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Tanta coisa para ver, tão pouco tempo. Não há problema existencial mais primeiro-mundo do que esta crescente frustração de não ser possível acompanhar todas as séries de qualidade que vão estreando a um ritmo impossível de acompanhar. Deixar de dormir — ganhando assim mais 8 horas que podem ser dedicadas ao consumo de ficção — é uma hipótese não recomendada por 10 em cada 10 médicos.

Faltar ao emprego é apelativo mas as consequências a curto prazo podem ter efeitos contraproducentes: há um número limitado de vezes em que é credível dizer que estamos doentes sem que isso implique aumentar a mentira para níveis que obriguem a simular uma hospitalização ou até a forjar radiografias e relatórios médicos — o que só por si daria tanto trabalho que as horas disponíveis para assistir a episódios de “Better Things” reduziriam de forma drástica, tornando todo o esforço inglório e redundante. O despedimento seria provável e sem ordenado fica difícil pagar a assinatura da Netflix e da HBO e da Amazon Prime e ainda por cima a Apple TV+ e a Disney+ também estão mesmo aí à porta.

Alimentar os filhos ou ver a última temporada de “Glow”? Pagar o IRS ou assinar mais um serviço de streaming? São “Escolhas de Sofia”* (*referência dos anos 80) que não se desejam a ninguém e é por isso que esta lista existe – é como um mapa para que ninguém se perca, onde assinalamos alguns das cidades que não estão nos guias e monumentos menos visitados, aproveitando tanto o que já está à mão como até prevendo o que vamos encontrar ali atrás da esquina. E a vantagem é que não há qualquer pressão de estar atualizado — ninguém vai andar a publicar “spoilers” do “Ramy” e algumas das sugestões são de séries que já terminaram. Tudo aqui pode ser doseado ou então – aproveitando que o Verão é o novo outono – consumido numa maratona frenética de ficção audiovisual. A escolha é vossa. São 16 séries e podiam facilmente ser mais.

Para quem gosta delas quentinhas ou mesmo a sair do forno

“A Família” (Netflix). Formato híbrido documental com sequências ficcionadas — ao estilo do fascinante “Wormwood”, realizado pelo eterno Errol Morris (e também disponível na Netflix). Mini-série de 5 episódios sobre uma organização secreta Americana que rejeita a separação entre Estado e Igreja, influenciando eleições e futuros líderes. Para todos aqueles que se questionam “como é possível que exista uma regressão dos direitos das mulheres nos Estados Unidos do século XXI”?, aqui está uma das respostas.

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“Glow”, 3ª Temporada (Netflix). O regresso das deslumbrantes (e fascinantes) senhoras do wrestling. A série criada por Liz Flahive e Carly Mensch é inspirada num programa de televisão real dos anos 80, tem Alison Brie e Marc Maron, muita lycra, permanentes e golpes acrobáticos e é um testamento à solidariedade feminina num mundo dominado por homens.

“Dear White People”, 3ª Temporada (Netflix). Começou com um filme em 2014, passou para série em 2017 e regressa agora para a sua terceira temporada: Dear White People, onde um grupo de estudantes universitário afro-americanos decifram e confrontam os códigos sociais e raciais de um sistema de ensino inventado por homens brancos para estudantes brancos. A série é ácida, cáustica e mistura indignação com capacidade de auto-crítica, a banda-sonora é brilhante e a autoria de Justin Simien tem estilo e personalidade.

“Lambs Of God” (HBO Portugal). Mini-Série Australiana de 4 episódios, produzida pela Foxtel mas em exibição na HBO Portugal. Três freiras de três diferentes gerações vivem sozinhas num convento até que aparece um estranho visitante. O primeiro episódio chama-se “Um Diabo no Paraíso” e uma das freiras é interpretada pela maravilhosa Ann Down, a Tia Lydia de “The Handmaid’s Tale” – e só esses dois factos são suficientes para que “Lambs Of God” tenha lugar nesta lista.

“Succession”, 2ª Temporada (HBO Portugal). Quem ainda não teve oportunidade de entrar no mundo dos Roys, não sabe o que perde. Brian Cox é uma versão não muito disfarçada de Rupert Murdoch, um magnata disposto a tudo para manter o seu império de media, comunicação e entretenimento, sendo forçado a lutar contra as ambições dos seus três filhos e herdeiros. A série de Jesse Armstrong (que antes trabalhou em projetos tão extraordinários como “Quatro Leões”, “In the Loop”, “Veep” e até um episódio de “Black Mirror”) é brilhante, o humor tão negro como a alma dos seus protagonistas.

Para os que sabem que a vida é mais estranha do que a ficção:

“The Jinx: The Life and Deaths of Robert Durst” (HBO Portugal). Não é o pai das séries documentais sobre crimes – essa honra pertence a “The Staircase”, que a Netflix recuperou recentemente – mas será a mais icónica e inesquecível. Exibida em 2015, são seis episódios que comprovam a máxima de Mark Twain: não admira que a vida seja mais estranha do que a ficção; a ficção tem de fazer sentido. Não há ninguém como Robert Durst, filho de um magnata do imobiliário em Nova Iorque que é acusado de vários crimes – uns bem mais bizarros (e violentos) do que outros. O final é tão incrível que se tornou imediatamente icónico.

“Bandidos na TV” (Netflix). Por falar em realidades bizarras e violentas: “Bandidos na TV” é a história de Wallace Souza, apresentador do “Canal Livre”, um reality show ao estilo “Cops” que fazia diretos de cenas de crime em Manaus. Há um bandido baleado numa esquina? A equipa de “Canal Livre” está lá mesmo antes da polícia, armados com um jornalista e uma câmara. A popularidade é tanta que Wallace se torna deputado estatual.  E a parte bizarra é esta: Moa, um traficante, acaba por o denunciar como o mandante de vários crimes para assim garantir as audiências do seu programa. Sendo o Brasil, nada nem ninguém é o que parece – nem os bandidos nem a polícia.

Para quem prefere episódios curtos e bons:

“Better Things” (NOS Play, Fox+). Pamela Adlon habitou-se a ter Louis CK ao lado desde (pelo menos) “Lucky Louie”, a série fracassada que o comediante Americano caído em desgraça criou para a HBO em 2006 – curiosamente, é das poucas que o canal de cabo não disponibiliza na sua plataforma on-line em Portugal. “The Larry Sanders Show” é outra ausência de peso e é uma tragédia considerando a genialidade do Gary Shandling. Mas é da brilhante Pamela Adlon que falávamos e “Better Things” é um justo palco para a comediante brilhar como protagonista. Uma atriz que tenta educar as três filhas em Los Angeles. Tão simples como isso. As ideias para séries são como a gastronomia: não é preciso inventar nada quando os produtos são bons. Vai na 3ª temporada.

“Ramy” (Hulu). Ramy Youssef também não inventa muito: a série com o seu nome é inspirada na sua própria vida. Filho de emigrantes Egípcios que tenta encontrar um equilíbrio entre a fé muçulmana, os amigos e a vida que sente merecer. “Ramy” é ficção como arma para a desconstrução de estereótipos, humanizando pessoas que políticos como Trump insistem em demonizar porque nada compra votos como o ódio. “Voltem para onde vieram”, diz o presidente Americano. No caso de Ramy, ele é de Nova Jersey. (Nota: o serviço da Hulu ainda não está disponível em Portugal… mas um dia vai estar… em princípio…)

“High Maintenance” (HBO Portugal). As ótimas três temporadas estão na HBO Portugal. Cada episódio é uma história diferente mas com algo em comum: o dealer de erva que vai circulando de bicicleta pelas ruas de Nova Iorque a fazer entregas à porta de cada cliente. O protagonista do 3º episódio da 1ª temporada é Gatsby, um cão que se apaixona pela rapariga que o leva a passear. É brilhante.

Para os que vibram com anti-heróis e mulheres fatais em lindas realidades hiper-violentas e estilizadas:

“Jett” (HBO Portugal). Mais uma daquelas séries que a HBO Portugal está a disponibilizar mesmo se a produção é de outro canal – neste caso, a Cinemax. Ficamos nós a ganhar. “Jett” é tão bom que todos os medianos/medíocres projetos anteriores que Sebastian Gutierrez e Carla Gugino fizeram juntos — desde “Rise – A Caçadora de Vampiros” até “Elektra Luxx” – parecem agora apenas parte de um treino que serviu para agilizar e aperfeiçoar a linguagem neo-noir da série. “Jett”, sobre uma ladra num mundo de assassinos e sádicos, é um abraço a Elmore Leonard – sexual, espirituoso, violento, adulto, cheio de truques e com imensa pinta.

“Perpetual Grace, Ltd.” (NOS Play). A abundância audio-visual Norte-Americana é tanta que até um canal com o nome de Epix produz conteúdos com atores como Ben Kingsley, Jackie Weaver, Jimmi Simpson e o enorme Luis Guzmán. Por cá, “Perpectual Grace, Ltd.” está na NOS Play. A série criada por Steven Conrad é uma digna sucessora de “Patriot”, outro projeto (da Amazon Prime) que poucos descobriram apesar de ter (pelo menos) sete momentos memoráveis. As séries de Conrad tem um tom único e singular – o título do 3º episódio de “Perpetual Grace, Ltd.” é “Filipe G. Usted. Quase o Primeiro Mexicano na Lua. Parte 1”. É como se a agulha da realidade tivesse saltado e houvesse uma interferência na melodia habitual. Não sei se é um gosto específico ou se é especificamente para o meu gosto. Mas também não faz diferença.

“Too Old to Die Young” (Amazon Prime). Não vou mentir: é necessário ter uma tremenda paciência para ver todos os episódios desta série de Nicolas Winding Refn (ou NWF, como ele gosta de assinar os projetos, o que até faz sentido considerando que a “overdose” estética de Refn se aproxima das imagens de anúncios de perfumes para os quais NWF seria um bom nome – enigmático e significando pouco) e Ed Brubaker. Se em “Perpetual Grace, Ldt.” a agulha saltou do disco, então aqui alguém reduziu as rotações: é como se a vida estivesse em câmara lenta e todos os monstros aproveitassem para sair à rua. NWF é como um cientista louco que tenta replicar o código genético de “Drive” e esta é mais uma tentativa. Não consegue – nem de longe. Mas há um certo fascínio em observar a teimosia de um esteta decadente e repetitivo capaz de criar imagens tão belas.

Para os que não tem medo de nada ou gostam de ter medo de tudo:

“Channel Zero” (HBO Portugal). Quando li que “Channel Zero” era uma série onde cada temporada se inspirava numa “creepypasta” individual, pensei: “ena, que fixe. O que é uma “creepypasta”? A pesquisa no Google que se seguiu explicou-se que se tratam de mitos virais, criados por utilizadores de fóruns e redes sociais, uma versão digital das histórias assustadoras que partilhávamos à volta da fogueira. E a verdade é que “Channel Zero” é creepy que se farta. Há um tom e um ambiente que arrepia a pele, mesmo se nem sempre a coisa funciona em termos narrativos – mas a verdade é que os pesadelos nunca dão muita importância à construção dramática. São 4 temporadas criadas pelo Syfy que a HBO recupera agora.

Para quem quiser começar um baixo assinado a exigir  a exibição de toda a boa ficção:

“The Loudest Voice” (Showtime). Russell Crowe é Roger Ailes, fundador da Fox News em 1995, o canal noticioso de Rupert Murdoch que ajudou a instalar o clima de medo e ódio que levaria eventualmente à eleição de Donald Trump – entre muitos outros pecados. A série é criada por Tom McCarthy, o mesmo realizador de “Spotlight” e são 7 episódios que saltam no tempo, expondo toda a máquina de propaganda disfarçada de jornalismo que ajudou a subverter o conceito do que é verdade ou decência. Ailes acabou em desgraça, o seu comportamento sexual predatório exposto em tribunal. A Fox News, por outro lado, é agora praticamente o canal oficial da Presidência Americana. (Nota: também não temos Showtime… mas algum operador vai conseguir trazer esta série até ao lado de cá, vai ter de ser)

“Documentary Now!” (Netflix América, IFC). Onde cada episódio é uma pequena homenagem/sátira a documentários clássicos. Criada por tipos brilhantes como Fred Armisen, Bill Hader (o mesmo que inventou o genial “Barry”), Seth Meyers e Rhys Thomas, é impossível fazer justiça à atenção ao detalhe que está presente em cada segmento. “Jiro Dreams Of Sushi” transforma-se em “Juan Likes Rice and Chicken” (2º episódio da 2ª temporada) e “Marina Abramovic – A Artista Está Presente” ganha o título de “Waiting for the Artist” (4º episódio da 3ª temporada) – onde a hilariante interpretação de Cate Blanchett é, sem qualquer reserva ou dúvida, um dos momentos mais altos de toda esta Época Dourada da Televisão.

Tiago R. Santos é arguentista