Rabanadas, fatias douradas, fatias paridas ou fatias de ovo — consoante a região geográfica — são fatias de pão embebidas em água, chá, leite ou vinho, mergulhadas numa calda de açúcar, assadas no forno ou fritas em óleo, azeite ou banha de porco e servidas polvilhadas com açúcar e canela. “A primeira receita conhecida é da autoria de Marcus Gavius Apicius, um gastrónomo romano do século I”, quem o diz é João Faria, presidente da Confraria da Rabanada, criada em 2019.
“Sempre gostei muito de rabanadas, adorava as da minha avó que as fazia em vinho do Porto, é uma memória de um sabor que ainda não voltei a recuperar porque não é assim tão comum encontrar. Passavam sempre pela minha mesa de Natal e quando as encontrava na carta de um restaurante pedia-as como sobremesa, mesmo fora do período de festas”, explica o foodie portuense, que hoje se dedica à divulgação destas fatias, que até evitam o desperdício de pão, de norte a sul do país.
Tudo começou quando num trabalho como crítico gastronómico provou a rabanada de inspiração basca assinada pelo chef Vasco Coelho Santos, no Euskalduna Studio, que junta pão de regueifa, uma mistura de leite, ovos e natas, uma fritura em manteiga e uma bola gelado de queijo da Serra. “Aquilo emocionou-me, tinha o equilíbrio perfeito de temperaturas, texturas e sabores. Ao escrever a crítica foi a primeira vez que me auto censurei, ainda que o texto tenha sido entregue de forma emocional, retirei algumas terminologias que se calhar eram excessivas, mas que realmente representavam bem aquilo que sentia. Foi a melhor rabanada que provei, a seguir à da minha avó”, recorda.
João Faria fez questão de partilhar aquela experiência gastronómica nas redes sociais e entre conversas e comentários surgiu a questão: e que tal criar uma confraria da rabanada? A ideia ficou a marinar na cabeça do foodie, que rapidamente percebeu o seu potencial. “Percebi que podia fazer sentido, primeiro há confraria para tudo, até há uma confraria do nabo, depois há rabanadas que são servidas o ano inteiro, mas as pessoas não pensam nelas o ano inteiro, por isso achei que existia um trabalho a ser feito.”
No início de 2019, depois de ultrapassados alguns processos burocráticos, nasce a Confraria da Rabanada com o objetivo de divulgar a iguaria, assumir o seu consumo o ano todo e explorar as suas mais diversas receitas e versões. Para o presidente não há limites na confeção ou empratamento de uma rabanada, que até pode ser apresentada em versão espuma, salgada ou vegetariana, e defende que é necessário usar “tudo o que a contemporaneidade nos dá”, da criatividade às novas técnicas culinárias, para trabalhar este objeto gastronómico. “Só reinventado é que vamos conseguir perpetuar no tempo a sua ideia e receita original”, sublinha.
Para os cerca de 40 confrades, entre chefs, empresários ou advogados, admitidos apenas por convite, há uma quota de 60 euros anuais, mas também se geram fundos próprios com jantares temáticos a várias mãos, workshops e outras iniciativas. A mais recente foi a criação de um roteiro de 19 restaurantes, situados no Porto e arredores, onde a rabanada está presente na carta o ano todo. “Existem muitos espaços tradicionais que já tinham esta oferta e fazia sentido agregar todos eles num mapa, por outro lado sentimos que muitos restaurantes de autor têm colocado rabanadas na carta por influência do nosso trabalho”, revela João Faria, acrescentando que a entronização da confraria será em breve.
No próximo ano, a Confraria da Rabanada quer fazer um roteiro semelhante numa versão lisboeta, compilar algumas receitas de rabanadas num e-book e desenvolver um trabalho histórico e de investigação sobre a história da rabanada em Portugal.
Há 50 anos que no Antunes as rabanadas são moldadas à mão e regadas com uma calda especial
Maria Luísa Teles Pinheiro tem 78 anos e é o rosto do Antunes, um dos restaurantes mais antigos e emblemáticos do Porto, especialista na arte de bem servir e na cozinha tradicional portuguesa. Há 50 anos que a rabanada integra a lista de sobremesas, está disponível o ano todo e a receita chegou pela mão do seu marido. “Ele andou na tropa na Póvoa de Varzim e aprendeu lá a receita da típica rabanada poveira. Trouxe-a depois para cá e começou a replicá-la no restaurante, juntando alguns pormenores para aprimorar o prato”, conta a responsável ao Observador, acrescentando que depois da morte da sua cara metade ficou responsável por assegurar que a receita se manteria intocável.
Maria Luísa garante que fazer a famosa rabanada à Antunes “tem muito que se lhe diga” e lamenta que já não a consiga confecionar. “Magoei-me no pulso e como é tudo feito à mão agora só ajudo.” Há segredos que não são revelados, mas tudo começa no pão, um molete [pão pequeno de trigo] com pelo menos um ou dois dias de vida. Depois de aparado com uma faca pequena, para ficar mais regular e a calda ser melhor absorvida, é mergulhado numa tigela com leite meio gordo, açúcar branco e ovos bem batidos.
“É um trabalho que requer paciência, moldamos o pão com as nossas mãos, porque medimos melhor a força, e estamos sempre em contacto com ele para não se desfazer. Não pode ficar demasiado mole nem demasiado espremido, a rabanada no fim tem de ficar húmida e bonita”, explica Nuno Fernandes, que de pé atrás do balcão repete o processo ao longo de mais de uma hora. As fatias de pão embebidas no preparado ficam amarelas por causa da grande quantidade de ovos, são distribuídas por um tabuleiro e têm que ser fritas imediatamente. “Mesmo na fritura há sabedoria porque temos de variar a temperatura umas três ou quatro vezes”, avisa Maria Luísa, a caminho da cozinha, onde já está o óleo a ferver.
Ainda quentes, as rabanadas descansam e arrefecem numa grelha redonda, onde todo o excesso de gordura é escorrido, sendo depois servidas individualmente polvilhadas com açúcar e canela em pó. Para os mais doceiros, a rabanada do Antunes chega à mesa acompanhada por uma garrafinha de vidro com uma calda especial. “O nosso molho é feito com açúcar, canela em pó e sumo de laranja, fervemos tudo até ficar cremoso e depois coamos o preparado”, adianta Maria Luísa.
Da cozinha do Antunes saem entre 60 a 100 rabanadas por dia, a 1,75 euros cada uma, mas no Natal as encomendas multiplicam-se. “Às vezes tenho mesmo que recusar porque não consigo ter mãos para tudo”, lamenta a responsável, sublinhando que também os turistas apreciam a especialidade. “Tornou-se uma imagem de marca da casa, já não há nada a fazer.”
Bacon, pistacho, queijo, caramelo salgado ou doce de ovos: há opções para todos os gostos
No Porto não faltam opções de rabanadas presentes nas cartas dos restaurantes, de forma fixa ou sazonalmente, há versões doces e salgadas, com diferentes temperaturas, texturas e apresentações. A do Early, em Cedofeita, leva fatias de bacon crocante, um chutney de pimentos e xarope de ácer, existindo a possibilidade de ser servida com um ovo do campo extra (12,50€). Pedro Braga, chef do restaurante Mito e um dos confrades da rabanada, criou uma versão com pistacho, romã e queijo mascarpone fumado, já o chef Marco Gomes, do Oficina, apostou numa rabanada com mel, limão e sal, redução de vinho do Porto Tawny e uma bola de gelado de caramelo salgado no topo (8€).
João Pupo Lameiras inspirou-se nos sabores outonais e na Casa de Pasto da Palmeira está agora disponível uma rabanada com doce de ovos, redução de vinho do Porto e gelado de queijo de ovelha (6€). No novo Real by Casa da Calçada, o chef Hugo Rocha fez uma rabanada à base de citrinos, acompanhada com gelado de queijo Stilton, e o recém chef estrelado Arnaldo Azevedo assina no restaurante Flor de Lis uma versão em pão brioche regada com creme inglês e rum e uma bola de gelado de queijo da Serra. Rabanada poveira com uma lava de ovos moles (3,50€) é a mais recente proposta do Camélia Brunch Garden, sendo que na gelataria Lavoratta a carta inclui nesta época natalícia uma rabanada regada com doce de leite para os mais gulosos (2,50€).