Durão Barroso está mais magro e sente-se orgulhoso com isso. O período de confinamento ajudou-o a iniciar uma dieta que já lhe permitiu perder 18 quilos. “Mas não é porque tencione candidatar-me a qualquer cargo político”, diz-nos já depois de uma entrevista que se prolongou por mais de uma hora e durante a qual o antigo presidente da Comissão Europeia nos disse que a sua expressão “uma pipa de massa” para o anterior pacote financeiro já era curta. Agora, este Fundo de Recuperação que pretende tirar a União Europeia da crise financeira, é “quase uma orgia financeira“.
Por isso, em entrevista ao programa Sob Escuta da Rádio Observador (ouça aqui na íntegra), o antigo primeiro-ministro sugere que seja criada uma comissão parlamentar que acompanhe a aplicação e execução dos fundos europeus que Portugal vai receber. Durão Barroso diz ainda que é uma “honra” para qualquer português ser Presidente da República, mas não voltará a ocupar qualquer cargo político em Portugal. Não quis dizer se iria repetir o apoio que em 2016 deu a Marcelo Rebelo de Sousa para Belém e revelou que fez telefonemas para líderes mundiais para os convencer a ajudar António Guterres a ser eleito secretário-geral da ONU.
Numa conversa em que falámos muito da Europa depois da mais recente cimeira europeia, mas também dos problemas criados pela pandemia e de como devem as democracias relacionar-se com a China, Durão Barroso evocou inúmeras vezes a sua larga experiência para evocar episódios e dar a sua opiniões sobre os atuais líderes do G20. Pelo caminho até nos disse qual foi político mundial com quem reuniu mais vezes quando estava em Bruxelas: Vladimir Putin. Quantas vezes? Vinte e cinco.
[Veja o essencial da entrevista:]
A Europa vai continuar a evoluir de crise em crise
Vamos começar pelo que saiu da última reunião do Conselho Europeu. A Europa mudou de natureza? Temos uma Europa diferente? Mais federal?
Não acho que tenha mudado de natureza, mas foi um grande passo em frente. Continuo a ver a União Europeia (UE) como um processo incremental, por aproximações sucessivas. Não estamos em nenhum dos pólos em que muitos analistas gostam de colocar a UE. Uns prevendo a sua desintegração, outros prevendo os Estados Unidos da Europa como se fosse um super-Estado federal.
Há uma tensão permanente porque há forças que desejam ambas.
Exatamente. Mas não são realistas. Baseando-me na minha experiência, obviamente que posso não ser completamente isento porque sou convictamente europeísta, diria que vai continuar a ser algo in between. Algo que não é nem o Estado federal que alguns desejavam, nem uma mera associação de estados. Nem algo ainda pior: uma realidade em desintegração. Um dos grandes pais fundadores da União Europeia, Jean Monnet, dizia que a Europa vai-se fazer por sucessivas crises e como sucessão de respostas a sucessivas crises. E é o que se tem passado. A verdade é que, na crise que eu vivi como presidente da Comissão Europeia, que foi a grande crise financeira, a grande crise global, e na Europa a crise das dívidas soberanas, permitiu que déssemos passos que eram absolutamente impensáveis um ou dois anos antes, como o lançamento da União Bancário, a criação do Mecanismo Europeu de Estabilidade. A Comissão Europeia e o Banco Central Europeu têm hoje, ao contrário do que por vezes se diz, muito mais poderes do que tinham antes da crise financeira. A crise anterior quebrou também alguns tabus. Por exemplo relativamente aos planos de resgate, a criação de mecanismos de salvaguarda financeira para os países. E esta crise está também a permitir isso.
Que progressos foram conseguidos com esta crise?
Foi possível um passo essencial, uma forma de mutualização da dívida. Ainda que não seja a forma mais completa que nós próprios tínhamos então sugerido os chamados eurobonds, agora a Comissão Europeia vai aos mercados levantar 750 mil milhões de euros em nome da União Europeia e que vai pagar até 2058. Nunca tinha havido nada de comparável. Não são apenas os montantes sem precedentes, é também a qualidade do tipo de instrumentos que agora é possível mobilizar. Mas é um processo incremental e há muita coisa que ainda falta fazer. Falta, por exemplo, concluir a União Bancária, que foi a minha Comissão que lançou. Dois dos pés do tripé já estão, mas falta o terceiro, que é o mecanismo de garantia de depósitos. Falta fazer o trabalho para a união de mercados financeiros. Mas sem dúvida a UE está, contrariando os habituais pessimistas e por vezes cínicos, está a fazer progressos na sua evolução.
Mas esses progressos não ficam marcados por uma tensão crescente como a que vimos naqueles quase 5 dias em Bruxelas com os frugais de um lado, Visegrado do outro, Alemanha e França do mesmo lado? Temos mais integração europeia, mas não é bem isso que os eleitorados têm dito de cada vez que vão às urnas…
É verdade que há mais tensões porque é cada vez mais difícil tomar decisões, mas isso não é um problema europeu, é geral. Se compararmos a polarização na Europa com a polarização nos Estados Unidos, provavelmente chegaremos à conclusão que há maior polarização política nos EUA. É mais difícil fazer consensos nos EUA do que na Europa apesar dos EUA serem um só país.
Têm um carácter diferente.
Têm, claro. Como a União Europeia é uma realidade transnacional e até, em alguns aspetos, supranacional, quando se invoca o interesse nacional coloca-se mais em perigo essa realidade. Obviamente. Queria falar sem qualquer complacência. Estou absolutamente consciente dos riscos que pesam sobre a UE, mas também estou confiante, com base na experiência que tive, que a resiliência da União Europeia e do euro é muito maior do que aquela que normalmente se reconhece. Vou falar de uma experiência que tive: em 2012 convidei para um brainstorm os economistas-chefe dos principais bancos a operarem na Europa e todos eles menos um me disseram que a Grécia não poderia continuar no euro, que seria inevitável a saída da Grécia do euro. E depois perguntei se acreditariam que o euro se ia manter e metade deles previa que iria terminar. Aliás, era o chamado sentimento de mercado em 2009, 2010, 2011 e 2012. A verdade é que o euro é uma das mais importantes divisas internacionais e a verdade é que a Grécia ainda está no euro. Ou seja: temos que ver é os resultados. Foi difícil ter este acordo, mas cinco dias para este montante e para estas inovações não me parece que tenha sido tempo excessivo. São 27 países à volta da mesa. Aliás, uma coisa interessante seria pensar: será que com o Reino Unido teríamos tido este acordo? A minha resposta é não, porque o chefe dos frugais já não está na UE: era o Reino Unido.
Agora passou a ser a Holanda, que antes se escondia atrás do Reino Unido e agora deixou de se esconder.
Participei em três negociações das chamadas perspetivas financeiras e, de facto, o mais difícil era sempre o Reino Unido. Mas havia um grupo, dos que na altura não se chamavam ainda frugais. Se não tivesse havido Brexit não se teria conseguido este acordo ou, provavelmente, dada a dimensão dos desafios, os Estados que quisessem o acordo teriam que o fazer fora do mecanismo comunitário. Por exemplo, quando foi o chamado fiscal compact, o tratado orçamental, o Reino Unido e a República Checa ficaram de fora. Portanto, haveria de se arranjar uma forma com a criatividade que a União Europeia tem habitualmente.
As soluções agora foram diferentes? Também se resolveu pelo aumento dos “rebates” para os frugais, como no passado, ou há aqui uma solução diferente do que era habitual?
Já havia os chamados “rebates”, mas agora foram mais generalizados para conseguir acomodar os chamados frugais. Aliás, passou-se nesta negociação algo que tenho vindo a assinalar já há algum tempo: que muitas vezes na União Europeia quando há um problema a melhor forma de o resolver é alargá-lo. Isto é contra-intuitivo, mas porquê? Porque quando se alarga um problema consegue-se um maior número de interessados na sua resolução e fazer uma negociação entre os diversos grupos interessados em aspetos diferentes. São os chamados trade off. Aqui a UE tinha dois problemas essenciais: o fundo de recuperação e o das novas perspetivas financeiras, pois com o Reino Unido saindo 15% das receitas não entrariam. Aliás, já se andava há muito tempo a negociar o Quadro Financeiro Plurianual sem conseguir aproximar-se de uma solução.
Com Negoboxs que apontavam para valores muito abaixo dos que foram alcançados.
Exatamente. Havia um impasse quanto ao orçamento multi-anual, mas depois juntou-se a necessidade de haver um acordo para um plano de recuperação. Em vez de resolver isto separadamente, tomaram uma boa decisão que foi juntar. Aí a Comissão esteve bem. Porque assim havia diferentes grupos que já tinham interesses diferenciados, mas que viram na solução de conjunto um compromisso. Porque a maior parte dos países, nomeadamente na Europa de Leste, não eram nada a favor do Fundo de Recuperação porque não foram dos mais atingidos pela crise da pandemia. Eles não eram instintivamente a favor do fundo de recuperação. Aliás, alguns países não queriam mesmo que houvesse este fundo porque viam que isso era dinheiro retirado aos pacotes da coesão. Por outro lado, os outros países que normalmente não são tão interessados nas questões do apoio financeiro, como a Alemanha, aqui compreenderam que não havia futuro para a União Europeia se a Itália, uma das maiores economias do mundo, ficasse paralisada, numa recessão profunda que poderia voltar a abrir toda a questão das dívidas soberanas e da própria sustentabilidade do euro.
Falava-se até de ‘Italexit’.
Sim. Aqui há uns meses a maior parte dos analistas internacionais dos mercados estavam a prever, ou pelo menos a pôr como uma hipótese razoável, a chamada saída do euro da Itália, falando no chamado risco de redenominação. Isso, pelo menos para já, está afastado. E, agora, desta vez, por este alinhamento das estrelas, foi possível uma resposta muito mais ambiciosa. Mas a meu ver, a União Europeia, parafraseando Mark Twain, as notícias da morte da UE são um pouco exageradas. O que não quer dizer que devamos cair da complacência de dizer que está tudo bem porque não está. Porque há riscos, nomeadamente dos nossos países, por causa das ameaças populistas e nacionalistas que, de facto, numa UE põem problemas que não põem num país.
“A política económica de cada país é do interesse comum da UE”
Havia exigências feitas pelos chamados frugais relativamente a pedidos reformas aos países do sul, que receberam mal estes pedidos. Uma vez que eles são contribuintes líquidos, eles têm razão para fazer estas exigências?
Sim. Faz sentido. Aliás, é um princípio que está no Tratado de Lisboa. A política económica de cada país é do interesse comum da UE, pelo menos na zona euro. Ou se aceita isto, ou não aceita, mas é o que está no tratado. E todos os governos e todos os países aceitaram. A política económica de cada país não é hoje, nos termos europeus, só uma matéria do interesse ou da responsabilidade do país. Se não quiserem, não estejam na UE. Mas se estão, têm de aceitar este princípio, que está consagrada juridicamente com carácter vinculativo.
Quando falamos da política económica de um país podemos estar a falar de questões como a abertura do seu mercado de trabalho?
Por exemplo. Quando foi a chamada crise da zona euro toda a zona euro tremeu por causa de problemas que foram localizados inicialmente nalguns países que tinham um rácio da dívida em relação ao PIB muito elevado. Ou seja: há aqui um interesse comum. Esta proposta de ligar as reformas aos financiamentos não é nova. Já tinha existido no tempo em que eu estava na Comissão. Nós apoiámos, o BCE apoiou e a Alemanha estava disponível. Em inglês dizia-se na altura contractual arrangements. Portanto, arranjos contratuais que eram para a zona euro e basicamente se traduziam nisto: nós apoiamos financeiramente aqueles que forem mais longe nas reformas.
Alguma vez essa condicionante chegou a ir para a frente?
Não. Na altura isto não foi aceite. E porquê? Porque houve uma santa aliança, cá está, entre os países da coesão e os países que agora chamamos frugais. Os da coesão não queriam que o dinheiro fosse desviado da coesão, porque os países da Europa Central e de Leste a maioria deles não faz parte da União Económica e Monetária. Mas a Holanda, e os habituais falcões contra a despesa, a Finlândia, a Áustria, a Dinamarca também não queriam. Mas, na altura, a senhora Merkel estava disponível para avançar para isto. E a Comissão também. Agora gerou-se uma situação com uma dimensão tal e, em que também não podia ser usado o argumento do chamado moral hasard porque, em rigor, enquanto na anterior crise alguns países estavam numa situação muito má porque eles próprios criaram essa situação, hoje em dia, embora com efeitos assimétricos, a crise tocou toda a Europa. E isto foi possível agora. Além de também eu pensar que a senhora Merkel está muito empenhada em deixar um legado europeu importante.
Trabalhou com Merkel. Esta Merkel é alguém que não está a pensar nas próximas eleições na Alemanha. Isto era algo que um líder alemão faria se estivesse a pensar nas próximas eleições?
Para já, uma declaração de interesses: eu sou amigo político de Angela Merkel. Tenho imensa consideração por ela. Aliás, tenho mantido contacto com ela já depois de sair da comissão. Conheci-a ainda antes de ela ser chanceler da Alemanha. Ela foi das pessoas que mais me encorajou a ir para a Comissão Europeia porque, na altura, o PPE queria que fosse um dos seus. E, na altura, ainda era chanceler da Alemanha Gerhard Schroeder e ela telefonou-me pelo menos duas vezes, encontramo-nos em Bruxelas e ela encorajou-me a aceitar o desafio de ser presidente da Comissão Europeia. Posso estar um bocadinho enviesado, mas considero que é uma grande sorte para a Europa ter neste momento Angela Merkel onde está, porque é sem dúvida o líder mais respeitado e com mais experiência da União Europeia.
E a saída dela [de chanceler] será uma ameaça para a União Europeia?
Acho que não. Acho que vai ser sempre difícil porque é sempre difícil suceder a líderes muito marcantes. Dito isto, acho que a Alemanha está solidamente ancorada na União Europeia. A Alemanha fez uma aposta e um compromisso estratégico sincero com a UE. E não é só Angela Merkel, nem o partido CDU, ou o SPD que está no governo agora. Os Verdes, que são o partido que mais tem crescido na Alemanha e que são um partido federalista europeu têm crescido muito. As pessoas falam muito no crescimento da AfD, que é a extrema-direita, mas os Verdes têm crescido mais e são talvez o partido mais europeísta que há na Alemanha. Portanto, a Alemanha está solidamente ancorada na União Europeia, mas não vai ser fácil suceder a Angela Merkel.
“Não estamos ainda na união de transferências”
Há um problema que se coloca em relação a todo este dinheiro que aí vem, que é: quem vai pagar? Se não forem os impostos europeus, vão ter de ser os Estados. Nessa altura pode colocar-se um problema porque vai haver realmente uma espécie de união de transferências.
Exatamente. Aliás, não estamos ainda na chamada união de transferências, na fiscal union, mas este passo com transferências diretas tão importantes, que são 390 mil milhões de euros, enquanto que os empréstimos são 360. Como disse na sua pergunta é: como vai ser financiado? Pode ser por recursos próprios, mas o único recurso próprio que agora foi aprovado foi uma taxa sobre o plástico não reciclável. Já foi dada como expectativa a obtenção de recursos próprios noutras matérias. E a Comissão já se comprometeu a apresentar isso de forma a poderem estar operacionais em 2023.
Como a taxa sobre as gigantes digitais?
Uma taxa digital, mas também uma taxa do carbono, uma reformulação do chamado ETS, Emissions Trading Scheme, que são mecanismos de transferências de direitos de carbono. E até, mas isso vai ficar mais para as calendas gregas, uma taxa das transações financeiras, que na altura eu próprio sugeri, mas que não haverá consenso. Agora, se os Estados não aceitarem estes recursos próprios, então terão de ser eles a aumentar a sua contribuição nacional. Por isso, há hoje uma probabilidade maior de se aumentarem os recursos próprios da UE. Porque senão serão os Estados que vão ter de aumentar a sua contribuição direta. Embora estas propostas sejam difíceis. Por exemplo, a taxa carbono dependerá, a meu ver, das eleições norte-americanas. Porque eu não vejo como é que a União Europeia consegue aplicar uma taxa de carbono em relação a produtos que venham dos Estados Unidos se não houver um acordo também para os EUA se integrarem no sistema global.
E aí é preciso que o candidato democrata ganhe?
Biden já declarou que estará muito comprometido com a chamada agenda do clima, mas com o atual presidente norte-americano não se pode sequer pensar nisso.
Isso é um processo que vai implicar também o congresso e que, portanto, nunca será fácil.
Exatamente. Vou contar uma coisa: o presidente Bush disse-me uma vez, quando eu estava a tentar que ele também se juntasse a nós, União Europeia, no programa que fizemos em 2007 contra as alterações climáticas, ele disse-me para eu nunca acreditar em nenhum presidente americano que dissesse que ia lutar contra as alterações climáticas. Porque dizia ele: mesmo que o Presidente quisesse fazê-lo, o Congresso nunca deixaria. E a verdade é que Clinton aceitou Quioto, mas não foi ratificado. Obama não aceitou Copenhaga, e na conferência de Copenhaga saiu das reuniões connosco, UE, para se juntar às potências emergentes: à China, à Índia, ao Brasil e outros. Só aceitou o Acordo de Paris nos tempos finais do seu segundo mandato, quando sabia que não tinha de se preocupar com a ratificação. E depois chega Trump e os EUA saem do acordo. Portanto, vamos ver se Bush tinha ou não razão, mas a verdade é que até hoje os EUA são o único país do mundo que não faz parte do Acordo de Paris. Embora, para sermos justos e equilibrados, não vamos esquecer o esforço que os EUA têm vindo a fazer, nomeadamente ao nível de alguns estados e também da investigação e da tecnologia para lutar contra as alterações climáticas. Mas aceitarem objetivos vinculativos não acredito que os EUA deem esse salto proximamente.
“Recomendaria muita transparência na utilização desses fundos”
Com o Fundo de Recuperação vem aí uma “pipa de massa”, para usar uma expressão sua, vezes dois. O que precisamos de fazer para que este Fundo de Recuperação funcione devidamente neste país? O dinheiro parece-lhe suficiente?
A mim parece-me, suficiente. Muito sinceramente a questão vai ser mais como utilizar o dinheiro porque não é por falta de dinheiro. Visto que me citou, isto é de facto uma pipa de massa, quase que uma orgia financeira. Dito isto, sabemos que a capacidade de absorção dos Estados em relação ao dinheiro comunitário é muito variável. Portugal não está numa má posição aí, mas também não é como já ouvi dizer o melhor. Longe disso. Importa a eficiência, a capacidade administrativa para gerir e aplicar os fundos estruturais, nomeadamente da coesão. Espero que esse trabalho seja feito. É essencial, mesmo decisivo no nosso país. Recomendaria muita transparência na utilização desses fundos. Tive uma ideia, não sei se alguém quer pegar nela, que é haver na Assembleia da República uma comissão de acompanhamento de utilização de todos estes fundos. Nestas alturas, com estes desafios excecionais, justifica-se ainda maior intervenção da Assembleia da República. Aliás, isso é uma ajuda ao governo. Os governos só podem ganhar com maior transparência.
Há outros países que tenham criado esse mecanismo?
Não sei se há. Mas em vez de fazermos aquelas comissões de inquérito a posteriori para ver o que funcionou mal, talvez fosse bom fazer uma comissão agora para que não corra mal.
Essa comissão seria para acompanhar especificamente o Fundo de Recuperação ou para todo o Quadro Financeiro Plurianual?
Para o Fundo de Recuperação justifica-se ou até para a própria aplicação dos fundos estruturais porque estão ligados os montantes do orçamento normal e os que vêm deste Fundo de Recuperação. Mas penso que por causa da urgência e da dimensão da relevância excecional que esta ajuda europeia tem para Portugal se justificaria um acompanhamento próprio, por exemplo, através de uma comissão de acompanhamento da Assembleia da República que garantisse a transparência. Seria também, do ponto de vista europeu, nós a mostrarmos aos nossos parceiros que não há ninguém mais interessado do que Portugal na boa utilização desses fundos. E que não há qualquer outra intenção que não seja a de promover, de facto, o desenvolvimento do nosso país. Este ponto é muito importante porque senão as pessoas em democracia ficam com a ideia de que vem dinheiro, mas que não se vê onde é gasto. Ou de que pode haver até às vezes alguns ganhos indevidos ou ilegítimos. Não estou na política ativa nem vou fazer qualquer comentário de política partidária, mas em termos de interesse nacional era muito bom para todos, Governo, oposição, para as instituições que garantíssemos à partida não apenas a eficácia na utilização dos fundos, mas a transparência na aplicação dos fundos. Porque, se há suspeitas, isso pode ter efeitos muito corrosivos no nível de confiança do nosso país.
Uma das coisas que parece ser uma nova política europeia é que a Europa, com este processo, vai necessitar de novos campeões. De campeões europeus. Isso era algo que a Europa tinha algum receio porque as próprias políticas de competitividade levavam-na a que fizesse com que algumas das grandes empresas europeias não se pudessem fundir porque precisavam, dentro do espaço europeu, competir entre elas. Portugal é um país sem capital, já quase não tem campeões sequer nacionais. Isto pode ser para Portugal uma ameaça ainda às poucas empresas com dimensão que tem? Como vê isso à escale europeia e à escala portuguesa?
Às vezes, essa questão tem sido mal entendida. Por exemplo, durante os 10 anos que estive na Comissão Europeia não houve um único caso de fusão que nós tenhamos impedido.
Recentemente houve um.
Recentemente houve, foi o caso Siemens-Alstom. Mas muitas vezes também alguns grupos europeus gostam de dizer isso: que é por causa da Comissão que não fazemos. Não. Há de facto regras da concorrência, das ajudas de Estado, que têm de ser respeitadas para garantir precisamente a competitividade. Mas é verdade que a Europa está a pensar muito mais politicamente. Aliás, se repararmos, já em alguns documentos da UE que há muito tempo se fala em autonomia estratégica. Macron tem vindo a falar muito, e a meu ver é um exercício de retórica muito inteligente, em soberania europeia. Que é uma forma de combater os soberanistas franceses, da extrema-direita à extrema-esquerda. E a própria presidente da Comissão falou numa Comissão mais geopolítica. Ou seja: a UE está a perder a sua inocência, com o que eu me congratulo. Porque recordo-me bem quando a minha Comissão abriu processos anti-dumping contra a China por causa dos painéis solares ou por causa do calçado, fomos criticados por Cameron, pelo governo inglês, mas também por outros governos, por sermos protecionistas quando estávamos na realidade apenas a defender o interesse europeu de acordo com as regras europeias. A Europa está a fazer uma evolução para deixar de se ver apenas como espaço e para se assumir como potência. O que faz sentido porque responde também à situação geopolítica global, o que significa que, neste momento, os líderes europeus estão todos conscientes de que têm uma Rússia muito mais agressiva, uma China muito mais assertiva ou afirmativa e uns EUA mais imprevisíveis. Portanto, se não forem os europeus a definir os seus próprios objetivos quem é que o fará? É uma evolução que já vinha antes desta pandemia, mas que a pandemia veio reforçar também por causa da deterioração do ambiente geopolítico global.
Desglobalização, Diversificação, Digitização e Descabornização
Mas a pandemia levou muitas pessoas a dizer que temos de ter mais produção na Europa e não depender tanto da China.
Costumo falar em quatro Ds, que são: a Desglobalização, a Diversificação, a Digitização e a Descabornização. Aquilo que referiu é diversificação. As empresas e os governos entenderam que não podem estar dependentes nalgumas questões de cadeias de produção ou distribuição que estão localizadas muito longe ou em jurisdições que não são totalmente confiáveis. Mas não é só a Europa que pensa assim. Neste momento o Japão está a pagar às empresas japonesas que estão localizadas na China para se relocalizarem no Japão. Há um movimento de relocalização de muita produção. E eu ainda há dias vi numa entrevista com um líder de uma das maiores empresas mundiais de equipamento de proteção individual, que é australiana, que disse que os fornecedores deles na Ásia num só dia aumentaram o preço mais de 1000%. E atrasaram o fornecimento porque deram preferência aos seus países. Essa empresa, por exemplo, tem como objetivo principal na Europa investir em Portugal. Portugal também tem excelentes hipóteses.
Por ter custos de produção mais baixos?
Com esta relocalização na Europa Portugal tem condições de competitividade muito boas porque consegue produzir a custos mais baixos que os países onde os salários são muito mais elevados. Portanto, são os países da Europa central e de Leste e alguns países da chamada periferia, como Portugal, que podem, se houver políticas inteligentes. Espero que não se gaste dinheiro em projetos megalómanos que não são realistas, mas que se faça uma coisa essencial: investir onde Portugal já tem algumas capacidades e algum know how. Por exemplo, o caso do têxtil. Nós hoje em dia temos ainda uma fileira do têxtil praticamente completa. Aliás, muitas destas produções são feitas cá em Portugal. Por exemplo, na região norte há têxtil de qualidade que é competitivo a nível global. Nós temos é de fazer o upgrade de competências para estar no mercado global e não ter medo da concorrência global. Porque é óbvio que Portugal, com a sua dimensão, não é com o mercado português que vai a algum lado. Tem de ser com o mercado europeu e global.
Há pouco falou da China e da perda de inocência da UE. Tem sido atribuída alguma responsabilidade desta pandemia à China por não ter agido nem comunicado a tempo. Acredita que a UE possa pedir responsabilidades à China de uma forma mais afirmativa?
É verdade praticamente confirmada que a origem, o primeiro foco importante de infeção se verificou na China, mas daí a considerar que houve qualquer espécie de conspiração francamente é algo que eu não aceito. Não acredito.
Referia-me mais ao facto de ter comunicado mais tarde.
Não acho. Francamente as pandemias acontecem ciclicamente, umas nascem aqui, outras acolá. A hipótese de intervir juridicamente aí ou pedir algum tipo de compensação não me parece realista. Agora, claro está, que os países tomaram nota dos comportamentos dos diferentes governos, concerteza que sim. E o que se está a passar hoje, já reflete isso. Aliás, antes da pandemia já a União Europeia e a Comissão Europeia tinha declarado a China como um competidor estratégico, um rival estratégico. Antes da pandemia. Sobre esta pandemia e os seus possíveis efeitos, não sei se haverá uma mudança de paradigma como alguns sugerem. É muito cedo, mas já é possível dizer que ela está a acelerar tendências, ampliando e aprofundando tendências que vinham de antes. As tais que anteriormente já disse, da digitização, da desglobalização, da descarbonização.
A desglobalização vinha de antes?
Vinha. A luta entre os Estados Unidos e a China foi antes da pandemia. Que não era apenas uma guerra comercial ou de tarifas. Era uma guerra tendo em vista o decoupling, a dissociação do ponto de vista tecnológico. Que é uma guerra entre aspas, mas que na prática também tem a ver com uma questão de defesa.
Mas ao mesmo tempo que havia essa guerra entre os EUA e a China, a China estava numa ofensiva com a rota da seda para tentar chegar a todo o mundo.
Já antes da pandemia estava aberto um conflito cada vez mais evidente entre os Estados Unidos e China, em termos comerciais, mas que era também, como revela o caso Huawei, na questão tecnológica. Porque estas tecnologias, por exemplo a Inteligência Artificial têm uma importância decisiva para a Defesa, para a Segurança. É uma competição geopolítica pela supremacia mundial. É o que se está a passar. E é por isso que a Europa é uma necessidade da União Europeu. Não por qualquer idealismo, mas para defender os nossos interesses.
Esse caso da Huawei é muito interessante, porque tem dois dos seus principais competidores na UE. A Ericsson e a Nokia. O que é que a UE está a fazer para que estas empresas ganhem a dimensão que deviam ganhar para serem os competidores globais?
A UE pretende definir-se como não protecionista e eu acho que está bem nesse ponto de vista.
“Temos de encontrar formas de conversar com a China”
Mas quando é preciso competir com a China podemos ter essa ingenuidade?
É isso que está em discussão neste momento entre os países europeus. A Inglaterra que era o grande campeão da abertura à China, na chamada Idade do Ouro do seu relacionamento. Foi dito pelo primeiro-ministro David Cameron, que queria um acordo de livre comércio com a China e que criticou a Comissão Europeia por não estar nessa linha. Quando nós dissemos que era muito cedo para qualquer acordo de livre comércio, vamos então negociar e está ainda a ser negociado — isso começou no meu tempo também, mas não foi ainda concluído — um acordo de investimento com a China. E o acordo é precisamente para estabelecer o tal level playing field. Ou seja: condições comparáveis.
É errado ir para uma política de confrontação aberta e total com a China. É impossível isolar a China, que é uma das duas maiores economias mundiais e, de acordo com algumas estatísticas, já será a maior economia mundial. Depende do modo como se calcula o produto. Em relação à China há que perceber isto: temos regimes políticos diferentes e há diferenças importantes, mas temos de ter a inteligência e a sofisticação de isolar, de encapsular os problemas sérios e nesses tomar posições de princípio, mas não permitir que agora a ordem internacional se transforme numa total desordem. Porque há bens públicos globais para os quais é necessária a participação da China, dos EUA, da Europa e dos principais atores. Sem a China não se consegue resolver o problema das alterações climáticas. A China já é hoje o maior produtor de emissões de gases de efeitos de estufa. Mesmo que a Europa consiga a neutralidade carbónica que está agora como objetivo para 2050, mesmo que conseguisse amanhã isso não resolvia nada. Sem China e EUA, que são os dois maiores poluidores, não há solução.
Se dizemos que isso, de facto, é um problema existencial para o futuro do planeta e do mundo. Ou acreditamos ou não acreditamos. Se acreditamos temos de encontrar formas de conversar com a China. Mas também para a paz que é o maior bem público global que pode haver, e para a estabilidade financeira, para a luta contra o terrorismo, até para alguns conflitos regionais, desde o Irão à Coreia do Norte. É necessário manter o diálogo com a China. Ao mesmo tempo, quando há diferenças, dizê-las claramente e com firmeza. É assim também que os nossos parceiros ou rivais, por exemplo, nos respeitam. Por exemplo, em 10 anos que presidi à Comissão Europeia, havia uma cimeira por ano com a China. Não houve um único ano em que a China não nos tenha pedido para nós aceitarmos o reconhecimento deles como economia de mercado. Nunca reconhecemos. Muito respeitosamente sempre lhes disse: os senhores são um grande mercado, um dos maiores do mundo, mas não cumprem as cinco condições que achamos que deve cumprir para ser classificado como economia de mercado. Mas fizemos isto sem acrimónia e sem confrontação. Agora, estar numa quase sinofobia não é útil. O medo é sempre mau conselheiro.
Mas a Europa pode aceitar ter redes Huawei em 5G?
Isso, francamente, não tenho conhecimentos suficientes acerca da ameaça que provavelmente representa a Huawei. Até há pouco tempo a opinião dos especialistas, incluindo Inglaterra, é que era perfeitamente possível controlar essa ameaça ou, pelo menos, circunscrevê-la. Penso que se houver perceção de que há ameaças à segurança nacional, então os Estados têm toda a legitimidade para recusar.
A Inglaterra agora já mudou de posição.
Pois mudou, mas mudou depois da mudança de posição dos EUA, que é, de facto, extraordinário: passar-se do 8 para o 80 em tão pouco tempo. O Reino Unido passou de ser o país mais aberto à China na Europa para ser hoje o país mais hostil à China na Europa. O maior investimento chinês na Europa é no Reino Unido não é na Grécia nem em Portugal.
“Está a haver uma aceleração da história”
Enquanto o mundo estava distraído com a pandemia, houve algumas inflexões geopolíticas relevantes. A Rússia mudou de Constituição, que é agora mais autoritária, ao mesmo tempo a Turquia também fez gestos agressivos como manobras militares ou simbólicos como a reconsagração como mesquita da antiga catedral de Hagia Sofia que são mesmo aqui às portas da Europa. São dois poderes a evoluir no sentido do autoritarismo. Isto perante a distração das opiniões públicas. Também das autoridades?
Tem toda a razão. Hoje há um excesso de notícias e é impossível hoje digerirmos todas as informações que temos. E, portanto, se há distração? Talvez haja porque as opiniões públicas estão concentradas nesta ameaça terrível que é esta pandemia. Mas há outras ameaças que se mantêm e outras que aceleraram. Isto coloca um problema muito interessante do ponto de vista político, até do ponto de vista teórico, que é o problema da sobrecarga dos sistemas políticos. Que é um ponto real. O dia para o presidente norte-americano ou para a presidente da Comissão, para o primeiro-ministro inglês ou para a chanceler alemã tem 24 horas, como tem para qualquer cidadão. E processar esta informação e ter capacidade de decisão, de exercer um bom julgamento, é hoje em dia muitíssimo desafiante. Portanto, eu acho que está a haver uma aceleração da história.
Falámos há pouco da China e o crescimento da China é o facto mais relevante das últimas décadas. Nunca houve um crescimento de uma potência com esta rapidez que a China teve. Se me perguntarem qual é o processo mais relevante dos últimos 30 anos é de longe o crescimento da China, o qual está a transformar a geopolítica global. Mas depois também por causa das evoluções de natureza tecnológica, que estamos só no início delas, vamos verificar o aceleramento de factores disruptivos, incluindo do ponto de vista da segurança. Estamos a assistir, mais na Ásia do que na Europa a essas ameças à segurança. Uma das coisas que muitas vezes me diziam os chineses, e creio que não era só por cortesia, é que admiravam e respeitavam muito a União Europeia porque tinha feito algo que eles na Ásia não tinham conseguido fazer que é a reconciliação. A verdade é que hoje é impensável um conflito entre as grandes potências europeias: a França, a Alemanha, a Inglaterra, a Itália. Mas na Ásia está-se a assistir a um agravar de tendências e tensões cujo desfecho é incerto. Isso aliás tem um aspeto económico muito importante porque estamos numa idade de incerteza. E eu acho que tem a ver com essas tendências.
Vive em Londres. A cidade ficou muito diferente depois do Brexit?
Londres votou contra o Brexit por uma grande maioria. E hoje é talvez a cidade hoje mais cosmopolita do mundo. Acho que passou Nova Iorque desse ponto de vista por causa das políticas da atual administração. É sem dúvida uma das duas cidades mais cosmopolitas do mundo, mas a verdade é que há um ambiente mais negativo. Agora com o Covid, naturalmente, porque o Reino Unido é dos países mais atingidos. Em números absolutos é o pior desempenho que há em termos de número de mortos na Europa e um dos mais atingidos no mundo. Precisamente por isso, Também pela sua abertura porque eles não quiseram fechar na fase dos focos na China, no Irão, Itália e Espanha, eles mantiveram sem qualquer espécie de controlo a chegada dos visitantes destes países. E como Londres é um grande hub, isso explica que tenha havido um foco de infeção maior do que noutras zonas europeias.
Há uma certeza tristeza no Reino Unido hoje, embora, para ser justo, Boris Johnson esteja a tentar reenergizar o Partido Conservador e tenha tido uma vitória muito impressionante nas últimas eleições. Mas antes mesmo do Covid fazia sentir-se já uma desilusão com o Brexit e mesmo a saída de algumas atividades importantes. Por exemplo, no setor financeiro muita dessa atividade da City está a deslocalizar-se para Frankfurt, para Paris, mas também para Dublin, para Madrid, para Milão, para Amesterdão. Os grandes bancos internacionais estão cada vez mais a deslocalizar-se. Embora Londres vá continuar a ter grande influência porque há um know how acumulado ao longo de séculos, mesmo. E há ali um cluster de competências que não são só da banca, são de tudo o que está à volta, desde a consultadoria até à advocacia, que continuarão a colocar a praça financeira de Londres como uma das maiores do mundo. Neste momento, disputava com Nova Iorque a primazia, mas vai continuar a ter muita importância.
De qualquer maneira, é preciso ver isto: Boris Johnson não é Trump. E o Partido Conservador embora na realidade é hoje dominado pelos chamados brexiteers, está a a tentar um Reino Unido global. Embora o voto no Brexit tenha sido um voto nativista. Aliás, sociologicamente foi o voto de quem era mais velho, com menor educação e menos urbano. A realidade é que o Partido Conservador e o governo está a tentar apresentar como um voto por um Reino Unido global. E dizer: sem as peias europeias nós podemos seguir a nossa verdadeira vocação global ou globalizante. É um discurso não apenas de Boris, mas de Michael Gove e outros.
A Rússia não conta?
Economicamente está numa situação de declínio, embora, atenção, a gestão da decadência de uma grande superpotência como era a Rússia seja complicado. E Putin, que aliás conheço bem. Putin foi o líder fora da UE com quem me encontrei mais vezes, segundo o meu gabinete 25 vezes. Putin quando vê uma oportunidade para intervir, ele intervém. Foi o que fez na Ucrânia com a anexação da Crimeia. Foi o que fez na Síria depois das hesitações do presidente Obama em relação à Síria. Dito isto, é uma potência com a qual tem de se contar e do ponto de vista de Defesa muito importante e muito relevante. Acho que foi também um erro, lamentável, da parte do presidente Obama quando disse que a Rússia era apenas uma potência regional. Nunca se deve humilhar ninguém e também não se deve humilhar os países. Os países são um bocadinho como as pessoas, também têm memória. E têm ressentimento. Aliás, quanto a mim, o presidente Putin é um produto do ressentimento russo. Mas a Rússia, do ponto de vista económico, é uma potência de média dimensão. Não é uma grande potência.
É uma potência militar, mas não económica.
Talvez não seja politicamente correto dizer, mas a economia da Rússia hoje é menos diversificada do que era a economia da União Soviética. Está mais dependente das fontes de energia que tem, do gás ou do petróleo do que o que esteva antes. Tem muito pouca diversificação. Além disso tem armamento, mas pouca diversificação. O que é extraordinário quando comparamos a Rússia com a China. Se reparamos do ponto de vista económico, nos últimos 20 anos, a Rússia e a China é de facto uma das grandes divergências que há na história económica. Isso obviamente que tem dado mais confiança à China e tem provocado maior ressentimento na Rússia.
Também tem limitações populacionais.
Tem. E esse é um problema muito importante para a Europa. O envelhecimento da população europeia é um problema seríssimo. Por isso, devemos olhar cada vez mais para as políticas de natalidade. Não é só com imigração que se resolve este assunto. Precisamos de ter mais pessoas e mais novas nos nossos países.
“A União Europeia é um processo, não é apenas um one off“
Mudando de assunto. Em breve vai ocorrer a presidência portuguesa da UE. Na última, em 2007, houve o célebre “porreiro, pá” e fechou Tratado de Lisboa. Desta vez, a presidente da UE está votada a uma maior irrelevância?
Não devemos ver as presidências como uma espécie de concurso de beleza. Eu sei que às vezes é bom para o ego dos países, nomeadamente aqueles que procuram nesse período ganhar uma imagem melhor do que aquela que a si próprios se atribuem. É verdade que a presidência portuguesa de 2007 teve uma grande visibilidade. Também veio a seguir à presidência alemã. Aliás, os grandes acordos para o Tratado de Lisboa, vamos ser justos, foram feitos durante a presidência alemã. Foi a declaração de Berlim assinada por Merkel em nome do Conselho Europeu e por mim próprio em nome da Comissão. Depois da não-ratificação do Tratado Constitucional pela França e pela Holanda pensou-se: vamos relançar este processo, mas vamos conseguir primeiro uma declaração que agregue politicamente. Na altura havia alguns problemas, por exemplo, o presidente ultra-cético na República Checa, que era Klaus. E conseguiu-se isso, que eu acho que teria sido difícil conseguir naquela altura sem a força da Alemanha. Mas depois tivemos, além disso, a presidência portuguesa com a qual eu colaborei muito como presidente da Comissão. Tivemos outras iniciativas muito importantes.
A cimeira UE-África ser na presidência alemã e não ser na portuguesa é um erro?
Era o normal que estava previsto. Portugal gostaria de a ter feito, mas era o normal no calendário. Portugal não tem de se preocupar se vai ter assuntos muitos sexy, o que tem é de fazer bem o seu trabalho. Com competência. Temos uma diplomacia competente, temos já um conjunto de pessoas também já bastante experientes nas questões europeias. Podemos fazer uma boa presidência e não estar agora preocupados se vamos ter os assuntos com mais glamour do ponto de vista de comunicação. Eu espero é que o maior número possível de assuntos seja resolvido nesta presidência e espero isso. Aliás, foi bom que se chegasse a este acordo no Conselho Europeu nas questões financeiras porque eu espero que isso agora obrigue a Alemanha finalmente a dar o passo que já devia ter dado há mais tempo no que diz respeito à União Bancária. Tem de mostrar agora mais alguns resultados na parte que falta da sua presidência. Vamos é trabalhar neste sentido que, de facto, a União Europeia é um processo, não é apenas um one off, apenas um evento aqui e acolá. E acho que Portugal verá em que estado os dossiers estão para fazer avançar a UE e Portugal é visto como um país europeísta, que desse ponto de vista tem um certo prestígio a nível europeu.
“Não vou falar de política interna…”
Disse que não quer falar de política nacional, mas não se vê a regressar à política portuguesa?
Não.
Regressar nunca? É uma coisa que fechou na sua vida para sempre?
Exatamente. Acho que tudo tem o seu tempo. Eclesiastes, conhecem? Estive na vida política ativa mais de 30 anos, o que não quer dizer que não possa discutir e participar no espaço público como estou a fazer hoje convosco, partilhando as minhas experiências e procurando atualizar-me com o que se vai passando. Aí, acho que posso dar alguma contribuição, mas à vida política ativa não voltarei.
Belém nunca foi algo que o atraísse?
Não está no meu horizonte qualquer… Obviamente que a Presidência da República é uma grande honra para qualquer português, mas não serei candidato a Presidente da República.
Em janeiro de 2016, deu o apoio ao atual Presidente. Mantém esse desejo?
Não vou falar de política interna, já lhe disse isso. Convidaram-me para uma conversa sobre a Europa e o Mundo.
Quando se despediu da Comissão, os membros do seu gabinete passaram a música “Go West” e falava-se muito de poder ser hipótese para secretário-geral da ONU. Vê-se a ocupar outro cargo internacional?
Fiquei muito satisfeito que tivesse sido o engenheiro António Guterres a ocupar esse cargo. Aliás, discretamente colaborei nesse sentido, falando a alguns líderes mundiais. Mas cargos políticos no sentido internacionais também não estou a considerar. Algumas funções de carácter internacional aqui e além eu tenho tido. Fiz parte de uma comissão agora que apresentou às Nações Unidos um relatório para o apoio à Educação a nível global, com Gordon Brown e com outros. Tenho tido algumas intervenções em fóruns desse tipo. Estou ativo no clube de Madrid, que reúne ex-chefes de Estado e ex-chefes de governo. E ainda há pouco tempo participei numa iniciativa de fazer apelos ao G-20 para que haja justiça na distribuição das vacinas no caso delas virem a ser encontradas porque agora também estamos a assistir a esse problema, que é o protecionismo ou nacionalismo das vacinas. E acho que é importante que haja a garantia de acesso a vacinas por todos, independentemente de estarem ou não nos países que estejam a desenvolver e produzir em primeiro lugar. Tenho tido um papel que em Portugal talvez não seja conhecido, de apoio às redes internacionais de mulheres na liderança. Faço parte de uma organização que é a Women Political Leaders em que tenho apoiado porque também fiz isso muito na comissão e as questões de maior influência e de discriminação positiva a favor das mulheres no espaço político e público em geral. Tenho tido intervenção em algumas organizações deste tipo, mas não são organizações de carácter verdadeiramente político, mas de promover bens públicos globais. Seja a luta contra as alterações climáticas até às questões do desenvolvimento que me interessam muito. Também faço parte de uma organização que é o conselho global para o desenvolvimento sustentável. Portanto, isso vou continuar, porque acho que ainda tenho energia suficiente para isso, a intervir mas neste plano.
Este ano não houve a conferência de Bilderberg?
Este ano, não.
Também é algo em que continua empenhado?
Sim. Sou membro do comité executivo e represento o nosso país nesse grupo.
Última questão sobre um cargo que já ocupou. Úrsula von der Leyen está a desenvolver bem o seu papel?
Acho que sim. Fiquei muito satisfeito quando ela foi escolhida. Não por ser da minha família política, mas também. É uma pessoa que eu já conhecia antes e que tem uma visão geopolítica.
Não é uma Merkel 2?
Acho que não. Foi membro do governo de Merkel, mas ela vem da Defesa. Isso é importante. Era ministra da Defesa. Tem uma visão geopolítica e a Europa precisa de consolidar a sua visão geopolítica. Precisa de traduzir do ponto de vista da política externa e da Defesa as competências e as capacidades que tem do ponto de vista económico e comercial.
[Veja a entrevista na íntegra:]