Ser infetado com duas variantes diferentes de SARS-CoV-2, como aconteceu com uma idosa belga, pode ser caso raro — muito raro até, ou, pelo menos, muito pouco reportado, — mas não é caso único: há pelo menos um artigo em pré-publicação que reporta um caso idêntico no Brasil e uma situação semelhante também foi registada em Portugal, logo no início da pandemia.
A idosa belga de 90 anos não estava vacinada. Mesmo que estivesse, a infeção (com uma ou as duas variantes) podia não ter sido evitada, mas o desfecho, em março deste ano, poderia não ter sido tão grave: a mulher morreu cinco dias depois de ter dado entrada no hospital.
Os investigadores que reportaram o caso do Hospital OLV, na cidade de Aaslt, acreditam que a idosa tenha sido infetada duas vezes — vivia sozinha, mas recebia assistência em casa —, e que o desfecho tenha sido causado pela dupla infeção, uma vez que aparentava estar saudável e só deu entrada no hospital por causa de uma queda.
Infelizmente, não sabemos como ficou infetada”, admitiu a coordenadora do estudo, a bióloga molecular Anne Vankeerberghen, em comunicado de imprensa.
O facto de terem sido encontradas duas variantes nas análises que fizeram à doente não permitem, contudo, perceber em que momento teve contacto com cada uma delas, nem tão pouco o impacto que a presença das duas variantes do vírus podem ter tido na doente, como comentaram dois especialistas britânicos ao Science Media Center do Reino Unido.
“Não há evidências de que a infeção com duas variantes de preocupação foi de alguma forma responsável pelo resultado clínico neste caso [na Bélgica], disse Lawrence Young, virologista na Universidade de Warwick. “Este estudo destaca a necessidade de mais estudos para determinar se a infeção com múltiplas variantes de preocupação afeta o percurso clínico do doente com Covid-19 e se isso, de alguma forma, compromete a eficácia da vacinação.”
Ainda é uma incógnita com interagem as variantes numa co-infeção
O único ponto em comum comprovado entre a doente belga de 90 anos a jovem portuguesa de 17 anos é que os investigadores encontraram as duas variantes (ou linhagens), mas não sabem como ou quando as doentes tiveram contacto com elas; se ambas causaram infeção ou se uma delas estava apenas presente nas fossas nasais (sem ter causado infeção) e não é sequer possível determinar se a presença das duas variantes teve influência no estado de saúde dos doentes.
No caso da doente portuguesa, os investigadores detetaram a presença de duas linhagens distintas do vírus, a 20A e a 20B. A linhagem 20A era a única no momento do diagnóstico — ou, pelo menos, foi a única detetada —, mas nove dias depois, a linhagem 20B também surgiu na análise, com 3% de frequência, passando a 100% ao fim de dois meses — quando a doente teve uma recaída.
Poucos (ou nenhuns) são os casos tão bem descritos como o desta doente, diz ao Observador Margarida Tavares, infecciologista no Hospital de São João no Porto, onde a jovem foi tratada. O insólito da situação, fez com que os profissionais de saúde do hospital e investigadores da Universidade do Porto tentassem obter mais respostas: a jovem, aparentemente saudável, foi internada duas vezes, fez 19 testes PCR (a maioria dos quais positivos) e a infeção só foi descartada ao fim de 97 dias (quando pode, finalmente, sair do isolamento). Mais, neste período verificou-se que uma das linhagens passou a dominar sobre a outra.
“No início não se fazia a sequenciação genética do vírus [leitura dos genes] com tanta frequência”, diz a investigadora do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto (ISPUP). E agora também não é comum, acrescentou. Além disso, pode acontecer que, num dado momento, a amostragem só identificar uma das variantes apesar de estarem presente duas ou mais.
Na Bélgica, foi o facto de se encontrarem sinais que indicavam tanto a presença da variante Alpha (com origem no Reino Unido) e Beta (com origem na África do Sul) que levou os investigadores a fazerem a sequenciação genética do vírus e a confirmar que de facto a idosa tinha ambas as variantes de preocupação.
Daquilo que conhecemos da dinâmica dos vírus, as co-infeções podem acontecer”, diz Margarida Tavares. “Mas não sabemos o que significa.”
A infecciologista explica que podemos ter contacto com o vírus (ou a variante), este ser detetado na amostra recolhida para fazer o teste, mas ainda não ter causado infeção (ou seja, não ter entrado nas nossas células). Isto quer dizer que, num caso de infeções múltiplas, uma variante pode ter sido a única a causar a infeção ou a infeção foi causada por mais do que uma variante. O desfecho clínico para o doente é ainda uma incógnita.
Por outro lado, lembra a médica, a origem das infeções com variantes diferentes também pode ser muito distinta: as duas (ou mais) variantes podem ser transmitidas por uma única pessoa que tinha uma co-infeção ou por várias pessoas; o contacto com as duas (ou mais variantes) pode ter acontecido no mesmo momento (ou num momento próximo no tempo) ou ter acontecido com um intervalo de tempo que permita à primeira infeção já se ter instalado (aqui fala-se de sobre-infeção).
E, por fim, o impacto da co-infeção. “Que só se torna relevante se agravar a situação clínica do doente”, diz Margarida Tavares. Mas a verdade é que, neste momento, não se sabe se causa doença mais grave e prolongada ou não, se as variantes tomam o lugar umas das outras ou se coabitam, ou até se estão ambas com infeção ativa.
Covid-19. Reinfeções são raras mas são precisos mais estudos sobre variantes, refere ECDC
No caso particular da doente portuguesa, os investigadores nem sabe bem o que pensar. É certo que a doente teve uma doença prolongada e testou positivo durante muito tempo. Depois de um primeiro internamento grave, voltou ao hospital porque teve alguns sintomas, mas de um dia para o outro ficou bem, e, por fim, recuperou totalmente da doença.
Já no Brasil, os dois casos reportados em Rio Grande do Sul, pela equipa brasileira, correram sem problemas: duas pessoas na casa dos 30 anos, tiveram sintomas ligeiros (semelhantes a uma gripe), recuperaram espontaneamente e não precisaram de internamento. O facto de lhes ter sido detetado mais do que uma variante, incluindo a linhagem B.1.1.28 — que viria a dar origem à variante Gamma (ou P.1), não parece ter implicado um desfecho mais grave.
Ainda não há razão para alarme em relação às reinfeções com diferentes variantes
Em Portugal, a equipa de Margarida Tavares também registou um caso de reinfeção com duas linhagens diferentes, novamente a 20A e a 20B. O facto de serem duas linhagens, detetadas com 50 dias de diferença, permite confirmar que se tratou de uma reinfeção com duas linhagens diferentes, mas a médica reconhece que é difícil identificar estes casos.
Se não houver análise genética da amostra na primeira infeção ou se, no mínimo, não se guardar a amostra para uma análise no futuro, não é possível comparar quando se detetar um potencial caso de reinfeção. Se for suficientemente próximo no tempo, ficará a dúvida se se trata da mesma infeção que é reativada.
Estes casos de reinfeção serão mais comuns do que os de co-infeção, mas ainda assim pouco frequentes. Porém, com tantos milhões de pessoas infetados em todo o mundo, estranho seria se estes casos não acontecessem. Claro que é preocupante se uma pessoa for infetada a segunda vez depois de ter tido tempo suficiente para montar uma resposta imunitária, diz Rowland Kao, professor de Epidemiologia na Universidade de Edimburgo. Mas é muito mais preocupante para o próprio do que em termos gerais. “Não seria razão para um alarme público geral.”
“Mesmo que a pessoa infetada duas vezes tenha tido doença grave, isso só traria uma preocupação generalizada adicional, se fosse descoberto que ocorre frequentemente entre as pessoas infetadas mais do que uma vez”, acrescenta, num comentário ao Science Media Center.