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Artigo originalmente publicado a 6 de novembro de 2022 e recuperado no dia 24 de junho de 2023, depois de Prigozhin declarar insurreição contra o Ministério da Defesa russo
Não há coincidências. Wagner, que dá o nome ao grupo de mercenários que atua a favor do Kremlin na guerra da Ucrânia, não é um Wagner qualquer. É Richard, o compositor alemão do século XIX, que escreveu alguns ensaios antissemitas e era o favorito de Adolf Hitler, admirado como um exemplo da superioridade alemã. No Grupo Wagner há membros ligados à supremacia branca, tal como, do lado da Ucrânia, se encontram pessoas com o mesmo perfil no Batalhão Azov. Se os ucranianos ligados à extrema direita ficaram conhecidos pela batalha de Azovstal, e pela resistência militar sobrehumana, o Grupo Wagner — que há muito tempo opera em África — está a mostrar que é o batalhão mais apto do lado russo.
Onde estão agora? São a principal força do Kremlin na batalha de Bakhmut, no Donetsk, região de Donbass, onde se trava um duelo crucial desta fase da guerra. A uma hora de caminho, em Hirske, Lugansk, construíram a chamada linha Wagner: dois quilómetros de comprimento com pirâmides colocadas com pequenos espaços entre si para impedir avanços do adversário.
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Cerca de 7 mil homens compõem o Grupo Wagner. Entre esses há um nome, fundamental na história do grupo de segurança privada, como se auto-intitulam os mercenários, que faz caminho nos bastidores políticos de Moscovo. Yevgeny Prigozhin nasceu em Leningrado (hoje São Petersburgo), passou quase uma década na prisão por roubo e fez fortuna quando começou a vender cachorros quentes. Lançou-se na restauração e ganhou o cognome de “cozinheiro de Putin” quando se tornou habitual o Presidente russo levar chefes de Estado a jantar nos restaurantes de Prigozhin. Serviu George W. Bush e Nicolas Sarkozy, entre outros. Mas foi quando começou a servir refeições nas escolas russas que o seu património disparou.
Hoje, tem mais poder dentro do Kremlin do que alguns ministros e não se coíbe de puxar as orelhas a Putin, ou de aplaudir Volodymyr Zelensky, o Presidente ucraniano, quando lhe apetece hostilizando o líder russo, seu aliado, que há quem ache até que é candidato a substituir. Da mesma forma, depois de anos a processar todos os que o tentavam ligar ao Grupo Wagner, foi ele próprio quem, em setembro passado, assumiu ter sido o criador do grupo em 2014. A confissão surgiu na rede social VK.
Batalha de Bakhmut é mais simbólica do que estratégica
É o regresso às origens. Há meses que o Grupo Wagner está no Donbass, a mesma região ucraniana que viu nascer o grupo em 2014. Prigozhin contou agora a história, muito embora parte dela fosse conhecida, mesmo sem ser através de versões oficiais.
Há 8 anos, durante o movimento Euromaidan (que terminou com Kiev a afastar-se politicamente de Moscovo), os conflitos entre os dois países vizinhos começaram no Leste da Ucrânia. Os movimentos separatistas pró-russos exigiam mais autonomia, Kiev recusava, e a discussão política transformou-se em conflito armado. Nos oblasts de Donetsk e Lugansk — que compõe a região do Donbass, diminuitivo de bacia do Donetsk — surgiram as autoproclamadas Repúblicas Populares, a quem Vladimir Putin reconheceu força de Estado antes de invadir a Ucrânia a 24 de fevereiro de 2022.
Grupo Wagner. Os homens de guerra do Kremlin para apanhar Zelensky
Como muitos outros empresários russos, escreveu Prigozhin, também ele, em 2014, dirigiu-se aos campos de treino “onde se reuniam os cossacos”. O seu objetivo era recrutar — da mesma forma que agora o faz dentro das prisões russas com várias promessas, algumas menos ortodoxas — um grupo de combatentes “para proteger os russos quando o genocídio da população russa do Donbass começou”.
O problema é que o oligarca próximo de Putin não encontrou o que procurava e os homens dispostos a serem mobilizados não tinham as condições físicas que desejava. A solução foi criar o seu próprio grupo de segurança privada militar. “Naquele momento, a 1 de maio de 2014, nasceu um grupo de patriotas, que mais tarde adquiriu o nome de Wagner”, lê-se no seu comunicado.
O Grupo Wagner, com todo a sua sagacidade militar, está focado em Bakhmut, situação que não passou despercebida a Zelensky. Num dos seus discursos diários, a de 17 de outubro, o Presidente ucraniano falou da situação difícil que se vive no leste, no Donbass. “Uma situação muito severa persiste em Donestsk e Lugansk. A mais difícil é em Bakhmut, como nos dias anteriores.”
Além do grupo de mercenários, Prigozhin está alegadamente ligado à criação de uma fábrica de trolls que terá influenciado os resultados das Presidenciais norte-americanas que conduziram Donald Trump à Casa Branca.
Vitória no Donbass procura-se
Por que motivo Bakhmut? O Instituto para o Estudo da Guerra delapida qualquer interesse militar que aquelas posições (e lutar por elas) possa ter para os russos. “A perda de Izyum condena o plano inicial da campanha russa para esta fase da guerra e garante que os avanços russos em direção a Bakhmut ou ao redor da cidade de Donetsk não possam ser decisivos (se ocorrerem)”, lê-se num dos relatórios diários sobre a guerra, o de 11 de setembro, do think thank sediado nos Estados Unidos.
“Mesmo a captura russa de Bakhmut, que é improvável de acontecer considerando que as forças russas se empalaram em pequenos assentamentos vizinhos durante semanas, não apoiaria nenhum outro esforço para atingir os objetivos originais”, acrescentam os analistas Kateryna Stepanenko, Karolina Hird, Grace Mappes e Frederick W. Kagan.
Para ser eficaz, defendem, teria de ser apoiado por um avanço no norte de Izyum. “As contínuas operações ofensivas russas contra Bakhmut e ao redor da cidade de Donetsk perderam, portanto, qualquer significado operacional real para Moscovo e apenas desperdiçam parte do poder de combate efetivo extremamente limitado que a Rússia mantém.”
Se assim é, por que se fala numa batalha crucial? Do ponto de vista político, e para a ambição que Yevgeny Prigozhin tem de crescer dentro do Kremlin, é esse o adjetivo a usar.
Narcisismo puro e desejo de mostrar a sua própria importância são os motivos que o movem, segundo Andrey Zakharov, correspondente da BBC. O jornalista também considera que, com maior visibilidade pública dentro da Rússia, Prigozhin poderá conseguir mais meios para o Grupo Wagner e recrutar mais facilmente mercenários, dentro e fora das prisões. Por outro lado, seria uma forma de mostrar que as suas tropas são capazes de ganhar terreno quando os militares russos perdem.
Outro motivo é a necessidade que a Rússia tem de uma vitória no Donbass, região da Ucrânia que Vladimir Putin anexou, embora a comunidade internacional não reconheça esse ato (e o condene), tal como não reconheceu, em 2014, a anexação da Crimeia. Ali, naquela zona que Putin diz ser Rússia, o seu exército tem sido repelido pelos ucranianos. Uma vitória em Bakhmut disfarçaria as perdas em Kherson e noutros locais do leste do país.
“A Rússia sofre derrotas em todos os aspetos”, defendeu Samuel Ramani, do Royal United Services Institute, em declarações à Associated Press. “Eles precisam de algum tipo de vitória ofensiva para calar os críticos domésticos e mostrar ao público russo que a guerra ainda está a ser planeada.”
Dentro do governo, o alvo é Shoigu
Mais do que uma vez, Prigozhin negou ter ambições políticas. “Sobre a minha popularidade crescente, só posso dizer que não me esforço para ser popular”, afirmou numa entrevista a um jornal local, citado pela Radio Free Europe. “A minha tarefa é cumprir o meu dever para com a pátria e não pretendo fundar partido político algum, muito menos entrar para a política.”
As suas palavras e as suas ações são diametralmente opostas. Depois de ter revelado que alguém próximo de Putin se queixou ao Presidente russo do caminho desastroso que segue a guerra, o Washington Post acabaria por revelar a sua identidade: Yevgeny Prigozhin é o oligarca que mais fúria tem demonstrado pelo trabalho dos comandantes russos e por toda a hierarquia militar, ministro da Defesa incluído. Serguei Choigu tem estado sempre na sua mira.
“Não falei pessoalmente com Vladimir Vladimirovich Putin recentemente ou em qualquer futuro próximo”, negou, mais uma vez, o milionário. Apesar disso, o jornal norte-americano — que frisa que a discussão em privado entre Putin e Prigozhin foi severa o suficiente para merecer o envio de um relatório para a Casa Branca — aponta para a existência de um outro documento totalmente dedicado à tensão entre o oligarca que lidera o grupo Wagner e Shoigu.
“A decisão de confrontar Putin é apenas o último sinal da insatisfação” do empresário, diz uma fonte, não identificada pelo Washington Post, que leu o relatório.
“Parece bastante óbvio que Prigozhin considerou que este é um momento oportuno para aumentar o seu perfil público”, defendeu Candace Rondeaux, investigadora da New America Foundation e autora do relatório “Decoding The Wagner Group”, de 2019. “Ele é apenas um oportunista. A sua carreira demonstra isso, e isso mostra que pode haver recompensas para qualquer atividade que apoie a guerra. Está no seu ponto alto, no seu pico de poder político e de influência”, disse a investigadora, sediada em Washington, à Radio Free Europe.
Apesar disso, Candace Rondeaux acredita que o lugar do oligarca não é em Moscovo. “Se houver algum caminho viável para Prigozhin se tornar político será em São Petersburgo. Não será em Moscovo, nem nos Urais.” A 2 de novembro, a imprensa ucraniana e a russa relataram que o empresário sugeriu, através de um dos muitos comunicados que a sua empresa Concord Catering publica nas redes sociais, que o governador de São Petersburgo é um vigarista.
O recado é dirigido à Procuradoria Geral da República — a “possibilidade de o governador Aleksandr Beglov ter criado uma comunidade criminosa organizada no território de São Petersburgo para roubar o orçamento do Estado e enriquecer funcionários corruptos” deve ser investigada. Com esta tomada de posição, Prigozhin mostra que não teme atacar políticos eleitos, assim como não se importou de elogiar Zelensky, num movimento contra corrente.
“Embora ele seja o Presidente de um país que, neste momento, é hostil à Rússia, Zelensky é um homem forte, confiante, pragmático e simpático”, defendeu na rede VK. Não o subestimem, disse numa segunda publicação.
Para onde se dirige o empresário com esta postura e o desafio constante às elites políticas? “Penso que Prigozhin espera ser recompensado. Ele não precisa do dinheiro, mas provavelmente gostaria de ter mais prestígio e influência política”, defendeu Candace Rondeaux.
Nos seus relatórios, o Instituto para o Estudo da Guerra também dedica algumas linhas a Yevgeny Prigozhin: “Está a estabelecer-se como uma força política, usando o seu estatuto popular e a sua ligação ao Grupo Wagner para criticar os seus opositores dentro dos círculos da elite e, em simultâneo, institucionalizar sua autoridade.”
No Kremlin, o cozinheiro já é vice-rei
A influência de Prigozhin, no círculo fechado de Putin, já é igual à de Sergei Lavrov, ministro dos Negócios Estrangeiros, ou de Sergei Shoigu. Mikhail Khodorkovsky, magnata opositor do Presidente russo e que passou 10 anos na prisão, é quem o diz, citado pelo The Guardian. As declarações foram feitas a um grupo de parlamentares britânicos.
Khodorkovsky garante que ‘o cozinheiro de Putin’ influenciou a escolha do novo (e duro) comandante da operação na Ucrânia, Sergey Surovikin. De facto, Prigozhin congratulou-se com esta escolha e a imprensa ucraniana aponta os dois como próximos, desde os tempos da guerra na Síria, quando Surovikin recorreu aos serviços do Grupo Wagner.
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Na conversa com os parlamentares, o dissidente russo frisou que, na sua opinião, Prigozhin nunca assumirá qualquer falhanço na Ucrânia, escudando-se nos números: o seu batalhão é composto por 7 mil homens, o exército russo ronda os 200 mil. A culpa será sempre de Shoigu, se Prigozhin for convidado a apontar o dedo a alguém. Para si próprio, guardará os louros dos quilómetros de terra roubados pelo Grupo Wagner à Ucrânia. Se esse trilho o levará ao Grande Palácio do Kremlin, só o tempo, e o rumo da guerra, o dirá.