O apelido da nova CEO da Web Summit escreve-se Maher, mas lê-se com a sonoridade “mar”. “It rhymes with car”, diz Katherine Maher em praticamente todas as redes sociais onde está presente. O apelido “é irlandês, obviamente”, faz questão de dizer. É algo que tem em comum com o seu agora antecessor, Paddy Cosgrave.
“Coming up next it’s Katherine May-her/Maa-her/May-er.”
Th latest culprit is the BBC, which, after I repeated my pronunciation twice, still got it wrong, despite the rather famous American evening show host with the same name. https://t.co/qMysBFs1Fp— Katherine Maher (@krmaher) January 10, 2020
Mas Maher não é irlandesa. Nasceu nos Estados Unidos e assume agora o cargo de CEO da Web Summit no meio do turbilhão causado pelas palavras de Cosgrave no X (ex-Twitter) sobre o conflito entre Israel e o Hamas. Tal como Paddy Cosgrave, Maher também está nas redes sociais, incluindo no Mastodon, mas com uma postura diferente. No X partilha artigos ligados às empresas onde está presente. No Instagram, mostra uma faceta mais aventureira, com várias fotos de caminhadas e viagens, com publicações q.b que mostram a vida pessoal, desde o seu casamento e os animais de estimação, até às conquistas da progenitora, que assumiu este ano um cargo no Senado norte-americano.
Maher, de 40 anos, liderou durante meia década a Fundação Wikimedia, a dona da Wikipédia, função que já a trouxe à Web Summit, em 2019. Quatro anos depois, volta a pisar o palco da conferência em Lisboa, com a missão de substituir aquela que era a cara principal do evento. Por agora, a avaliar pelo vídeo de apresentação nos canais do evento, já domina pelo menos três palavras em português – “obrigada” e “até já”.
O desafio de “devolver” a Web Summit à sua missão principal
Katherine Maher é anunciada como a sucessora de Cosgrave pouco mais de uma semana após a demissão do co-fundador da Web Summit. A norte-americana surge num curto vídeo de apresentação, gravado nos novos escritórios em Portugal, e ainda assina uma carta, que foi disponibilizada no site da empresa.
A nova CEO relata a experiência da primeira vez em que veio ao evento: “Não era uma competição de ‘pitch’, nem um evento de comércio ou uma conferência sobre políticas. Era todas estas coisas e mais.” Maher menciona as discussões entre engenheiros ou os debates com políticos sobre questões regulatórias na privacidade. “Era um sítio que via a tecnologia não só como uma indústria mas como uma força transformadora de empresas, política e sociedade.”
A controvérsia do antecessor não fica fora da carta. “(…) a Web Summit tem estado no centro do debate, em vez de ser a anfitriã”, diz Maher, referindo-se a “um propósito que foi ofuscado pelos comentários pessoais” de Cosgrave.
A partir de agora, a “Web Summit entra na sua próxima fase”, sublinha a nova CEO, que diz que se junta à empresa porque “acredita” na missão de “ligar pessoas e ideias que mudam o mundo”. A duas semanas do evento, Maher tem em mãos a “tarefa imediata de devolver o foco” ao que considera que a cimeira faz “melhor”: “facilitar a discussão entre pessoas envolvidas no progresso tecnológico”.
Katherine Maher está apostada em assegurar a realização de “um evento tão apelativo como os anteriores”, em Lisboa, mas também pensa já nos próximos meses e próximos eventos – como, por exemplo, a estreia da Web Summit no Qatar. Além de Portugal e Qatar, terá também terá de garantir a edição do Rio de Janeiro e ainda as conferências Collision, em Toronto, e Rise, em Hong Kong.
O legado de Paddy Cosgrave na Web Summit e os desafios que deixa ao próximo CEO
Um dos desafios a que terá de responder enquanto CEO da conferência é, além de lidar com a crise reputacional criada pelo seu antecessor, a expansão internacional do evento. No passado, Paddy Cosgrave falou publicamente sobre a vontade de ter uma Web Summit em África, nos próximos anos.
Por cá, também tem nós por desatar. A expansão da FIL, uma das questões feitas com maior frequência a Paddy Cosgrave, também passará a ser endereçada à nova responsável da cimeira.
Logo no primeiro dia de trabalho, teve uma reunião com António Costa Silva, ministro da Economia. Há uma semana, foi deste Ministério que surgiu um comunicado a assegurar que, após diligências, o Governo tinha concluído que havia “condições” para o evento decorrer com normalidade, “nesta e nas próximas edições”. O Ministério diz ao Observador que se tratou de uma reunião de “apresentação e de cumprimentos”. Na rede social X, foi reiterada a “posição de que o Governo se mantém “empenhado” na realização da cimeira tecnológica, que se realiza em Lisboa de 13 e 16 de novembro”.
O Ministro da Economia e do Mar reuniu-se esta tarde com Katherine Maher, a nova CEO da #WebSummit António Costa Silva reiterou a posição de que o Governo se mantem "empenhado" na realização da cimeira tecnológica, que se realiza em #Lisboa de 13 e 16 de novembro pic.twitter.com/SxC0lSCq2K
— Economia (@economia_pt) October 30, 2023
Fonte da Web Summit explica que a nova CEO viajou até Lisboa para se encontrar também com Carlos Moedas, da Câmara Municipal de Lisboa. Durante a curta passagem pela capital, uma vez que a norte-americana embarca esta segunda-feira à noite para Dublin, na Irlanda, a nova CEO conheceu ainda os trabalhadores do escritório lisboeta.
Uma especialista em estudos islâmicos e Médio Oriente com experiência internacional
A nova líder da Web Summit tem um percurso com várias experiências internacionais, que fizeram de Maher uma poliglota. Além do inglês, a sua língua-mãe, consegue compreender árabe, francês e alemão. Em entrevistas, já assumiu que, inicialmente, queria trabalhar na área académica ou em organizações de defesa dos direitos humanos e desenvolvimento internacional. Ao longo dos anos, mudou várias vezes de país e também de área de negócio.
Se Paddy Cosgrave “caiu” devido a declarações ligadas ao conflito entre Israel e o Hamas, a formação académica da nova CEO está justamente ligada ao Médio Oriente e a estudos islâmicos. Depois de terminar o ensino secundário no liceu de Wilton, no estado de Connecticut, Katherine Maher ingressou num programa intensivo do Arabic Language Institute, em 2002, que a levou até à American University no Cairo, no Egito. Esteve durante três semestres no Cairo, uma experiência que lhe incutiu o fascínio pelo Médio Oriente. A experiência no Egito coincidiu com a invasão norte-americana do Iraque, em 2003, que Maher diz ter conseguido acompanhar de uma perspetiva diferente estando fora dos EUA.
Após cerca de dois anos no Egito, Maher estudou ainda no Instituto Francês de Estudos Árabes de Damasco, na Síria, e passou algum tempo no Líbano (país onde regressou já este ano para uma viagem turística) e na Tunísia. Em 2005, voltou aos Estados Unidos para concluir o bacharelato em estudos islâmicos e Médio Oriente, na Universidade de Nova Iorque.
Os primeiros passos a nível profissional foram dados em estágios, primeiro como assistente de investigação no Conselho para Relações Externas, em 2004, e no Eurasia Group, já em 2005, num estágio focado no Líbano e na Síria. Em outubro de 2005, Maher voltou a sair dos EUA e atravessou o Atlântico para trabalhar no banco HSBC, em Londres. A estadia no Reino Unido foi curta – três meses como ‘trainee’ em funções de gestora internacional até passar para a Alemanha, onde foi analista de crédito em Dusseldorf. Ainda com o HSBC, esteve durante sete meses no Canadá, como gestora internacional de banca.
Regressou aos Estados Unidos, desta vez a Nova Iorque, no final de 2007, para assumir funções na Unicef, onde trabalhou na área de inovação e comunicação. Na altura, foi membro fundador da equipa ICT4D da Unicef, de tecnologias de informação e comunicação para o desenvolvimento.
Foi a partir da experiência na Unicef que Katherine Maher começou a assumir cargos mais ligados à tecnologia de código aberto. Em 2010, passou cerca de um ano em Washington, no National Democratic Institute, onde foi responsável por um programa ligado ao desenvolvimento de tecnologias de informação tendo em conta questões como direitos humanos e o apoio a media independentes.
Saltou depois até ao Banco Mundial, com funções semelhantes, estando ligada a projetos de dados abertos em países em desenvolvimento; e já em 2013, chegou à Access Now, uma organização sem fins lucrativos que defende direitos humanos e políticas tecnológicas. Terá sido à frente desta organização que adquiriu alguma experiência na organização de eventos, já que a RightsCon, uma conferência anual, é co-organizada pela Access Now.
A Fundação Wikimedia, a responsável pela Wikipédia, é uma das passagens laborais mais longas no currículo de Katherine Maher. Depois de alguns anos em Washington, rumou a São Francisco e passou sete anos na Wikimedia. Antes de chegar ao cargo de CEO e dar a cara pela fundação em eventos internacionais, como a Web Summit, foi diretora de comunicação da fundação durante dois anos, de 2014 a 2016.
Nos cinco anos em que esteve à frente da Wikimedia Foundation, foi responsável pelo aumento do alcance global da enciclopédia de acesso livre, da presença do portal em mercados emergentes e ainda do aumento do número de editores. Feitos que, aliás, foram destacados no anúncio de nomeação para o cargo de CEO da Web Summit.
Katherine Maher saiu da fundação em abril de 2021, e não parou desde então. Deu continuidade a colaborações que já tinha em curso, como a participação com o Fórum Económico Mundial, na qualidade de jovem líder global, ou o projeto de segurança nacional Truman, ligação que já dura desde 2012, para o desenvolvimento de uma política externa inclusiva e focada na democracia e direitos humanos. A norte-americana colabora ainda, desde junho do ano passado, com o Departamento de Estado norte-americano, integrando o grupo que aconselha este órgão governativo em questões sobre como as tecnologias emergentes se cruzam com a democracia.
É ainda membro do conselho de administração da System Inc, uma empresa de software de pesquisa e sintetização de informação que usa inteligência artificial, e presidente da administração da Signal, a app de mensagens encriptadas, ambos cargos não executivos que não ainda não se sabe se manterá. Na Web Summit, em Lisboa, vai encontrar outro nome da Signal – Meredith Whittaker, a presidente da fundação.
Web Summit tenta sobreviver a uma reputação “manchada” enquanto procura o seu próprio unicórnio
Do “sim” que demorou cinco semanas a chegar às duas cerimónias de casamento
Catherine Cecilia Queeney, que trabalhava na retalhista Lord & Taylor, casou-se com Gordon Roberts Maher, que viria a ser bancário da Goldman Sachs, na manhã de 6 de setembro de 1980. A união do casal, que teve três filhos, ficou para sempre marcada nas páginas do The New York Times, onde foi publicada uma breve notícia acerca da boda. Katherine Maher deu continuidade ao legado dos pais e, aos 40 anos, também viu a sua história de amor publicada no jornal norte-americano, só que em formato digital e, consequentemente, com espaço para mais pormenores.
Foi em 2019 que a nova CEO da Web Summit conheceu o atual marido, o advogado Ashutosh Upreti, no Seder de um amigo. Os mais de 100 convidados presentes nesse jantar cerimonial judaico tiveram de se apresentar e contar histórias acerca de liberdade ou de momentos em que esse direito não existiu. Katherine falou sobre dois amigos ativistas árabes que tinham sido presos e torturados na Síria e no Egito e Ashutosh Upreti falou sobre uma tia que, numa Índia ainda sob domínio colonial do Império britânico, pisou uma estrada que era destinada apenas aos britânicos.
Como consideraram as histórias um do outro “intrigantes”, o advogado Ashutosh Upreti decidiu apresentar-se. Mas pelo caminho, antes de poder convidar Katherine para sair, teve de passar pelos seus pais e pelo seu irmão mais novo, que também estavam no Seder. Acabou por conhecê-los e conversar com eles.
Poucos dias após se terem conhecido, os dois estiveram juntos num bar em São Francisco. A empresária acreditava que o encontro era sobre trabalho e começou a entrevistá-lo, pensando que “estava mais interessado” em ser seu “conselheiro geral” do que em sair consigo. Estava enganada. “Fazes estas perguntas a todas as pessoas com quem sais?”, questionou o advogado cerca de uma hora depois.
No final do encontro trocaram um beijo e começaram a passar mais tempo juntos. A pandemia aproximou-os. Começaram a viver juntos a 1 de maio de 2020. Menos de um ano depois, com a morte do pai de Katherine pelo meio, Ashutosh pediu-a em casamento. “Devíamos casar-nos”, disse, no cimo de uma das montanhas mais altas de São Francisco, o Twin Peaks. O “sim” demorou cinco semanas a chegar.
Foi no final de julho deste ano que o casal celebrou a união, em duas cerimónias distintas: uma hindu, em que o noivo chegou num cavalo branco e a noiva usou vermelho; e uma tradicional, presidida por uma amiga, perante 140 convidados, e com Katherine a envergar um vestido branco. Foram, de acordo com Ashutosh Upreti, dias de “celebração intercultural” e de uma “grande festa de dança”.
Neste momento, o casal vive em Nova Iorque com o seu cão, um malamute-do-Alasca arraçado. Embora já não viaje entre 180 e 200 dias por ano, como acontecia quando liderava a Wikipédia, Katherine continua, pelo que se percebe pelas suas redes sociais, a gostar de conhecer outros países além dos Estados Unidos. Há cinco anos, num artigo publicado no The National Geographic, escrito na primeira pessoa, revelou que Beirute (Líbano) é uma das suas cidades favoritas, bem como Berlim (Alemanha) e a Cidade do México (México).
Tento passar o máximo de tempo a comer e a explorar uma cidade através da sua comida”, afirma.
Nas redes sociais, principalmente no Instagram, além das imagens das cidades que visita, partilha com frequência fotografias com a mãe. Desde o início do ano que Ceci Maher — que viveu com Katherine em São Francisco durante alguns meses após perder o marido, em 2020 — é senadora do Connecticut, estado onde os filhos nasceram. A nova CEO da Web Summit tem-se mostrado “muito orgulhosa” dos feitos da mãe.