs e festas relacionadas com os Queen. E nem o bigode escapava. “Ele só deixou crescer o bigode por causa do Freddie Mercury. Em agosto, costumava deixar crescer, para em setembro ter o bigode. De resto, fomos uma vez comprar um bigode falso, que ele utilizava noutras circunstâncias, porque ele gostava de andar sempre com a barba feita. Mas pelo Freddie e pelos Queen, ele fazia isso. Então deixava crescer na altura do aniversário do Freddie, que é a data mais emblemática”. Já cantar, Helena ri-se e admite que não era o forte do marido, que dizia sempre que não cantava, mas encantava.
Das fotos com os Queen ao jovem italiano que também está doente
No mesmo compartimento da prateleira onde se veem vários jogos de edições especiais dos Queen, uma moldura com uma fotografia impressiona qualquer um. Fernando Conceição surge entre dois elementos da banda britânica, depois de ter ganhado um concurso em Portugal promovido pela editora. O prémio para “o fã mais fã dos Queen” era marcar presença na inauguração da exposição dos Queen em Londres, por altura dos 40 anos da banda. Fernando concorreu e, não surpreendentemente, venceu. Mas não sabia se os seus ídolos iam lá estar. “Estavam outros nomes da editora, como Jessie J e David Grohl”, conta Helena. “Mas quando vimos o Roger (Taylor) e o Brian (May) a entrarem… Ele não quis acreditar que eram eles. O Brian é muito mais acessível que o Roger, muito mais humilde, fala muito mais do que o Roger, que quer é cervejas e ‘tasse bem. O Fernando ficou extremamente emocionado e uma das coisas que o Brian lhe disse foi ‘Se eu não soubesse onde é que está o casaco amarelo, dizia que era esse.’ E o Fernando nem quis acreditar. Deram-lhe autógrafos e tirámos a foto.” Aquele havia de ser o momento alto da vida de Fernando, que “colmatou um bocadinho a mágoa de nunca ter visto o Freddie ao vivo, apesar de ter visto os Queen todas as vezes que pôde.” Além de fazer parte da coleção, a fotografia tem outro exemplar junto à televisão da sala.
Uma das prateleiras está cheia de estatuetas e caricaturas de Freddie Mercury. “Este busto, com estes dentes, foi o último que ele comprou, e que eu não gosto. Mas ele achou tanta piada, não sei o que é que ele viu aí, se é o Freddie estar de boca aberta e ver-se os dentes. Quando esta peça chegou, ele só me perguntava ‘mas não achas tão giro?'”
E é precisamente esse busto de Freddie que ganhará uma nova vida, junto de um colecionar dos Queen também muito especial. “Prometi que devolvia esta estatueta a quem ele a comprou, a um rapaz italiano que também está doente. Falou comigo através do Facebook, a perguntar-me se podia comprar a estatueta de volta. Eu disse que sim, que lhe enviava a estatueta, que não precisava de comprar. Um dia destes dias tenho de a meter no correio e enviar de volta para Itália. Tenho só de ganhar coragem de mexer nisto, é só isso que falta”, desabafa Helena.
A petição por Fernando, que “não morreu, apenas deixou de carregar no play“
Helena Calado não tem dúvidas de que o marido era o maior fã de Queen em Portugal. “Maior fã, com toda a certeza. Maior colecionador? Não sei se mais alguém tem uma coleção como a que ele tinha. Ele tentava trocar mensagens com colecionadores portugueses, mas em Portugal, e por aquilo que ele me dizia, não havia ninguém que tivesse a quantidade, diversidade e espólio que ele tinha. Lá fora, obviamente que sim.” Mas Helena está decidida a dar um novo rumo à coleção dos Queen até ao final do ano.
“Nós chegamos aqui à sala e estamos a olhar sempre para o pai. É difícil. O Fernando dedicava muito tempo a isto, e nós ajudávamos e vivíamos isto com ele. Era a paixão dele, e nós divertíamo-nos imenso com ele com isto. Mesmo no fim, esta coleção era a força dele“, conta entre lágrimas, lembrando os filhos. “Eles quando olham para aqui, ainda não conseguem olhar com alegria, é mais dor. Tudo isto é pai, pai, pai. E eles querem o pai de outra forma, não assim. Esta, eles deixam-na para os fãs”. Helena rejeita a possibilidade de vender peça a peça, porque “isso é reviver a história e o significado de cada uma, e nem o Fernando quereria que fossem vendidas em separado”, mas que se fosse vendida a um único colecionador como um todo, faria sentido. “No limite, vou guardá-la em caixotes, porque aqui não pode continuar.”
Mas há uma nova ideia a ganhar forma. Duas amigas de Fernando, também frequentadoras de festas e encontros dos Queen, criaram uma petição para levar a coleção para Montreux, na Suíça. “Elas perguntaram-me se me importava, e eu disse que não, que não há ideia melhor, e que nada faria o Fernando mais feliz, até porque ele está lá, e ter a coleção também em Montreux faria todo o sentido”, partilha Helena. “Não será possível se não tentarmos. Tentar não custa.” E assim nasceu a petição online com o nome “We ask the city of Montreux to welcome Fernando Conceição’s Freddie Mercury collection” (em português, “Pedimos à cidade de Montreux que acolha a coleção de Fernando Conceição sobre o Freddie Mercury”).
Mas porquê Montreux? “É um dos nossos sítios preferidos, é onde o Fernando está a descansar, e espero que esteja a descansar com o Freddie. Ele sempre disse duas coisas: que queria ser cremado e que gostava de ficar em Montreux. E foi isso que nós fizemos. Assim que nos entregaram as cinzas, metemo-nos num avião e fomos. Deixámos as cinzas no lago Léman, em frente à estátua.”
“A grande maioria que conhece o Fernando acha que faz sentido e que essa é boa ideia, que é o melhor lugar para a coleção estar. Seria mudar a coleção para um país que não é propriamente barato, mas seria mudar para uma cidade que está habituada aos Queen e ao Freddie. Se houvesse impossíveis, o Fernando não tinha ali uma foto com o Brian e com o Roger”. A petição conta já com mais de 300 assinaturas, mas as organizadoras querem reunir o máximo número de assinaturas possível. O Observador tentou contactar a Câmara de Montreux, na Suíça, mas ainda não obteve qualquer resposta.
“Ele dizia que não cantava, encantava. O Fernando costumava dizer uma coisa muito engraçada: o Freddie não morreu, apenas deixou de fazer música. E quando o Fernando morreu, eu disse exatamente a mesma coisa: o Fernando não morreu, apenas deixou de carregar no play. Agora é transpor isto, esta coleção, para algum sítio onde possa continuar a ser apreciada”. Quem sabe para Montreux, cidade suíça que é de Freddie Mercury, mas que também passou a ser de Fernando Conceição.