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Lançado em Portugal no passado mês de julho, pela Contraponto, “Rita Lee – Uma Outra Biografia”, a segunda autobiografia de Rita Lee, relata os dois últimos anos da cantora brasileira, depois de ter sido diagnosticada com cancro do pulmão.
Antes de ter sido lançado no Brasil a 22 de maio, Dia de Santa Rita de Cássia, data em que, por opção, Rita Lee festejava o seu aniversário, a sua autobiografia já estava entre os livros mais vendidos da pré-venda da Amazon. A rainha do rock brasileiro tinha morrido nesse mesmo mês, a 8 de maio, e o livro era o último presente para os fãs.
Em 2016, a cantora lançara uma outra autobiografia, “Rita Lee – Uma Autobiografia” (editada em Portugal um ano depois pela Contraponto, com prefácio de Rui Reininho), e pensava que não ia escrever mais nada. “O livro marcava, de certo modo, uma despedida da persona Rita Lee, aquela dos palcos, uma vez que tinha me aposentado dos shows”, lê-se na primeira página. “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta.”
Infelizmente voltou à escrita pelos piores motivos. “É aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica.” Em 2021, em plena pandemia, descobriu que tinha cancro do pulmão e decidiu partilhar o seu final de vida num livro onde nunca perde o sentido de humor.
Tal como na autobiografia anterior, o jornalista Guilherme Samora, editor do livro e amigo de Rita Lee, vai comentando as páginas de “Rita Lee: Outra Autobiografia” com notas com curiosidades e dados históricos. Na sua página de Instagram, Samora sublinha num post que neste último livro a cantora foi “generosa para chuchu”: “Ela divide tudo o que passou nesses últimos anos com a gente.”
Chamou ao seu tumor Jair
Em abril de 2021, quando descobriu que tinha cancro do pulmão, Rita Lee pesava 37 quilos. No livro, relata as consultas e os procedimentos médicos ao pormenor, das biópsias aos tratamentos, e conta como os médicos descobriram um caroço do tamanho de um berlinde. “Passámos a chamar o quisto cancerígeno Jair, em homenagem ao maior inimigo do Brasil no momento”, escreve. “A ideia é que só a quimio daria conta. Os outros pontos eram menores que Jair, então se conseguíssemos o impeachment dele, os ‘filhos’ também sumiriam do mapa.” Há mais referências a Bolsonaro no livro, o “Bozo”, nomeadamente à maneira como o ex-presidente brasileiro, “um palhaço sem graça”, escreve Rita Lee, lidou com a pandemia, levando o país “para o cu do mundo em matéria de destruição”.
Teve uma recaída
Depois de saber o seu diagnóstico, Rita Lee, que estava há “quinze anos limpa”, sem tomar drogas, conta que teve uma recaída e recorreu a medicamentos “tarja preta” (opioides) às escondidas das enfermeiras do hospital. Escondeu-os no nécessaire e tomava-os na casa de banho. “Enchia a cara de tarjas e saía da toalete mais calminha. A malandragem só durou um dia porque elas descobriram o esconderijo e adiós chapação.” A cantora contou que passava por muitas situações desesperantes: “crises de pânico intermitentes, abstinência de cigarro e câncer no pulmão”. Tudo isto a juntar à pandemia, que na época já tinha matado “500 mil brasileiros”.
Dedica um capítulo inteiro a Gal Costa
Rita Lee homenageia Gal Costa no capítulo “A Voz”, quase no final da sua autobiografia. Uns dias antes de Gal morrer, a 9 de Novembro do ano passado, Lee pensou escrever um e-mail à “garota da voz de veludo”, com quem já não falava “havia tempo”. Ficou em choque quando soube da notícia da morte. Conheceram-se nos anos 60 e cantaram juntas pela primeira vez nessa altura, ainda na época de Os Mutantes. A cantora conta no livro alguns flirts com Gal, um no lobby de um hotel em Nova Iorque – a namorada de Gal “não achou graça – e outro num concerto no Maracanãzinho em 1987, quando cantou “Me Recuso” para Gal, na plateia.
Pensou na eutanásia
No capítulo “O Tratamento”, Rita Lee descreve uma conversa com o médico, dr. Óren, “big boss da oncologia”, sobre fazer radio e quimioterapia. “Estavam fora de questão”, disse-lhe, principalmente depois do “trauma” de ter visto a mãe sofrer com esses tratamentos quando teve cancro. “Disse [ao médico] que minha vida tinha sido maravilhosa e que por mim tomava o ‘chazinho’ da meia-noite para ir desta para melhor.” Queria ter uma “passagem digna, sem dor, rápida e consciente”, descreve. “Sou totalmente favorável à eutanásia. Morrer com dignidade é preciso.” A cantora conta também que só aceitou fazer os tratamentos por incentivo dos filhos e do marido, Roberto de Carvalho.
Fumava três maços e meio por dia
Rita Lee confessa na autobiografia que, durante a pandemia, “a noia existencial e as notícias” levaram-na a fumar três maços e meio por dia – antes fumava dois maços. Era o último vício que lhe faltava deixar para se considerar “realmente limpa”. A cantora fumava desde os 22 anos e o tabaco era um “prazer”, “um velho amigo” que a entendia e só deixou no hospital. Diz não querer tornar-se “garota-propaganda antitabagista com discurso inútil”, mas dá um conselho a quem quer acabar com um vício: “o primeiro passo é querer de verdade e se concentrar no seu mind power.”
Rapou o cabelo e ficou pela primeira vez sem franja
“É a mesma sensação de estar pelada na Avenida Paulista e todos rirem de mim.” É assim que Rita Lee descreve ter ficado pela primeira vez sem franja, depois dos tratamentos. A cantora conta como ficar sem cabelo foi desafiante, um “look aniquilador de autoestima”, escreve. Optou por usar um turbante, “à la Simone de Beauvoir”, como na fotografia da capa do livro. Decidiu rapar o cabelo com “máquina zero” para não ver tufos de cabelo a cair, mesmo “encarando a feiura de parecer uma vampira”. Aos 20 anos já queria rapar a cabeça, mas a família convenceu-a a não o fazer, em troca de umas aulas de desenho numa universidade brasileira. No hospital, pediu a uma enfermeira negra se lhe podia ensinar a pôr um turbante e se isso seria “apropriação cultural”: “Ah, você pode.”
Conta a história de um fã que pensou suicidar-se
Os conselhos não se ficam pelo tabaco. No capítulo “A Garotada”, Rita Lee assume o papel de “Vovó Rita”, palavras suas, e escreve para os seus fãs mais jovens. Conta a história de um rapaz que lhe enviou uma carta, “rejeitado pela família por ser gay”, que lhe disse que pensou suicidar-se. “[Disse] que ao ouvir as minhas músicas decidiu ficar.” A cantora escreve que ser jovem hoje é ainda mais complicado e que lhe apetece dizer um “monte de clichê”: “Diria que não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente, que o que é normal para uma aranha é o caos para uma mosca, (…)”.
Orgulha-se de ser campeã das músicas censuradas na ditadura
Em 2021, Rita Lee teve direito a uma exposição sobre a sua vida e carreira, “Rock Exhibition Rita Lee”, no Museu da Imagem e do Som, em São Paulo. Por ordens médicas, a cantora só visitou a exposição numa segunda-feira, dia em que não estava aberta ao público. “Fiquei sabendo que a garotada está comparecendo em peso e que a sessão que mais gostam é a Rita Perigosa, sobre a minha prisão e minhas trocentas músicas censuradas pela ditadura”, escreve. Foi nessa altura que se apercebeu de que era a artista brasileira com mais músicas censuradas na época da ditadura. “Eu crente que fosse Chico Buarque”, confessa. “Fico lisonjeada de ter essa marca no meu currículo. (…) Tenho a impressão de que me enxergavam como uma mulher perigosa que atentava contra o pudor exasperado do patriarcado.”
Já lambeu uma maçaneta da porta e a culpa foi dos Beatles
Na exposição de 2011 sobre a cantora, os fãs de Rita Lee podiam deixar-lhe mensagens. Recebeu caixas e caixas de declarações de amor, mensagens de força, poemas, desenhos de crianças que a pintaram como super-heroína dos animais, pedidos para se candidatar à presidência do Brasil e até um pedido de casamento de “um jovem gay”. Um dos fãs confessou ter lambido uma das suas roupas que estava na exposição. “Fofo, mas para quê lamber uma roupa minha?”, pergunta. Na verdade, e como se lê numa nota do editor no livro, a própria cantora chegou a lamber em 1960 a maçaneta de uma porta na editora Apple, em Inglaterra, por onde os Beatles tinham saído há poucos minutos.
A última música que compôs foi para Elza Soares
Pouco antes do diagnóstico de cancro, Elza Soares pediu a Rita Lee para lhe escrever uma música. A cantora disse que a letra de “Rainha Africana”, do álbum póstumo de Elza Soares “O Tempo da Intolerância”, lançado este ano, demorou “dez minutos” a fazer e a demo demorou um dia a gravar. “Lembro que tive de me esforçar mais para cantar, coisas do tumor que já estava ali”, conta Rita Lee. Assim que ouviu, Elza Soares agradeceu com um áudio: “Te adoro, criatura!”. A cantora conta que Elza foi das primeiras a “dar força” quando soube que estava doente. A música acabou por ser a última que compôs e uma das últimas gravadas por Elza Soares, que morreu em janeiro do ano passado.