Sentado a uma pequena mesa branca, Douglas Stuart esperava por nós. Ao seu lado, estava a edição portuguesa de Shuggie Bain, o romance de estreia que o tornou conhecido no Reino Unido (onde lhe foi “unanimemente” atribuído o Booker Prize), América e mundo fora. “Estava à procura da minha cena favorita”, confessou, com um sorriso. O escritor, um escocês residente nos Estados Unidos que decidiu trocar uma já longa carreira no mundo da moda pela literatura, percebe “um bocadinho” de português, mas é o conhecimento privilegiado de um livro em que trabalhou durante dez anos que lhe permite encontrar a passagem de que mais gosta.
Foi precisamente por aí que começámos a nossa (longa) conversa com Douglas Stuart, de passagem por Lisboa a propósito da publicação da edição portuguesa de Shuggie Bain pela editora Alfaguara, sobre as memórias do filho de uma mãe alcoólica da classe operária de Glasgow, a dificuldade de encaixar num lugar que nos quer afastar, a dificuldade de publicar um romance que é uma lição de empatia e a esperança, um sentimento que não tem sempre de ser como um nascer do sol. Às vezes pode ser apenas uma vontade mais forte de continuar.
Qual é a sua cena favorita?
É a cena em que o Shuggie ensina a Agnes a dançar. Ela tem um novo encontro e ele ensina-a a dançar. Ele está a ser espiado pelas crianças no outro lado da rua e é ela que lhe ensina uma lição — ensina-lhe que deve ter orgulho em si próprio e continuar a dançar. É uma lição que leva até ao último capítulo do livro.
Essa ideia de que é preciso continuar, e continuar de forma orgulhosa, é uma das lições do romance. Apesar das circunstâncias, Agnes mantém sempre a cabeça erguida e tenta transmitir isso ao filho.
Às vezes as pessoas pensam que a pobreza só pode ser sinistra ou triste. Cresci na mesma pobreza do Shuggie e descobri que tínhamos um sentido de orgulho muito forte. A minha mãe, sobretudo, sempre teve o cuidado de garantir que nós [os seus filhos] estávamos sempre no nosso melhor, que mostrávamos sempre a nossa melhor cara. Sempre encarei isso como uma espécie de superpoder, a forma como a nossa mãe conseguia fazer isso tendo em conta que não tínhamos muito dinheiro. Muito do livro é sobre tentar encontrar o sítio a que pertencemos e sobre sentirmo-nos bem no sítio onde estamos. Estão sempre a pedir ao Shuggie e à Agnes para serem normais. Estão sempre a perguntar-lhes porque é que são assim, quando não há nada de errado em relação a eles. Simplesmente não conseguem encontrar o lugar a que pertencem.
Foi isso que aconteceu com Eugene, o namorado de Agnes.
Gosta dele?
Gostava no início, antes de levar Agnes a beber novamente porque queria que ela fosse “normal”.
Às vezes, nos locais onde se bebe muito, como em Glasgow, é muito difícil distinguir entre quem bebe muito e quem é alcoólico. É uma linha muito fina. Eugene tem um preconceito muito grande em relação ao alcoolismo. Vê as pessoas que estão na festa [de aniversário da sobriedade da Agnes] e não gosta delas. Considera que estão abaixo dele. Cresci rodeado por alcoolismo. Perdi a minha mãe para o alcoolismo quando tinha 16 anos. Quis mostrar como é que se pode magoar alguém que tem um vício ao tirar-se esse tipo de conclusões. O Eugene magoa a Agnes porque não aceita o facto de ela ser uma mulher que tem um problema e um vício. Mas [essa passagem] é também um comentário sobre como às vezes os homens se veem a si próprios como heróis. Sou um grande fã de Thomas Hardy e Tess of the d’Urbervilles é um livro sobre como os homens mudam o destino de uma mulher, [Tess]. O marido, o pai ou Angel Clare — todos influenciam o seu destino. Isso era tão verdade na década de 1890 como na de 1980. Eugene vê-se a si próprio como um herói. Quando vão ao bar do Faroeste, onde toda a gente se veste como cowboy, ele assume o papel de xerife. Às vezes os homens pensam que tudo vai ficar bem só porque estão ali e Agnes deixa-os pensar assim. Mas ela é muito mais complexa do que isso e está muito magoada. Ele não a pode salvar.
Ela também parece acreditar que precisa de um homem para estar bem. O desaparecimento de Shug Bain Sénior deixa um espaço que ela acha que tem de ser preenchido.
Na Escócia, nos anos 60, 70 e 80, apenas 0,003% dos estudantes universitários vinham da classe trabalhadora. Entre as mulheres, o número devia ser ínfimo. [O livro] é [também] um comentário sobre as oportunidades que estavam disponíveis às pessoas [dessa classe]. Uma das razões pelas quais demorei dez anos a escrever o livro é porque, quando era jovem, tive muito mais oportunidades do que a minha mãe alguma vez teve. Demorei esse tempo a perceber, de maneira empática, como a minha mãe estava presa pelo mundo e pelos homens. A personagem da Agnes Bain quer ser adorada. Todos queremos ser adorados. Queremos apaixonar-nos, encontrar alguém que nos ame, ter uma vida familiar feliz e um bocadinho de glamour. Ela quer coisas muito razoáveis, não quer viajar até à Lua ou ser atriz em Hollywood. Quer ter a sua própria casa, um marido fiel, um bocadinho de diversão. Mas a sociedade daquele tempo era tão patriarcal que, quando ela perde o marido, deixa de ter maneira de levar dinheiro para dentro de casa. Tem crianças para criar e, se arranjar um emprego, provavelmente não receberá tanto dinheiro quanto se pedir um apoio ao Estado [o que acaba por fazer]. Também existe um preconceito nas comunidades católicas em relação às mães solteiras e sobretudo em relação às mães solteiras que se apresentam de maneira desafiante e independente. Quando alguém tem noção do seu próprio valor, muitas vezes nos lugares mais pequenos as pessoas procuram implicar e deitar essa pessoa abaixo. No livro, a misoginia vem muitas vezes das mulheres. São as mulheres que recusam a Agnes, que lhe negam alguma espécie de irmandade feminina, porque apenas veem nela uma mulher que tem glamour, que é um bocadinho perigosa, assustadora e que está sexualmente disponível, digamos, e não uma mulher que é igual a elas.
Só podem aceitar Agnes se ela se comportar como elas.
Existe muita solidariedade na classe operária, estamos sempre a vê-lo na literatura, mas às vezes essa solidariedade pode ser usada contra nós, para nos excluir se não nos conformarmos, integrarmos ou correspondermos àquilo que um lugar espera de nós, sobretudo enquanto mulheres. Mas também enquanto homens, Shuggie é um exemplo disso. A sua homossexualidade não encaixa no conceito de masculinidade [daquele lugar], então fica do lado de fora. Não há mobilidade. Não é como se a Agnes se pudesse levantar e ir para Londres encontrar a sua tribo e passar um bom bocado. Não pode fazer isso, não tem dinheiro para apanhar um autocarro para a cidade. Essas quatro ruas [da comunidade mineira onde parte da ação se passa] são quase como uma tragédia shakespeariana ou como uma tragédia grega — são o palco da Agnes e ela está presa nele. O que as mulheres pensam dela é a sua identidade. Ela aparece no bairro como uma estrela de cinema, com a sua camisola de angorá com missangas, o seu cabelo arranjado.
Falou em tragédia grega. As mulheres da comunidade mineira desempenham um papel muito semelhante ao do coro das tragédias gregas. Estão sempre presentes em cena, a olhar, a comentar. Foi deliberado?
São quase maquiavélicas, não é? Sempre a espreitar, a olhar. Mesmo naquela cena de que falámos, quando o Shuggie está a ser observador, há sempre essa ideia de que há alguém que sabe o que se passa e que está a comentar. Fiz isso deliberadamente, pensei na comunidade dessa forma, mas também porque queria criar um retrato o mais amplo possível da família e daquele tempo. O coro é importante porque não queria que tudo o que sabemos sobre a Agnes fosse do ponto de vista de um rapaz pequeno. Ela é demasiado complexa. É um trabalho de ficção, mas admito francamente que perdi a minha própria mãe e que isso deixou uma tristeza muito grande em mim. Só conhecia a minha mãe enquanto minha mãe, mas ela foi mulher, filha, amiga, inimiga, amante, tinha desejos sexuais, foi casada. Tinha todas essas facetas enquanto ser humano antes de ser minha mãe e mesmo antes de ser alcoólica. Queria usar essa ideia para pintar uma imagem muito ampla [da Agnes]. É por isso que quando a conhecemos no início do livro, não conhecemos logo os seus filhos. Vemo-la primeiro a tentar organizar uma festa. Está com as suas amigas, estão a experimentar soutiens, estão muito felizes. Isso foi uma escolha, primeiro, porque acho que quando as mulheres se tornam mães existe a tendência para pensarmos nisso sendo a sua única identidade e acho que isso é não verdade. Não fazemos isso com os homens. E depois o alcoolismo torna-se a personalidade de uma pessoa ou tudo aquilo que acreditamos saber sobre essa pessoa e a verdade é que é uma condição. Não é uma personalidade e não é uma identidade, é apenas uma coisa de que alguém sofre. Quando as mulheres são alcoólicas, descartamo-las muito depressa. Os homens lutam contra o vício em público. As mulheres não podiam ir a um pub. Não podiam sentar-se sozinhas, tinham de ser convidadas e ficar sentadas junto do homem que as tinha levado. O que diz muito de como as coisas são, sobretudo em comunidades onde se bebe muito. Quando uma mulher luta contra o alcoolismo, é empurrada para o isolamento, porque tem de beber em casa.
O nome dele era esperança
Porque é que chamou ao romance Shuggie Bain quando é Agnes que está no centro da história?
Lutei com isso durante muito tempo, se devia chamar-lhe Agnes Bain, mas houve duas razões [para não o fazer]. Uma delas não é muito boa, mas a outra foi muito ponderada. A primeira é que simplesmente gosto do nome Shuggie. É estranho, ninguém o entende. É como o Oliver Twist — não sabemos o que o nome quer dizer quando o lemos pela primeira vez, mas depois entendemo-lo. Para sempre. A outra é que queria focar-me na esperança e não na tragédia. Se a Agnes é um símbolo de força e resiliência, o Shuggie é, para mim, um símbolo de esperança, porque ele continua a voltar para a mãe, para aquela situação e continua a tentar. E nunca fica chateado, nunca diz “porque é que fazes isto, odeio isto”. Simplesmente continua em frente. Isso é o impressionante nas crianças, podem ser estes pequenos agentes de esperança. E às vezes a esperança pode ser apenas chegar ao dia seguinte e esperar que corra melhor do que o anterior. Temos ideia de que na literatura a esperança é uma coisa muito brilhante, um nascer do sol, mas, para muita gente, é apenas continuar em frente. [É pensar] que talvez as coisas fiquem um bocadinho melhores e um bocadinho melhores. O Shuggie é um símbolo disso.
Porque é que ele permanece? A irmã vai-se embora, o irmão também… A situação não é boa para ele, antes pelo contrário.
Quando uma mãe tem três filhos, então esses três filhos têm três mães diferentes. As crianças são tão diferentes em idade. A perceção da Catherine e do Leek da Agnes é diferente, eles conheceram-na antes do vício. O vício apareceu mais tarde nas suas vidas e podem ficar chateados e frustrados [por causa disso] porque eles conheceram o mundo sem o alcoolismo da mãe. São jovens adultos, então podem sair de casa e continuar com as suas vidas. A Catherine faz isso, definitivamente. O Shuggie não conhece mais nada, quando nasceu a mãe já era alcoólica. Apesar de não ser uma relação saudável, acho que ele a ama e só quer que ela melhore. Está sempre a cobri-la, a protegê-la, olha pelo seu corpo, segue-a por um hospital e vai limpando coisas à medida que ela passa, resgata-a da outra ponta da cidade… Ele faz muitas coisas para a manter a salvo e isso é um ato de amor. Não é nada mais do que isso. Mas uma das questões do livro, e uma das coisas que aprendi por amar alguém com um vício, é que isso provoca muitos danos e temos de nos perguntar quanto é que conseguimos aguentar, durante quanto tempo é que conseguimos manter essa pessoa nas nossas vidas, porque o seu vício está a magoar-nos. Quão longe conseguimos ir para salvar a pessoa que mais amamos antes de decidirmos que temos de nos salvarmos a nós próprios? Muitos miúdos com pais que têm um vício têm de colocar essa questão. A Catherine e o Leek chegam a esse ponto. O Shuggie chega quase a esse ponto.
Nesse processo de tentar salvar a mãe, ele esquece-se dele próprio. Ele vive apenas para a Agnes, não tem vida além dela.
A maioria das crianças são o centro do universo. Os pais fazem de tudo para os manter felizes, saudáveis. Quando estão numa sala com outras pessoas, não têm de ter consciência dos sentimentos, necessidades ou problemas dos outros. São o foco de toda a gente. Quando se é filho de alguém com um vício, percebemos rapidamente que não somos esse tipo de criança. A relação inverte-se, torce-se. Apercebemo-nos que temos de tomar conta de alguém, tornamo-nos o cuidador. Isso aconteceu-me quando tinha seis ou sete anos. De repente, apercebi-me que se não atendesse às necessidades da minha mãe, coisas más aconteceriam. Às vezes isso significava apenas distraí-la, fazer-lhe companhia; outras era mantê-la segura, afastá-la da bebida, tentar deitá-la ou levantá-la da cama. O Leek, a Catherine e o Shuggie fazem isso, têm de tomar conta da mãe, mas isso também envolve um certo terror. O Shuggie nunca sabe exatamente como é que a Agnes vai estar [quando chegar a casa]. Às vezes é muito divertida quando está bêbada, outras é incrivelmente triste ou irritada.
Porque é que decidiu escrever sobre todas estas experiências, sobre crescer com uma mãe alcoólica em Glasgow nos anos 80? Foi uma forma de ultrapassar o que aconteceu?
Foi uma maneira de compreender o que aconteceu.
Era muito novo.
Era demasiado novo, era apenas uma criança. Sei como o senti no meu coração, toda aquela perda e mágoa, mas não tinha compreendido como é que tinha acontecido e como é que toda a gente, no universo que me rodeava, se sentiu. Na verdade, escrever este livro foi uma lição enorme de empatia. Alterou completamente a minha relação com a minha própria mãe. Obrigou-me a pensar sobre como uma mãe da classe operária se sente naquela situação. Se fosse mãe de três crianças e fosse abandonada numa localidade mineira, num sítio hostil, e visse os meus sonhos a serem esmagados, se calhar também bebia. [Escrever o livro] foi definitivamente um processo de libertação, mas também de compreensão. Teve a ver com empatia, com tentar ter compaixão e também descentrar-me da minha própria experiência. Quando há um trauma, existe a tendência para pensarmos que tudo nos aconteceu a nós. Porque é que alguém foi mau para nós? Porque é que aquilo nos aconteceu a nós? E é verdade, as pessoas podem ser más para nós em criança, mas se nos afastarmos um bocadinho somos capazes de ver que isso veio de algum lado. Sempre pensei que sempre que alguém se afundava no alcoolismo era porque alguma coisa de má tinha acontecido. Entrevistei alcoólicos e familiares que conheceram a minha mãe e toda a gente me disse que seis ou sete anos depois é que perceberam que [o problema com a bebida] se tinha tornado mau. Demorou muito tempo. A maré sobe muito devagar. As pessoas afundam-se no vício muito devagar.
Quase todas as personagens bebem, e bebem muito. Até a mãe de Agnes bebe. Não é apenas um problema individual, é uma questão social.
É uma sociedade que bebe muito. Nalgumas sociedades, as pessoas saem e vão beber café ou socializam fazendo outra coisa qualquer. Quando querem socializar e passar um bom bocado, os escoceses, irlandeses e ingleses viram-se para o álcool. Isso foi uma das coisas mais difíceis de identificar na pesquisa que fiz — como as pessoas bebem muito quando querem passar um bom bocado, não é possível notar quando se tornam alcoólicas. Estive na Irlanda na semana passada e uma pessoa que me entrevistou disse-me que toda a gente na sua família bebe muito. Metade são alcoólicos e a outra metade são pessoas que bebem muito. A questão é escolher quem é o quê. Isso é fascinante.
Regressar a casa
Glasgow é o palco onde toda esta história se desenrola, mas é também uma espécie de personagem, que desempenha o seu próprio papel. Estava a tentar homenagear a cidade onde cresceu? Shuggie Bain é a sua carta de amor para Glasgow?
Demorei dez anos a escrever o livro e acho que uma das razões que me levou a continuar a aplicar-me a esse projeto e a alimentá-lo durante todo esse tempo foi porque queria estar em Glasgow. Vivo em Nova Iorque, tinha imensas saudades de casa, mas não tinha saudades apenas das pessoas, tinha também daquele tempo. Por mais estranho que possa parecer, porque não foi a melhor altura para a cidade, foi um tempo de enorme humanidade. A cidade mudou tanto, as coisas melhoraram tanto, mas ainda assim senti que queria passar tempo nesse tempo. Glasgow é uma personagem no livro. Muitas vezes espelha aquilo pelo qual a Agnes está a passar, quer seja o abandono das minas ou a esperança da cidade. Vemos a cidade refletida na Agnes e a Agnes refletida na cidade. São as duas heroínas [do romance]. Queria também que o livro mostrasse vários lados da cidade porque existem muitos. Não queria que mostrasse apenas uma, mas que mostrasse o máximo possível da classe operária de Glasgow.
Foi difícil escrever sobre Glasgow estando em Nova Iorque?
Foi incrivelmente fácil. A distância traz claridade e também saudade, então consegui distanciar-me e ver Glasgow de forma panorâmica. A minha família ainda vive nas ruas sobre as quais escrevi e continuo a ir a casa duas, três vezes por ano. Vejo-me como sendo de Glasgow, não me vejo como um nova-iorquino.
Não se sente americano?
Não, mas sou [tenho cidadania norte-americana], mas não me sinto um. Acho que quando crescemos numa cidade, isso forma-nos e quando é uma cidade tão forte como Glasgow isso deixa uma marca em nós. Escrevi o livro porque estava a tentar voltar para casa. Disse que [Shuggie Bain] era a minha carta de amor para Glasgow. Sempre amei Glasgow, mas Glasgow nem sempre me amou. Quando era jovem, Glasgow não sabia o que fazer com o jovem gay da classe operária. Nunca me fez sentir em paz, nunca me fez sentir em casa. Teria sido péssimo a trabalhar na indústria pesada, sou péssimo no desporto, a beber muito, a engatar mulheres. Todas essas coisas [que são características de Glasgow]. Não conseguia encaixar. De certo modo, Shuggie Bain é uma maneira de voltar a colocar-me naquela paisagem e de dizer que estes jovens e estas mães sempre ali estiveram.
Conseguiu encontrar o seu lugar em Glasgow?
Encontrei o meu lugar. Sabe, a cidade pintou um mural ao Shuggie Bain com 18 metros de altura e 24 de largura num dos seus edifícios mais importantes. Ver as palavras que a cidade inspirou pintadas na própria cidade foi o maior elogio que já recebi.
Por fim, a literatura
Trabalha há vários anos na indústria da moda. Como é que começou a escrever?
Devagar. No início, não tinha consciência de que ia escrever um livro, apenas sentia que tinha de escrever. Primeiro escrevi um dos capítulos do meio, o capítulo dos dois irmãos na mina de carvão, e depois escrevi o capítulo 23, depois o 3… Surgiu-me quase como se fossem contos. Ao crescer pobre na Escócia, foi-me incutido durante a juventude que a literatura e a academia eram algo que um rapaz como eu não devia fazer. Quando comecei a escrever o Shuggie, não contei a ninguém. Nem mesmo a mim próprio. A ideia de escrever um livro é demasiado intimidadora. Se pensarmos no que estamos a tentar atingir, não conseguimos lidar com isso. Limitei-me a sentar-me e a escrever à medida que [a história] ia surgindo. Pensei: “Continua a escrever, continua apenas a escrever e o resto virá”. O primeiro rascunho tinha cerca de 800 páginas, era enorme. Este tem 400. Era uma compulsão. Era um sentimento, não era um pensamento. Não me sentei e pensei: “Esta é a minha estratégia”. Veio mesmo do coração.
O romance foi rejeitado dezenas de vezes até finalmente ser publicado. Nunca pensou em desistir?
Acho que foi rejeitado 45 vezes. A minha agente falou-me de 20. Depois deixou de me dizer porque estava tão devastado. Mas, sabe, apesar das rejeições, não mudei uma única palavra, uma única vírgula, e acho que foi muito importante. Acreditava no trabalho e naquilo que queria atingir com este livro. Tinha fé no Shuggie. O Shuggie passa por coisas muito difíceis, mas é um miúdo forte. Sabia que alguma coisa de bom haveria de acontecer e por isso insisti. A minha agente insistiu. E agora veja onde é que estamos.
Porque é que acha que foi tão difícil o livro ser aceite?
Acho que a edição é uma indústria muito ligada à classe média. Nos Estados Unidos, é uma indústria de pessoas altamente educadas da classe média. Essas pessoas passam seu tempo nos corredores da grande literatura. Têm dificuldade em perceber as histórias que falam da classe operária, porque estão muito longe daquilo que conhecem. Demorou algum tempo, mas está aqui.
E ganhou o Booker Prize.
Ganhou! Unanimemente, sabia?
Agora tem a possibilidade de se tornar escritor a tempo inteiro. Está a pensar em fazê-lo?
Na verdade, já sou escritor a tempo inteiro, afastei-me da moda. Esperei tanto para chegar aqui, para escrever este livro e vê-lo publicado, que assim que aconteceu quis poder estar presente. O meu próximo romance [Young Mungo] vai ser publicado em abril do próximo ano, em inglês e numa série de outras línguas. Tenho histórias publicadas na The New Yorker, vão sair mais, e também estou a escrever o guião para a adaptação televisiva de Shuggie Bain [por uma produtora norte-americana]. Estou a escrever a tempo inteiro.