A sala de aulas no segundo andar da escola de Malaya Rohan, na região de Kharkiv, para onde foi levada à força pelo militar russo, estava gelada. Era a madrugada do dia 13 de março, há 16 dias que as tropas de Vladimir Putin tinham invadido a vila e que estava refugiada na cave com cerca de 40 pessoas, entre elas a mãe, a irmã de 13 anos, o irmão de 24, e a filha, de apenas 5.
Pediu ao agressor que a deixasse vestir-se, para atenuar o efeito do frio cortante do inverno na Ucrânia, mas ele permitiu-lhe apenas que cobrisse a parte de cima do tronco; da cintura para baixo permaneceu nua, sem calças nem roupa interior. “Enquanto me vestia, o soldado contou-me que era russo, disse-me como se chamava e que tinha 20 anos. E disse-me que eu o fazia lembrar uma rapariga com quem tinha andado na escola”, contou Olha (nome fictício), dias mais tarde, à organização Human Rights Watch. Terá sido por isso que, de entre tantas pessoas, o militar russo escolheu abusar sexualmente dela — que até tinha a filha pequena a dormir ao colo.
O terror começou perto da meia-noite, quando o homem partiu uma janela de vidro e forçou a entrada na escola. Uma vez na cave, armado com uma espingarda e uma pistola, exigiu que as pessoas, na maioria mulheres e crianças, formassem uma fila. Apontou para o irmão de Olha e saiu com ele, para ir procurar comida no exterior.
Duas horas mais tarde voltaram e sentou-se no chão, deixou que as pessoas fossem à casa de banho e se preparassem para voltar a dormir. Foi quando o militar se levantou que ordenou à mulher, de 31 anos, que o seguisse. “Disse-me para lhe fazer sexo oral. Esteve o tempo todo com uma arma apontada à minha cabeça ou à minha cara. Por duas vezes disparou contra o teto e disse que era para me dar mais ‘motivação’”, revelaria mais tarde Olha, cujo martírio estava ainda longe do fim. Nessa mesma noite, seria novamente violada pelo soldado russo, 11 anos mais novo. E violentamente agredida por ele.
Chegou a ameaçar matá-la, quando ela recusou voltar à cave para ir buscar as suas coisas para poder passar a noite ali: “Sabia que a minha filha ia chorar assim que me visse.” De faca na mão, o militar voltou a forçá-la, lacerou-lhe o pescoço, feriu-a no rosto, cortou-lhe algumas mechas de cabelo, bateu-lhe com um livro na cara e esbofetou-a repetidamente. Depois, perto das 7h, ordenou-lhe que lhe arranjasse alguns cigarros e acabou por abandonar a escola com eles.
Nesse mesmo dia, Olha e a família percorreram a pé os quase 22 quilómetros entre Malaya Rohan e Kharkiv. Uma vez na cidade, instalados num abrigo anti-bombas, Olha recebeu tratamento médico básico providenciado por voluntários. “Tenho sorte em estar viva”, disse à Human Rights Watch, quando denunciou os abusos a que foi submetida.
Relatos como o de Olha começaram a surgir semanas depois do início da invasão russa e, desde então, têm sido uma constante. Não se sabe ao certo — se é que alguma vez se vai saber — o número de vítimas de violação por parte dos soldados russos durante a guerra, mas, de acordo com a procuradora-geral da Ucrânia, os agressores não escolhem nem género nem idades: as vítimas são mulheres, homens, crianças e até idosas.
Homens e rapazes terão sido violados pelas tropas russas na Ucrânia, acusa ONU
A La Strada-Ucrânia, uma organização não governamental (ONG) que dá apoio a vítimas de tráfico humano, violência doméstica e abuso sexual na Ucrânia, recebeu até ao momento denúncias de 16 casos de violação, todas elas por parte de mulheres civis, à exceção de uma situação em que a vítima é um homem. As idades são variáveis, mas não ultrapassam a casa dos 50. Três são menores, com 17, 13 e 12 anos.
“Todos os contactos que recebemos foram porque as pessoas precisavam de ajuda, não porque queriam denunciar a situação”, explica a responsável pela organização, Kateryna Cherepakha, ao Observador.
Sem entrar em pormenores, para preservar a privacidade das vítimas, a líder da ONG refere que os relatos que receberam foram feitos na sua maioria através da rede social Telegram, ou pela própria vítima ou por pessoas que testemunharam o que aconteceu. Vão desde violações em grupo a situações em que há apenas um agressor, há incidentes isolados e abusos que aconteceram de forma repetida. Em alguns casos, não houve testemunhas e outros aconteceram à frente de terceiros: um deles foi o de uma mulher violada em frente ao filho.
O que aconteceu a Natalya (nome fictício) foi algo semelhante. À ucraniana, de 33 anos, de nada serviu o lençol branco colocado no portão de sua casa, logo a 8 de março, o dia em que perceberam que os russos tinham chegado a Brovary, na região de Kiev, a indicar que ali morava apenas uma família e que ninguém queria problemas.
Apenas um dia mais tarde, logo pela manhã, acordaram com o som de um tiro seco e o estrondo do portão a ser arrombado. Quando saíram de casa, Natalya, o marido e o filho de apenas 4 anos, de mãos levantadas, deram de caras com o cão da família, morto no chão, e vários soldados russos, que se desculparam. Achavam que não morava ali ninguém, não queriam fazer mal a ninguém, recordou a ucraniana.
Um deles, o comandante, destoou: disse a Natalya que, não fosse estarem em guerra, tinha a certeza de que entre ambos haveria de acontecer alguma coisa — “romance” foi a palavra utilizada pelo jornal britânico The Times, a quem a mulher viria a contar a história.
Não foi o que aconteceu nessa mesma noite, quando o comandante voltou a arrombar o portão com outro militar que não estava presente durante a manhã. Natalya foi violada várias vezes, enquanto o filho estava numa divisão ao lado, às escuras e a chorar. O marido tinha sido morto a tiro instantes antes, no exterior da casa: “Matei o teu marido porque ele era um nazi”, foi o que lhe disseram.
Quando os russos saíram, a ucraniana conseguiu ir ter com o filho, que estava paralisado com tanto medo. Nem meia hora depois, os soldados regressaram, violaram-na novamente e voltaram a sair. À terceira, estavam tão alcoolizados que mal conseguiam manter-se em pé e acabaram por adormecer nas escadas da casa.
Foi nessa altura que Natalya pegou no filho e saíram de casa. “Disse ao meu filho: ‘Temos de fugir muito depressa ou vamos levar um tiro’”, relatou ao The Times. “Enquanto abria o portão, o meu filho estava ao lado do corpo do pai, mas estava escuro e ele não percebeu que era o pai e disse: ‘Vamos levar um tiro como este homem aqui?”
Violações como arma de guerra: o que se está a passar na Ucrânia?
Não há memória de conflitos armados sem casos de violação. A garantia é dada pelas próprias Nações Unidas, num relatório de 1998: “A violência sexual durante conflitos armados não é um fenómeno. Existe há tanto tempo quanto existem conflitos.”
Apesar de estes casos serem uma constante ao longo da história, a situação mudou nos conflitos mais recentes e a violação tem cada vez mais sido usada como arma de guerra. No livro “Our Bodies, Their Battlefield. What War Does to Women” (“Os nossos corpos, os seus campos de batalha. O que a guerra faz às mulheres”, numa tradução livre), publicado em 2020, a jornalista Christina Lamb resume em poucas palavras a violação em contexto de guerra: “É a arma mais barata que o homem conhece. Destrói famílias e esvazia aldeias. Transforma as raparigas em párias que querem pôr termo à vida quando ela mal começou. Gera crianças que são recordações diárias para as suas mães da provação pela qual passaram e são muitas vezes rejeitadas pela sua comunidade. E é quase sempre ignorada nos livros de história.”
“A diferença entre violações que acontecem no caos da guerra, devido ao colapso da lei e da ordem, e a violação usada como arma de guerra é que, neste caso, é algo sistemático, em que é dito às pessoas para violar mulheres, e por vezes homens”, diz Christina Lamb ao Observador. Trata-se de uma “estratégia deliberada”, explica a jornalista do The Times, que pode ter vários objetivos: motivos religiosos, eliminar um determinado grupo de pessoas considerada “da etnicidade errada”, entre outros.
“É, acima de tudo, uma forma de humilhar o inimigo e expulsá-lo de um local. Violar mulheres e meninas é, infelizmente, uma maneira muito eficaz de ocupar território e obrigar as pessoas a saírem.”
Christina Lamb dá alguns exemplos: as violações nas guerras na Bósnia, em que os sérvios tinham como principal alvo as mulheres bósnias muçulmanas, e no Ruanda, em que os homens hutu atacavam as mulheres tutsi, e os casos das mulheres yazidis, vítimas dos combatentes do Estado Islâmico, e das jovens raptadas pelos combatentes do Boko Haram, na Nigéria.
“A estratégia de limpeza étnica no conflito na Bósnia foi que as violações e os homicídios iriam obrigar as pessoas a abandonarem uma zona. Depois, a palavra espalhar-se-ia e as pessoas saíram antecipadamente dos locais, não sendo preciso retirá-los à força”, afirma ao Observador Tom Mockaitis, professor de História na Universidade de DePaul, em Chicago (Estados Unidos).
Já Margeret MacMillan, professora de História na Universidade de Toronto e professora emérita de História Internacional da Universidade de Oxford, fala também num “esforço muito consciente” em usar a violação como forma de “desmoralizar”, “destruir a coesão comunitária” e tentar destruir o inimigo “enquanto comunidade”.
“A violação é algo que, infelizmente, faz parte da guerra, mas acho que aquilo a que estamos a assistir no século XXI é a violação a ser usada muito conscientemente como arma de guerra. Isto não são apenas soldados fora de controlo, é algo que, em muitos casos, os comandantes os encorajam a fazer”, explica a canadiana ao Observador.
Para a docente universitária, “há uma tentativa deliberada de destruir a comunidade contra a qual se está a lutar”: “Nas sociedades, as mulheres são as que têm os filhos, portanto estão de uma forma a criar o futuro da sociedade. Se se conseguir humilhar, destruir, fazer com que as mulheres tenham outras crianças [que não as que pertencem à sua comunidade], então está-se a tentar ou mesmo a destruir o futuro da sociedade contra a qual se está a lutar.”
É precisamente esse o relato feito por uma sobrevivente da guerra na Bósnia: “Eles queriam humilhar-nos. Diziam-nos diretamente, olhando-nos nos olhos, que nos queriam engravidar”, lê-se num documento da Human Rights Watch, que refere uma investigação da União Europeia, no início de 1993 — quase um ano depois do início da guerra — , que dava conta de 20 mil casos de violação só nesse período.
O diretor da delegação portuguesa da Amnistia Internacional não olha para a violação como uma arma de guerra. Ao Observador, Pedro A. Neto explica que qualquer agressão a civis “é muito próxima de um crime de guerra” e que as Convenções de Genebra preveem o “respeito por tudo o que está fora da guerra”. E isso inclui tanto as pessoas como as infraestruturas ligadas à sociedade, como prédios de habitação, hospitais, escolas e teatros, que devem ficar “fora da guerra”.
“Violar pessoas não pode ser arma de guerra porque é terror absoluto, não tem qualquer fundamento estratégico para ganhar um conflito e não tem qualquer cabimento num cenário de guerra”, afirma Pedro A. Neto, considerando que nos relatos que chegam da Ucrânia “não há qualquer estratégia, há apenas barbárie e selvajaria”. “E isso é um crime de guerra.”
Ainda na última terça-feira, a procuradora-geral da Ucrânia acusou a Rússia de estar a usar a violação como tática de guerra para “assustar a sociedade civil” e fazer de tudo para obrigar a Ucrânia a “capitular”: “Tenho a certeza de que foi uma estratégia”, garantiu Iryna Venediktova aos jornalistas, numa conferência de imprensa em Irpin, nos arredores de Kiev.
Para Christina Lamb, é demasiado cedo para se saber se a Rússia está ou não a usar as violações como arma de guerra na Ucrânia, porque o conflito começou há apenas dois meses. “O que eu diria é que, efetivamente, parece que há muitos casos [de violação], não são apenas alguns, portanto, isso sugere que se trata de algo mais sistemático, mas ainda não sabemos”, explica a jornalista, relembrando que, por norma, estes casos só são conhecidos após o fim do conflito. “Este é um tipo de guerra bastante diferente, em que ouvimos falar das coisas quase em tempo real.”
Margaret MacMillan, autora do livro “War: How Conflict Shaped Us” (“Guerra: como o conflito nos moldou”, numa tradução livre), também considera prematuro dizer o que se passa na Ucrânia, mas considera que a “retórica dos líderes russos”, nomeadamente a de Vladimir Putin, “tem encorajado esta ideia dos ucranianos como presas dos soldados russos”. E recorda uma intervenção de Putin, feita ainda antes do início da guerra, em que o Presidente da Rússia cita aquilo que foi enquadrado como sendo o verso de uma canção punk-rock da era soviética sobre violação e necrofilia: “Quer gostes ou não, aguenta, minha querida.” — na altura, o Kremlin negou que Vladimir Putin tivesse citado esta música, mas sim uma música do folclore russo.
“A linguagem vem de cima”, sublinha a docente universitária ao Observador, acrescentando que os termos utilizados pelo regime russo, fazendo referências ao nazismo e ao fascismo, faz com os soldados tenham “liberdade para tratar estas pessoas como se fossem menos do que seres humanos”.
“A linguagem está a desumanizar os ucranianos. Eles não tratariam as suas próprias mães, mulheres e namoradas assim, mas, pelo que sabemos — e como disse ainda é muito cedo [para se ter a certeza] —, muita da linguagem encoraja os soldados russos a pensar nos ucranianos como malvados e tão diferentes deles que não merecem ser tratados como seres humanos.”
E parece que essa ideia não passa só para os militares, mas também para os civis. Em meados de abril, os serviços secretos ucranianos divulgaram um alegado telefonema entre um militar russo destacado na guerra da Ucrânia e a sua mulher, em que ela lhe diz para “violar mulheres ucranianas”, mas pedindo para não lhe dizer nada. “Eu dou-te autorização. Assegura-te apenas de que usas proteção”, terá respondido a mulher, depois de o marido lhe perguntar se estava a falar a sério.
“Em todos os casos que analisei, em diferentes países, parecia que havia esta sensação de que as mulheres [violadas] não eram humanas como as mulheres dos agressores, portanto, acho que se passa o mesmo”, acrescenta Christina Lamb.
MacMillan destaca ainda a disciplina “brutal” e a hierarquia das forças armadas russas, em particular do exército. A escritora canadiana explica ao Observador que o exército russo não só está muito dependente de recrutas, que são treinados de uma forma extremamente dura — tanto que todos os anos há casos de suicídios entre estes jovens —, como, comparativamente a outros exércitos, tem poucas patentes intermédias, isto é, sargentos que façam a ponte entre os soldados, na base da estrutura, e os oficiais, no topo da hierarquia.
“Acho que isso quer dizer que a disciplina é menos eficaz e, muitas vezes, os oficiais não sabem o que os seus homens andam a fazer. É um tipo de cultura, mas não diria que os russos são mais propensos a fazer isto [violações] do que os outros. Acho que são as suas instituições e, como disse, a mensagem vem do topo, está a vir de pessoas como Putin ou do próprio Putin.”
Já Tom Mockaitis, autor do livro “Conventional and Unconventional War: A History of Conflict in the Modern World” (“Guerra Convencional e Não Convencional: Uma História de Conflitos no Mundo Moderno”, numa tradução livre), também sublinha a facilidade com que os soldados, durante uma guerra, ficam fora de controlo, daí ser tão importante o comportamento dos oficiais para traçarem uma linha do que é ou não tolerado — e isso não está a acontecer. “Não há dúvidas de que este tipo de comportamento pode ser dissuadido ou talvez mesmo travado, se houver uma determinação firme por parte dos comandantes”, considera o professor universitário ao Observador.
Para o norte-americano, a guerra na Ucrânia está a atingir um “nível de barbaridade” que muitas pessoas achavam não ser possível voltar a ver. “Penso que muito de nós esperávamos que as nações civilizadas tivessem deixado isso no passado, mas claramente não é o caso. Quando se demoniza o outro numa guerra que tem uma dimensão étnica, como é o caso deste conflito, torna-se possível justificar qualquer tipo de comportamento em relação ao outro.”
Exército Vermelho na II Guerra Mundial: um “exército de violadores”
Ao Observador, Tom Mockaitis sublinha especificamente a “longa e terrível história de brutalidade” do exército russo, dando como exemplo o que se passou na Segunda Guerra Mundial: “A Frente Oriental na Segunda Guerra Mundial foi de uma completa brutalidade de ambos os lados, mas quando o Exército Vermelho ocupou a Europa de Leste houve inúmeros casos de violação”, conta o docente de História.
Estima-se que cerca de dois milhões de mulheres alemãs tenham sido violadas, das quais 240 mil morreram dos ferimentos, de doenças venéreas ou por suicídio, escreveu Tom Mockaitis, num artigo de opinião no site americano The Hill.
O historiador militar Antony Beevor, num artigo publicado em 2002 no jornal britânico The Guardian, referiu que violações por parte dos soldados russos eram tão recorrentes em Berlim que os pais escondiam as filhas durante vários dias em sótãos, as mulheres aprenderam a não sair de casa em determinadas horas da noite, quando os militares estavam mais alcoolizados e ‘à caça’ de vítimas, e algumas até optavam por se tornarem ‘namoradas’ de soldados russos na esperança que eles as protegessem de outros militares. “Os berlinenses mais velhos ainda se lembram dos gritos que ouviam todas as noites. Era impossível não ouvir, porque todas as janelas tinham sido destruídas”, escreve o autor do livro “A Queda de Berlim 1945”.
Estas situações, relata Beevor, eram do conhecimento de Estaline, que recebia relatórios detalhados sobre o que se passava no terreno: “Muitos alemães dizem que todas as mulheres alemãs na Prússia Oriental que ficaram para trás foram violadas por soldados do Exército Vermelho”, lê-se num dos documentos. As vítimas eram “raparigas com menos de 18 anos e idosas”.
“Quando Milovan Djilas, o líder comunista [jugoslavo], se queixou a Estaline [das violações] a resposta foi: ‘Não consegue compreender se um soldado, que tem de atravessar milhares de quilómetros por sangue, fogo e morte, tem de se divertir com uma mulher?’”, recorda Tom Mockaitis ao Observador.
Para o professor universitário, este número de violações por parte do Exército Vermelho deve-se, em parte, à “demonização do inimigo” após o rasto de destruição deixado pelos alemães na Rússia: “Foi raiva, retaliação.” Antony Beevor, contudo, considera que o argumento de vingança cai por terra quando nem as mulheres russas, bielorrussas e ucranianas, que tinham sido levadas para a Alemanha pelo exército nazi para trabalho escravo, foram poupadas das violações.
Ainda assim, o historiador considera que os “apelos à vingança da Pátria, violada pela invasão da Wehrmacht [as forças armadas nazis], tinham passado a ideia de que quase todas as crueldades estavam autorizadas”. O eventual envolvimento de oficiais nestas violações e a falta de disciplina no exército russo também pode explicar estes recorrentes abusos sexuais.
“O Exército Vermelho tinha conseguido convencer-se de que, por ter assumido a missão moral de libertar a Europa do fascismo, podia comportar-se como quisesse, tanto pessoal como politicamente.”
O facto de Estaline ter promovido a imagem da sociedade soviética como “assexuada”, suprimindo “os impulsos e as emoções”, também não ajudou. Pelo contrário, tornou os seus soldados mais violentos. E se algumas mulheres que integravam as forças russas não viam qualquer mal nestas violações, outras ficavam em choque. “Os soldados russos estão a violar todas as mulheres alemãs dos oito aos oitenta. Eram um exército de violadores”, relatou a correspondente de guerra soviética, Natalya Gesse.
Tom Mockaitis ressalva, contudo, que os casos de violações não eram exclusivos dos soldados russos. “A Rússia [fê-lo] provavelmente em maior escala, mas os americanos, os britânicos e os franceses também não eram completamente inocentes.”
Ucrânia: o silêncio, mulheres violadas antes de serem mortas, o difícil acesso a contracetivos
O horror que as vítimas de violação viveram durante e após a Segunda Guerra Mundial não será diferente daquele que estão a passar os ucranianos. Para a responsável pela ONG La Strada-Ucrânia, os casos de violação que já se conhecem no país não são nem de perto nem de longe o “panorama completo”, porque os crimes sexuais, mesmo em tempos de paz, são pouco denunciados, quando o são de todo. E, quando isso acontece, muitas vezes é feito muito tempo depois do incidente.
“Em tempos de guerra é tudo muito mais traumático e complicado em termos de denúncia e de receber ajuda. Sabemos que pode demorar anos até que as pessoas estejam prontas para contarem a alguém o que se passou”, diz Kateryna Cherepakha ao Observador, acrescentando que, além das muitas mulheres e crianças que saíram do país, muitas foram mortas e, por isso, nunca se vai saber ao certo o que se passou.
Os médicos que estão a examinar os corpos de civis encontrados em valas comuns em Bucha, na região de Kiev, encontraram casos de mulheres que foram violadas antes de serem mortas a tiro. “Os médicos forenses têm uma tarefa específica, que é examinar os órgãos genitais das mulheres e procurar sinais de violação“, indicou Oleh Tkalenko, procurador sénior da região de Kiev, ao jornal britânico The Guardian. O que não é fácil, tendo em conta o mau estado em que se encontram os cadáveres.
Lyudmila Denisova, comissária dos Direitos Humanos da Ucrânia, denunciou um caso que envolveu 25 mulheres que foram trancadas numa cave em Bucha e violadas repetidamente. Ainda assim, segundo o procurador ucraniano, muitas mulheres não querem apresentar queixa na polícia por acharem que os agressores nunca vão ser apanhados, optando antes procurar psicólogos e médicos para as ajudarem.
Há também muitas vítimas que não querem falar por medo, porque foram ameaçadas e não se sentem seguras para contar o que lhes aconteceu. “Uma das primeiras coisas que é preciso numa situação destas é a segurança e, infelizmente, atualmente não há nenhum lugar seguro na Ucrânia”, explica a responsável da La Strada-Ucrânia ao Observador. E mesmo os sobreviventes que conseguiram sair do país estão tão traumatizados que pode demorar muito tempo até conseguirem falar. Além de que acabam por dar prioridade a outras necessidades básicas, como terem onde dormir, o que comer, terem medicamentos e estarem seguros. “Talvez depois disso estejam preparados para falar sobre o que viveram. Infelizmente, é um processo longo e a recuperação não será nem fácil nem rápida.”
O papel da La Strada-Ucrânia é precisamente dar apoio a estas vítimas, por mais limitadas que as opções sejam. No caso de pessoas que foram violadas e que ainda estão em território ocupado pelos russos, por exemplo, a organização pouco mais pode fazer além de dar apoio “psicológico, moral e emocional”, indicar-lhes que opções têm para apresentar queixa e tentar entrar em contacto com parceiros que estejam no terreno e que consigam ajudá-las de alguma forma.
“Na guerra da Ucrânia está a assistir-se a um ambiente e uma cultura de apoio, de empatia, de cuidar das vítimas que precisa de continuar anos e anos após a guerra. O stress pós-traumático não se limita apenas aos combatentes”, considera Tom Mockaitis ao Observador.
O apoio médico é também essencial para estas vítimas, em particular o acesso a contratetivos de emergência, mas isto tem sido um desafio. Com a danificação ou a destruição das rotas de abastecimento e a quebra nas produções de medicamentos no país, não tem sido fácil fazer chegar pílulas do dia seguinte e fármacos com efeitos abortivos aos hospitais ucranianos. “O prazo para tratar vítimas de violência sexual é essencial. Se uma mulher for tratada até cinco dias após o incidente, então a medicação deve ser dada automaticamente”, afirmou Julie Taft da IPPF ao jornal britânico The Guardian.
Mas mesmo que existam contracetivos de emergência para uma vítima de violação, podem já não servir de nada. Segundo a líder da La Strada-Ucrânia, muitas vezes, quando as vítimas conseguem sair do sítio onde estavam — seja porque o local estava ocupado, seja porque foram capturadas — ou falar sobre o que lhes aconteceu, já é “tarde de mais” para qualquer um dos fármacos. Kateryna Cherepakha não tem conhecimento de alguma mulher que tenha engravidado depois de ter sido violada por soldados russos, mas a comissária dos Direitos Humanos da Ucrânia adiantou, em inícios de abril, que já se sabia de nove casos.
“A violação é o crime de guerra mais negligenciado do mundo”
Tendo em conta o silêncio de décadas por que passaram muitas mulheres vítimas de violação em conflitos, Christina Lamb vê com bons olhos o facto de haver várias vítimas na Ucrânia a relatarem o que lhes aconteceu. “É difícil para mim ver algo de positivo sobre o que está a acontecer na Ucrânia, exceto isto. É a primeira vez que os casos de violação estão a ser tratados e a ser reportados amplamente, que as pessoas estão a falar sobre o assunto, expressando indignação, e que já estão a ser recolhidas provas. Isto é uma oportunidade para realmente se fazer alguma coisa a este respeito, porque neste momento a violação é o crime de guerra mais negligenciado do mundo.”
O caso de Natalya foi o primeiro a ser investigado pelas autoridades ucranianas, anunciou a procuradora-geral da Ucrânia, Iryna Venediktova, em finais de março. Segundo Olha, que saiu de Malaya Rohan após a violação, as autoridades da vila estão a preparar uma queixa-crime que deverá seguir para a Procuradoria-Geral da Ucrânia.
Atualmente, de acordo com a representante especial do secretário-geral da ONU sobre violência sexual em conflitos, Pramila Patten, já há dezenas de investigações em curso. Apesar de os investigadores ucranianos já terem identificado vários soldados que terão sido responsáveis por crimes de guerra, incluindo violência sexual, apenas foi emitido um mandado de captura de um soldado russo.
Pramila Patten deixou também um apelo, não só às vítimas — para que reportem as situações — mas também à comunidade internacional — para que encontre e responsabilize os agressores: “A documentação de hoje é o julgamento de amanhã”, afirmou Patten, numa conferência de imprensa na última terça-feira, em Kiev, citada pelo The Guardian.
Apesar de o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmytro Kuleba, ter prometido justiça às vítimas de violação através do Tribunal Penal Internacional, muitos questionam-se sobre se será possível chegar até aos soldados russos acusados de violação e levá-los a tribunal, não só porque alguns já terão regressado ao seu país mas, especialmente, porque o Kremlin nega ter cometido quaisquer crimes de guerra.
“Nem todos os casos, nem pouco mais ou menos, chegarão a tribunal, porque muitas vezes estes soldados seguem o anonimato e [as vítimas] nunca mais os veem, pelo que não é possível identificá-los, e muitas vezes não há sobreviventes”, diz o diretor da delegação portuguesa da Amnistia Internacional ao Observador.
Tom Mockaitis sublinha o quão difícil é nos Estados Unidos julgar um crime como a violação, “porque é muito difícil provar” o que aconteceu. Quanto mais o mesmo crime num contexto de guerra. Ainda assim, para o professor universitário, “é importante validar as histórias das vítimas”. “Isto é um crime de guerra. É importante a comunidade internacional dizer repetidamente que isto é um comportamento inaceitável em quaisquer circunstâncias e que, se os agressores forem apanhados, serão responsabilizados.”
Desde 1949, ano em que foram assinadas as Convenções de Genebra, que se fala da proteção das mulheres contra a violação. “As mulheres serão especialmente protegidas contra qualquer ataque à sua honra, e particularmente contra violação, prostituição forçada ou qualquer forma de atentado ao seu pudor”, lê-se no tratado para a “proteção das pessoas civis em tempo de guerra”.
A violação enquanto crime de guerra foi inscrita no Estatuto de Roma, em 1998, que fundou o Tribunal Penal Internacional (TPI). Dez anos mais tarde, em 2008, o Conselho de Segurança das Nações Unidas classificou a violação e outras formas de violência sexual, considerando que “podem constituir crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou atos constitutivos de genocídio”.
Toda esta legislação, contudo, teve poucos efeitos práticos. Ao Observador, Christina Lamb explica que as violações são tratadas como se fossem “assuntos secundários” em contexto de guerra e recorda que, nos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio, não houve um único crime destes que tivesse sido julgado. “Já é muito difícil para as mulheres terem justiça no que toca a violações no geral e é ainda mais difícil relativamente a violações na guerra”, diz a jornalista do The Times.
Em 20 anos, continua Lamb, o Tribunal Penal Internacional condenou apenas algumas pessoas pelos crimes de violação, sendo que, no mesmo período, “centenas de milhares de mulheres foram violadas em guerras”. Para mudar esta situação, segundo a britânica, é preciso que os agressores saibam que não vão sair impunes.
“As leis estão lá, isto é um crime de guerra. As Nações Unidas aprovaram a resolução 13255 [que sublinha a importância da mulher na prevenção e resolução de conflitos] há mais de 20 anos, dizendo que tem de se fazer mais para pôr um travão nas violações. Mas, durante esse tempo, a quantidade de violações na guerra aumentou muito, não diminuiu. Claramente, a comunidade internacional não está a tratar seriamente do assunto. Pode ser que isso mude com a Ucrânia, porque muitas pessoas estão focadas nisso.”
Para o diretor da Amnistia Internacional — Portugal, há três questões essenciais para pôr fim às violações em guerra: “Deixar de haver guerra, por mais utópico que isso possa ser”; “reformar a ONU” de forma a torná-la “mais ágil e adequada à sua função”; e “deixar de haver impunidade”. “Quem comete estes crimes, desde soldados às autoridades políticas, se não tiverem a sensação que têm hoje de impunidade, recuam antes de cometer um crime de guerra.”
Já Tom Mockaitis destaca a importância de mudar a “sociedade patriarcal”, onde existe muito a cultura do “boys will be boys” (“os rapazes vão continuar a comportar-se como rapazes”, numa tradução livre). “Não nos deve surpreender que, em guerras, onde as regras do comportamento civilizado são muitas vezes suspensas, o pior aconteça, porque as pessoas saem impunes. Enquanto não conseguirmos uma mudança cultural, não vejo a situação a melhorar.”