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Do "Sába Dá Bádu" ao Tarzan Taborda: um dia inteiro a ver o Arquivo da RTP

Um homem, um filho e um site com as imagens guardadas pela RTP. Durante um dia, Pedro Vieira não fez mais nada. E quando se começa a ver uma pérola do arquivo, o efeito dominó é inevitável.

A nostalgia é um mercado comercial com provas dadas. Um mercado que se regula a si próprio e cuja mão invisível é a memória. Muito provavelmente Adam Smith não estava a referir-se às festas ao som dos A-ha ou à reedição em DVD dos “Jovens Heróis de Shaolin” quando formulou a hipótese, mas para o caso serve. A memória atraiçoa-nos, assombra-nos, e também nos dá consolo, remetendo para épocas em que não tínhamos preocupações ou declarações de IRS para entregar. E essa dimensão de consolo é muito pessoal. Cada um contribui para ela segundo as suas capacidades e ela responde a cada um segundo as suas necessidades. Mas deixemos as formulações de Marx e Smith a esta hora da manhã (são 9h43).

O que é facto é que para as gerações anteriores aos millennials, a televisão desempenhou um papel estrutural na formação das personalidades, no arrebanhar de referências pop e na construção de referências partilháveis. Dimensão pessoal e colectiva, portanto. Boa parte desse papel foi desempenhado, claro, pela RTP, que teve o monopólio da caixa colorida entre 1957 e 1992. Durante muito tempo a televisão pública ajudou a sedimentar a identidade de um país em muitos aspectos a preto e branco, mostrando-nos uns aos outros. A partir de certo momento, os pescadores de Mirandela perceberam que havia enormes chaparros que ofereciam sombra aos pastores da Nazaré, que por sua vez ficaram a conhecer iguarias alentejanas como a alheira, pelas mãos de Maria de Lourdes Modesto. Ou será tudo ao contrário? Enfim, a memória tem destes equívocos. O que é inegável é a importância da RTP na preservação e testemunho da história portuguesa dos últimos 60 anos.

Hoje, graças às maravilhas do mundo digital, já é possível consultar uma fatia do arquivo da televisão pública, disponibilizado online, e reconstituir algumas experiências gratas, bem como explorar outras novas. Ao partir para um dia na companhia do arquivo RTP o meu medo é só um: não conseguir largar o vício e deixar o meu filho abandonado e à mercê da CPCJ.

10h09: Sába Dá Bádu

Resolvi começar em tom ligeiro, explorando um programa que marcou a minha infância e parte da minha pré-adolescência, graças às reposições do “Agora Escolha”, capitaneado por Vera Roquette. O “Sába Dá Bádu” faz parte de uma bonita tradição de programas de variedades, entretanto caída em desuso e substituída por formatos importados como “Achas que sabes dançar?”, “Achas que sabes estacionar em espinha?”, “Achas que sabes preencher o anexo H da tua declaração de IRS?”, etc.

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O programa de César de Oliveira, emitido entre 1981 e 1982, era composto por momentos recorrentes – os alcoólicos “Agostinho” e “Agostinha” –, interpretações musicais, participações de convidados especiais, corpo de baile e quadros de humor de actualidade. Este autêntico potpourri de conteúdos marcava as noites de sábado e servia como elemento agregador das famílias, nomeadamente aquelas (tantas) que viviam no fio da navalha e que se reviam nos remoques à omnipresente crise no bolso dos portugueses. Afinal, não tardaria o segundo resgate do FMI.

Revejo agora o programa de 13 de Fevereiro de 1982, que conta com a participação especial de Carlos Quintas e Lara Li, e nele encontramos o personagem gago de Camilo de Oliveira, em ambiente de Casablanca à portuguesa, os risos enlatados que ainda hoje fazem escola, os vira-casacas da política e a cabeleireira Henriqueta, as escolhas coreográficas desconcertantes como aquela que rodeia o crooner Quintas de uma trupe de palhaços, capaz de provocar um ataque de coulrofobia ao telespectador mais impressionável. Por lá também anda o talento de Vítor de Sousa no registo humorístico, num sketch dedicado ao estrangulamento do SNS e aos custos exacerbados da saúde privada (o tempora, o mores), bem como a extraordinária canção “De água na boca”, que envelheceu como o vinho do Porto, interpretada em playback por Lara Li no cenário principal de “Sába Dá Bádu” que é uma espécie de Atomium de Bruxelas dos pobrezinhos.

Atenção, nada disso deslustra a presença de uma intérprete do mais alto coturno pop. Adele, rói-te de inveja. Ivone “Agostinha” Silva há-de garantir que “anda tudo a fazer pouco da gente”, pois é o vinho que vai ser exportado a granel para agradar à CEE, mais o custo da água, da Previdência e do hospital, até o preço escandaloso dos funerais que condenam um homem a ficar vivo. E assim se encerra mais um episódio de um programa muito marcado pela reacção possível à austeridade e às dificuldades económicas. Felizmente, estes são assuntos ultrapassados em 2017.

11h18: Sesta do bebé

Interrupção para pôr o meu filho a dormir. O chamado espaço para compromissos comerciais.

O primeiro episódio de "Conversa em família" é desapontante, uma vez que Marcello (o outro) estreia o seu espaço de comentário mediático num registo anti-televisivo. Mal enquadrado, dirigindo-se ao “comum dos portugueses” sem enfrentar a câmara e fazendo uso de papéis na secretária, ou seja, sem olhar o público nos olhos.

11h50: Conversa em família

Inspirado pelos deveres familiares que impuseram uma pausa neste trabalho, procuro um conteúdo do qual não tenho memória mas que me sirva como guia, como orientação para um pai em serviço a tempo inteiro. Daí a preferência por “Conversa em família”, programa de sentido único protagonizado pelo presidente do Conselho Marcello Caetano, estreado numa altura em que, aparentemente, Salazar ainda pensava estar aos comandos da Nação. Pelos vistos via pouca televisão.

O primeiro episódio de “Conversa em família” é desapontante, uma vez que Marcello (o outro) estreia o seu espaço de comentário mediático num registo anti-televisivo. Mal enquadrado, dirigindo-se ao “comum dos portugueses” sem enfrentar a câmara e fazendo uso de papéis na secretária, ou seja, sem olhar o público nos olhos. Pior. O tema principal é o orçamento do Estado, o que terá posto muita gente a suspirar por uma boa tourada ou entretém similar. Menos de um ano depois, Marcello já tinha virado o jogo. No programa de 17 de Dezembro de 1969 o presidente do Conselho está virado de frente, dono de um sorriso sibilino e sentado numa confortável poltrona. Até se lembra de dar as boas noites, coisa que não fizera na estreia, antes de fazer o balanço das últimas eleições para o parlamento. O grande problema do sufrágio, para Marcelo, passou pelas deficiências do recenseamento, que terá inflacionado os números da abstenção, e não pelo facto de vivermos à época em ditadura. Enfim, são opiniões.

Neste episódio fala-se também sobre o peso que recai sobre os ombros do governante, sobre o funcionamento de uma ONU dominada por “afro-asiáticos” hostis a Portugal e às suas colónias ou sobre os dramas do atentado da Piazza Fontana em Milão, uma tirada surpreendentemente internacionalista e convenientemente actual. O regime entrava em contagem decrescente e Marcello Caetano aproveitava a televisão para disparar em várias direcções. “Andaríamos muito mais depressa se houvesse neste país menos críticos que ficam na crítica”, afirma. Redundâncias à parte, é de realçar a sageza de alguém que decide utilizar de forma regular o meio de comunicação com maior impacto, a televisão, com o propósito de doutrinar a população. Marcello Caetano terá sido pioneiro neste aspecto, muitos anos antes dos espectáculos hertzianos de Hugo Chávez.

12h45: Almoço para todos

Apesar das dificuldades orçamentais – em 1969, como em 1982, como agora – é altura de ir preparar o repasto em família. Sopa com carne para o bebé, sopa, sandocha e laranja para o pai. Mais compromissos comerciais ao som hipotético da pasta medicinal Couto e do restaurador Olex.

14h45: Por Outro Lado

Volto ao arquivo depois do repasto e da ménage da cozinha com vontade de inéditos. Adoro “O Que Diz Molero” e os policiais de Dennis McShade. Nunca ouvi a voz do seu autor. Um par de cliques coloca-me de olhos postos no programa de entrevistas de Ana Sousa Dias, que já é deste século embora remeta para memórias mais longínquas. É o que dá consumirmos tanta informação, tantos conteúdos, tantas séries, magazines e reality shows que nos baralham o sentido do tempo. E do bom senso, também.

Dinis Machado

Em 2001, Dinis Machado sentou-se naquela espécie de labirinto de espelhos feito estúdio de televisão. O genérico enfeitado a vozes líricas esbarrava de frente com todos os estereótipos da cultura. Mais especificamente com a cultura da RTP2, tantas vezes glosada e gozada. Acontece que “Por Outro Lado” arrancou muitas vezes o melhor dos entrevistados, graças à condução da jornalista. Dinis Machado abre o livro do desassombro e fala sobre si. Das suas várias carreiras, entre jornalista e malandro, lisboeta e cinéfilo. Dos policiais escritos a metro e da vida passada praticamente na íntegra no Bairro Alto, lugar de “todas as excursões”. Do absentismo escolar à conta do cinema às alcunhas mais ou menos biográficas. Dos livros alugados na Barateira, hoje desaparecida, à escrita do Molero, cujas provas foram surripiadas na editora pelo furacão Luiz Pacheco. “Por Outro Lado” era uma forma de conhecer vidas preenchidas e a de Machado foi uma dessas. Cheia de obstinação, peripécias e do “trabalho de estiva” da escrita. Palavra de autor. De Mister Deluxe. De Molero.

16h00: Vieira, Vida Selvagem

Hora de entreter o miúdo com as minhas imitações sofríveis de animais. Leões, porcos, cães, mochos, vacas, ovelhas, galinhas e macacos. Hei-de propor o formato a uma estação de televisão.

17h45: Belenenses vs. Padroense em Andebol de Onze

Uma incursão ao desporto para ver os melhores momentos de uma modalidade que desconhecia – o andebol de onze – disputado num campo pelado, em ritmo relaxado e com direito a contingente policial no recinto. Policiamento de fazer inveja aos adversários do Canelas 2010.

Ah, o Belenenses venceu a contenda por dois golos de diferença.

Em jeito de build-up para a presença de Francisco I, um revisitar em câmara lenta do atentado cometido sobre João Paulo II pelo padre espanhol Juan Fernandez Krohn. Em visita a Fátima no 65º aniversário das alegadas aparições, o papa então em funções não ganhou para o susto. 

18h00: Sesta do bebé, segunda parte

Tudo fica mais fácil e livre de birras quando conseguimos entoar o Brahms em modo de embalar. Não estou a gozar.

18h19: Um dia com… Tarzan Taborda

Pavimento de paralelipípedos. Tacões, calças boca-de-sino e pernas ao léu. Albano Taborda Curto Esteves dando de comer a dois pombos. Assim se inicia mais um episódio do programa de actualidades “Um dia com…”. O programa de 12 de Abril de 1973 é dedicado ao atleta de luta livre e recuperador físico que ficaria para a história como Tarzan Taborda. Uma figura que chamaria a atenção das gerações mais novas alguns anos mais tarde, quando se tornou comentador de wrestling numa estação de televisão concorrente da RTP.

Mas regressemos a 1973. Imagens de cartazes alusivos a combates. Tarzan, “from the wilds of Africa”, combate contra um britânico. Imagens de gente a exercitar-se num ginásio. Há um homem que levanta pesos. Há uma criança com uma espécie de calção leopardo (não perguntem). “Pode-se dizer que comi o pão que o diabo amassou” são as primeiras palavras de Albano. A partir daí desenrolam-se largos minutos de autobiografia, a espaços em close-up, compondo o retrato da vida de alguém que “queria ser cada vez maior”.

Tarzan Taborda

Começou no futebol mas uma lesão acabou por aproximá-lo da luta greco-romana. Devido ao físico de que dispunha, chegou a ser alcunhado de “pré-histórico”. Tarzan dixit. Treinos, viagens, contratos assinados com empresários de ballet. Ginásios e corpos moídos. A estreia como semi-vedeta em Paris. Os espectáculos de exibição em modo pára-quedista e a interrupção abrupta de uma promissora carreira no cinema (“já estava a deixar de ser só stuntman”) à conta de um acidente de automóvel. O regresso à luta e a reconversão de carreira em modo fisioterapeuta. Será graças a essa mudança que Albano posa para a câmara com um estetoscópio no bolso. Uma espécie de doutor Tarzan, vá. “Eu penso já ter feito coisas muito engraçadas em clientes meus” graças à “fisiotrápia” (sic). Não duvidamos, Albano. E quem diz clientes, diz telespectadores.

19h20: Conflito entre Rosa Mota e a Federação

Agora que a cavalaria chegou, no caso a mãe do bebé, posso concentrar a minha atenção naqueles aperitivos que antecedem o jantar e que espelham aquilo que Portugal foi, é, será. Depois de se sagrar campeã olímpica em Seoul – coisa pouca, tendo em conta a abundância de medalhas de ouro no palmarés do país – um novelo burocrático opõe Rosa Mota à Federação Portuguesa de Atletismo dirigida por um tal Henrique de Melo (adivinhem quem irá ficar para a história).

A atleta tinha manifestado a intenção de correr a Maratona de Osaka em 1990 mas o convite formal da Federação não chegou, pelo facto de Rosa não estar inscrita na estrutura. Logo, Rosa Mota decidiu corrê-la e vencê-la, arrebatando mais um troféu, e a Federação ficou a fazer contas aos regulamentos. Uma das preocupações de Henrique de Melo era, e passo a citar, “a atleta estar a correr com a camisola nacional”. Ouro, caros amigos. Puro ouro.

19h45: Atentado contra João Paulo II em Fátima

Em jeito de build-up para a presença do Papa Francisco, um revisitar em câmara lenta do atentado cometido sobre João Paulo II pelo padre espanhol Juan Fernandez Krohn. Em visita a Fátima no 65º aniversário das alegadas aparições, o Papa então em funções não ganhou para o susto. E não estamos a falar do preço dos alojamentos.

20h30: Jantar em família

Ou melhor, o bebé come primeiro, executando a sua técnica de rega de aspersão, e os pais jantam de seguida, devidamente brindados com nódoas. Em breve, 2/3 da família estará a dormir a sono solto.

22h00: Grande plano de… Nuno Bragança

Documentário sobre a vida e obra (formulação clássica) do escritor Nuno Bragança, com excertos de uma entrevista do Omãi Qe Dava Pulus à RTP e depoimentos de outros autores e amigos como Nuno Teotónio Pereira, Pedro Tamen ou Maria Belo. A profunda originalidade, o retrato da boémia e as preocupações do quotidiano espelhadas na literatura. Os dramas interiores de alguém privilegiado que vivia numa sociedade injusta, para usar a abordagem de Alçada Baptista. À parte o privilégio de lermos de perto uma série de intelectuais da nata portuguesa, 20 valores para a toalha de crochet de Maria Velho da Costa. Adereços de televisão que já não se fazem.

A partir de agora, memórias, momentos de glória e disparates à nossa moda estão cada vez mais disponíveis online. E o acervo disponibilizado vai aumentar de forma considerável até final do ano. Obrigado, serviço público. Obrigado, internet.

23h30: Portugalmente UHF

Guardei o bife do lombo para a ceia. Num episódio do “Portugalmente”, magazine que deu voz a figuras de referência pop e a ilustres desconhecidos da sociedade portuguesa, António Manuel Ribeiro, líder histórico dos UHF, retrata-se. Mas nunca se retracta. Dono de um amor próprio invejável, o Jim Morrison português inicia o episódio com vista para o mar e discorre sobre a história da banda, sobre o terror que é estar à espera no camarim, sobre a droga e outros excessos, como as campanhas feitas com Mário Soares. Os projectos para uma ópera rock, a escrita de uma autobiografia, a entrada do seu próprio filho nos UHF, os dramas do pai ausente. Numa esplanada da Caparica diz a hoje mítica frase “Quero hambúrguer simples com cebola e água natural”. À saída canta “This is the end”, claro. Mas era mentira. 18 anos depois, os UHF ainda andam por aí.

00h05: Ressaca

Quando mergulhamos no vício do arquivo RTP, difícil mesmo é parar. Nos interstícios desta viagem de um dia, ainda espreitei a chegada a Portugal de Humberto Delgado, a entrevista com a Xana dos Rádio Macau, a visita de Isabel II a Lisboa, a emissão experimental na Feira Popular, as aulas da telescola em Paços de Ferreira. A partir de agora, memórias, momentos de glória e disparates à nossa moda estão cada vez mais disponíveis online. E o acervo disponibilizado vai aumentar de forma considerável até final do ano. Obrigado, serviço público. Obrigado, internet.

P.S. 00h30: Declarações de Pinheiro de Azevedo

“Fui sequestrado, já duas vezes. Já chega, não gosto de ser sequestrado, é uma coisa que me chateia, pá”. Quem nunca?

Pedro Vieira é guionista, pivô de televisão e ilustrador relutante

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