Quando visitou a casa da escritora dinamarquesa Karen Blixen, Annabelle Hirsch deu por si fascinada com um monte de panelas de cobre num canto da cozinha. “Tentei imaginar o modo como aquela mulher pequena e magra as tinha manuseado, como se tinha sentido, em que teria pensado”, escreve em “Uma História das Mulheres em 101 Objetos” (Planeta de Livros, 2024). Essa reflexão ganhou raízes, estendeu-se a objetos semelhantes do quotidiano, aqueles que, ao contrário dos monumentos erguidos às grandes conquistas, não têm lugar na História do mundo. Aqueles que ficam reservados ao domínio do íntimo, tradicionalmente feminino e, por isso, historicamente desconsiderado.
A ideia tomou forma. Enquanto pesquisava para o livro, em finais de 2020, partilhou à mesa de um jantar que planeava contar a história das mulheres através de objetos. “Como assim”, perguntou uma curiosa. Antes que Hirsch pudesse responder, um homem interrompeu-a. Bufou: “Mas as mulheres são objetos!”
Saltemos agora no tempo para fevereiro de 2024. A escritora senta-se à frente do Observador num cadeirão confortável, na entrada do Hotel Heritage, na Avenida da Liberdade. Questionada sobre esse momento, ri sem vestígios de amargura. “Não sei como são os homens portugueses, mas os franceses são terríveis”, comenta. “Foi absurdo. Agora estou muito satisfeita, porque o livro foi traduzido em 10 países.”
Quem é a autora?
↓ Mostrar
↑ Esconder
Annabelle Hirsch nasceu em 1986. Tem raízes alemãs e francesas. Trabalha como jornalista freelancer para o Frankfurter Allgemeine Sonntagszeitung, o Frankfurter Allgemeine Zeitung, o Die Tageszeitung, o ZeitOnline e para várias revistas. É também tradutora literária. Vive entre Berlim e Roma. Além de Uma História das Mulheres em 101 Objetos, assinou também Der Teller, sem tradução portuguesa.
Pegou nesse momento e tornou-o seu. Está na introdução do livro. Foi grosseiro, mas sobretudo irónico. Breve, mas carrega séculos de um pensamento patriarcal, condescendente, depreciativo. Tem subjacente, escreve Hirsch, o facto de a História ser muitas vezes contada como se as mulheres “não fossem mais influentes e importantes do que uma jarra colocada a um canto”.
Em “Uma História das Mulheres em 101 Objetos”, propõe uma viagem pelo passado através de um gabinete de curiosidades, com relíquias que vão da pré-História aos dias de hoje, das pinturas rupestres aos cabelos cortados durante a Revolução das Mulheres no Irão. A escolha subjetiva resultou de uma pesquisa exaustiva que homenageia o íntimo, a rebeldia, as lutas, injustiças e conquistas das mulheres comuns, mas também daquelas que têm o nome gravado na História.
O que a inspirou a escrever este livro?
A história das mulheres sempre me interessou. Como jornalista, entrevisto e escrevo principalmente sobre mulheres. Depois do movimento Me Too, com esta nova vaga de feminismo, surgiram tantas discussões, tantos livros sobre feminismo e sobre a história das mulheres, e senti que tendemos a contar a história sob uma lente ou de vítimas, ou de mulheres poderosas, cool, aguerridas.
Faltava outra perspetiva?
Senti que ambas as perspetivas estavam erradas, de certa forma. Apercebi-me de que sabia muito sobre o século XIX, mas não sobre outros tempos. Comecei a pesquisar um pouco e quis contar uma história das mulheres não como vencedoras ou perdedoras, mas como algo mais complexo, mais humano.
Como é que os objetos tornam isso possível?
Através dos objetos, conseguimos aproximar-nos das pessoas. Porque quase todos estes objetos são parte do espaço íntimo que, durante muito tempo, foi o único espaço onde as mulheres podiam ter algo a dizer. E, com um objeto, conseguimos contar uma história concreta, privada, íntima e, ao mesmo tempo, sobre o que era ser mulher em geral durante aquele tempo. Os objetos permitiram-me ter uma abordagem muito flexível para contar a história porque, de outra forma, teria de me limitar a apenas um tópico. Os objetos deram-me um espólio de ocasiões para falar sobre o que é ser mulher, a sexualidade, a pintura, a literatura, a ciência, pessoas e lugares.
Encapsulam várias dimensões da experiência feminina.
Sim. E há algo de meta nesta ideia, porque tal como as mulheres, os objetos são historicamente o que tende a ser desconsiderado, não é? Tendemos a olhar para os monumentos e não para as pequenas coisas do quotidiano. A vida quotidiana é muito interessante e tão subestimada, também por ser um espaço feminino. Tendemos a acreditar que o importante é o espaço público, que é muito importante, mas não exclusivamente. Falar dos objetos é falar de repetição, não apenas porque se relacionam com coisas em particular, mas também porque o fazem numa escala mais pequena.
De repetição?
A repetição é o que as mulheres sempre fizeram. Simone de Beauvoir disse que a vida feminina pode ser horrível, porque é uma repetição constante de coisas aborrecidas. Mas, de algum modo, essas coisas aborrecidas são as coisas de que somos feitos. Por outro lado, como disse, são as pequenas vitórias. Se falarmos apenas das pessoas que realmente mudaram as coisas, isso acontece talvez uma vez em cada século. Mas, para chegarmos a esse ponto, houve muitas pequenas mudanças que abriram caminho, que o tornaram possível. É interessante contarmos as duas perspetivas. Também escrevo no livro sobre mulheres em particular, que foram poderosas e extraordinárias, mas é bom termos um pouco dos dois lados, porque acredito que isso se aproxima mais daquilo com que a realidade se pareceu.
Teoriza que a história é tradicionalmente contada através de conquistas territoriais, conquistas dos homens que iam para a batalha. E, aqui, propõe uma perspetiva talvez mais humana, que se prende mais com conquistas sociais e pequenas vitórias, que muita vezes são ignoradas.
É exatamente isso. Porque senti que, mesmo quando contamos a história das mulheres, contamo-la através de um prisma muito masculino, de que o que é importante é conquistar e ter poder. Isso também é verdade, mas não é a única verdade, até porque faria de todos nós perdedores, não? Por isso, sim, é sobre essas pequenas coisas que fazemos todos os dias e que, de facto, são as que importam.
Na introdução, também conta que tentou explicar o teor do livro a uma mulher mas que, antes de poder terminar, foi interrompida por um homem.
(Risos) Foi terrível. Não sei como são os homens portugueses, mas os homens franceses são terríveis. Disse-me que as mulheres são objetos, de uma forma tão depreciativa e totalmente condescendente. Mostrou tanta falta de originalidade, pensar que há apenas uma forma de contar as histórias. Foi um momento engraçado. Pensei imediatamente: Isto tem de estar no livro, porque foi absurdo. Agora estou muito satisfeita, porque o livro foi traduzido em 10 países.
Por que dedicou o livro à sua mãe?
Porque fui muito inspirada pela minha mãe e pela minha avó, que nasceu na Bretanha francesa, numa pequena vila piscatória. Na cultura celta, as mulheres são muito fortes, mesmo que não tenham consciência disso. A minha avó era uma dona de casa tradicional, mas ao mesmo tinha um gosto muito particular e era muito forte. E a minha mãe… Penso que não se definiria como feminista, mas enquanto eu estava a crescer, na Alemanha, durante os anos 1990, era a única criança na escola que tinha uma mãe solteira. A minha mãe era a única que trabalhava. E eu tinha muito orgulho em como ela vivia de facto o feminismo, mesmo que sem essa consciência. Penso que não se vê como alguém forte, mas é-o, verdadeiramente. E estou-lhe muito grata por não me ter imposto uma única forma de ser mulher. É muito complexa, muito humana, muito frágil e muito forte, uma mistura de todas essas coisas. Isso inspira-me muito.
Com que objeto contaria a história da sua mãe?
Provavelmente um carro, porque a minha mãe esteve sempre na estrada. Quando tinha 22 anos, comprou um carro e foi para o exílio na Alemanha, por nenhum motivo em particular. Desde que eu era criança, viajávamos regularmente de carro entre Munique e a Bretanha, que, de certa forma, parecia o outro lado do mundo, e íamos num carro francês horrível. Dediquei-lhe o livro porque os objetos que escolhi são muito franceses, embora tenha crescido na Alemanha. E sou-lhe também muito grata por me ter transmitido tanto da cultura francesa. Daqui a uns dias, vai conduzir até minha casa, em Itália.
Assinou um artigo no The Guardian sobre o batom vermelho da sua avó e como esse objeto já carregou diferentes simbolismos.
A minha avó era uma mulher do seu tempo, com os seus conjuntos de vestir e os seus lábios vermelhos. Nunca saía de casa sem pôr batom. Sempre senti fascínio por isso. Para a sua geração, o batom era uma forma de corresponder aos padrões. Não era, de todo, um símbolo de rebelião, como tinha sido anteriormente, nos anos 1920, quando a ideia de uma mulher ter os lábios pintados de vermelho era arrojada. E a boca é o sítio de que, de certa forma, os homens podem ter medo, porque é uma ferramenta que temos para nos expressarmos. Durante muito tempo, esses lábios vermelhos eram como dizer: Vamos fazer barulho, vamos dizer o que queremos. Para a geração da minha avó, eram totalmente o oposto, eram como uma máscara social, uma convenção a que as mulheres se adaptavam. Pareceu-me muito interessante a noção de como uma coisa banal diz tanto sobre as várias correntes da história.
Os objetos vão tomando novos simbolismos ao longo do tempo.
Aconteceu o mesmo com os corpetes. Conta-se a história de como Coco Chanel libertou as mulheres, porque aboliu o corpete. E isso é verdade, mas também não o é. Porque a ideia do corpete começou por ser algo que acentuava o poder feminino. Mais tarde, tornou-se algo que tornava as mulheres fracas e pequenas, sentadas sem respirar. Gostei de observar como um objeto pode contar a história de como as coisas evoluíram, sobre as coisas que foram sendo exigidas às mulheres.
Como o Tupperware, que é um dos objetos que incluiu no livro.
Sim, o Tupperware é associado às mulheres que passavam o dia a cozinhar e a fazer tudo certinho em casa. Numa primeira análise, parece até algo anti-emancipação. Mas é a história de uma mulher de negócios muito forte [Brownie Wise, célebre vice-presidente da empresa na década de 1950], que teve a ideia brilhante das Tupperware Home Parties e encorajou outras mulheres a terem uma ocupação. Foi uma pequena vitória. Não estamos a falar de mulheres que abandonaram a cozinha e começaram a viver loucamente. Ficaram na cozinha, mas encontraram uma forma de fazer o seu próprio dinheiro. Acho muito interessante esta ideia de derradeiro empoderamento. Muitas mulheres não queriam deixar a vida toda para trás para serem loucas e livres. Se lhes dissessem que a emancipação só acontecia se deixassem o marido, a casa e se fizessem à estrada, elas não quereriam fazê-lo. Gosto muito desta ideia, de como [Brownie Wise] fortaleceu as mulheres dos subúrbios, muitas delas extremamente deprimidas e sem um propósito. Deu-lhes a possibilidade de serem elas mesmas, mas ocupando o espaço onde queriam manter-se. E também é inteligente, porque não assustava os homens (risos).
O alfinete de cabelo também tinha uma certa dualidade no início do século XX.
Foi uma das coisas que descobri enquanto pesquisava para o livro. Não fazia ideia de como era difícil para as mulheres frequentarem o espaço público em 1900. O alfinete de cabelo tornou-se uma arma para se defenderem do assédio dos homens. E é interessante porque há alguns anos, em França, houve um debate público sobre os piropos, sobre o que fazer em relação aos homens que dizem o que querem, que assediam na rua, porque muitas mulheres não se sentem seguras, ainda hoje, no espaço público. De certa forma, é engraçado perceber que já era uma discussão em 1900, embora também seja deprimente perceber que não evoluímos assim tanto. O contexto mudou, mas nada mudou. O que senti durante a pesquisa foi que podíamos falar com as mulheres de 1900 e provavelmente, até certo ponto, partilharmos as mesas experiências.
Originalmente, o último objeto era o “pussyhat”.
Comecei a escrever o livro em finais de 2020 e senti que 2017, com a marcha das mulheres em Washington e o movimento Me Too, tinha sido o último grande acontecimento para a luta das mulheres. Mesmo que, pessoalmente, odeie esse objeto — acho-o muito feio —, está em museus e é considerado um símbolo de mudança. Gostei também que seja uma espécie de final aberto, porque ainda não sabemos que efeito real teve o Me Too, provavelmente só o saberemos daqui a 30 anos. Ficou como uma espécie de ponto de interrogação, sobre algo que ainda está a decorrer.
O livro é contado de uma perspetiva muito ocidental.
Mantive o livro muito ocidental porque não queria falar de coisas sobre as quais não tenho experiência, senti que seria um cliché e que não seria bom. É muito ocidental, mesmo que me arrependa disso, porque não queria falar de coisas a que não me posso associar.
Por que acabou por incluir o 101.º objeto [pedaço de cabelo das mulheres da revolução feminina no Irão]?
Quando começámos a trabalhar na edição inglesa, no outono de 2022, começou a revolução feminina no Irão, depois da morte de Mahsa Amini. Senti que era importante falar sobre isso, mesmo que não saibamos ainda o que vai acontecer no futuro, sabemos que vai haver um depois. Penso que é um final muito bom, porque abre-se a outro espaço cultural, mas mantém-se em aberto. O meu marido disse-me sempre que devia incluir um véu no livro, que seria cobarde não o fazer. Mas eu não queria fazê-lo, não queria falar sobre os véus em França, é um assunto muito sensível e eu não saberia posicionar-me em relação a isso. Mas, com o pedaço de cabelo das mulheres que protestaram no Irão como último objeto, sinto-me bem, porque me tocou profundamente e porque fiquei tão impressionada com a coragem daquelas mulheres e homens, com as pessoas que mostraram que o movimento não era sobre direitos das mulheres, porque os direitos das mulheres não são particulares. São direitos, como todos os outros por que lutamos.