É um aviso à navegação. Ramalho Eanes, convidado pelo Presidente da República para presidir à Comissão Nacional que vai avaliar o programa das comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, diz ao Observador que, “para que uma organização funcione, é necessário que não se criem situações de facto consumado”.
O antigo Presidente da República compreende as críticas que surgiram em relação à escolha de Pedro Adão e Silva para preparar o programa oficial das comemorações — “eu não condeno [essa reação], acho que até tem interesse” — e diz que vai avaliar “se não há sinergias onerosas” na estrutura de missão criada por António Costa. “Se houver necessidade de criar e assumir [eventuais problemas], eu fá-lo-ei”, garante.
Eanes ponderou antes de aceitar o desafio lançado por Marcelo. “Não porque não me seduza o convite, mas porque tenho 86 anos. Na altura da comemoração terei, se cá estiver, 88. Não era prudente nem realista, devo olhar para a minha finitude, admitir e sentir que está próxima”, explicou à TSF.
Mas, no dia em que foi formalizada a estrutura de missão responsável por preparar, avaliar e aprovar as longas comemorações dos 50 anos do 25 de Abril, a Presidência da República tornou público que caberia Eanes — e à Comissão Nacional dessa estrutura, que dirige — a última palavra sobre o programa oficial.
O “sim” a Marcelo, percebe-se agora, não é incondicional. No final da semana passada, numa breve entrevista ao Público, Pedro Adão e Silva disse que as celebrações de 2024-2026 “têm de ser uma celebração daquilo que nos une enquanto comunidade política e encerram um grande desafio: conciliar a celebração da memória da resistência e da revolução com a capacidade de imaginar o futuro da democracia portuguesa”.
Eanes contra “situações de facto consumado”
Agora, na primeira vez que fala sobre a “missão” que lhe foi confiada depois da polémica dos últimos dias em torno da organização do 50º aniversário do 25 de Abril, Eanes deixa claro aquilo que considera “fundamental” para que a missão seja cumprida: “Para que uma organização funcione, é necessário que não se criem situações de facto consumado.”
O antigo Presidente da República defende “uma discussão prévia” entre os responsáveis dos vários organismos que compõem a estrutura de missão — Comissão Nacional, Conselho Geral e Comissão Executiva — “para se encontrarem soluções que sejam as melhores”. E avisa que, em função das diferentes posições que cada organismo venha a assumir, pode haver necessidade de “fazer alterações, ajustamentos”. Isso, acrescenta, “é indispensável”.
Eanes foi uma escolha de Marcelo, tal como Adão e Silva foi uma escolha de António Costa. E se o primeiro não gerou reações adversas, o nome do segundo — e, sobretudo, a super-estrutura que este terá à sua disposição ao longo dos próximos cinco anos e meio — fizeram soar críticas, sobretudo dos partidos à direita do PS. Ao ponto de Marcelo vir a público mostrar-se totalmente alinhado com a escolha do ex-dirigente socialista e de António Costa ter atirado diretamente ao líder do PSD.
Eanes recusa, para já, “olhar para cenários possíveis”. E, por essa razão, não se alonga sobre que posição poderá vir a tomar caso considere que os diferentes organismos da estrutura de missão se revelem incompatíveis.
Nas mesmas declarações que deu à TSF, o Eanes definiu Adão e Silva como “um homem que tem formação, competência, tem facilidade de expressão e é, sobretudo, um homem que diz as coisas tal como as pensa, que não está com subterfúgios”.
Menos distendido nas considerações, o antigo Presidente da República diz ao Observador não ter “qualquer dúvida” sobre a “competência” e as “capacidades” do professor universitário.
Apesar disso, avisa, é preciso perceber “se os órgãos [da estrutura de missão] se ajustam e ver quais são as medidas estratégicas a adotar para que a missão possa ser cumprida”.
“Quando há um conjunto de órgãos a funcionar para realizar um determinado projeto, é necessário ver se eles podem funcionar de forma articulada e eficiente. E se não há sinergias onerosas”. Nas entrelinhas: havendo conflito entre estruturas (e até entre dirigentes das estruturas), Eanes retirará daí consequências.
No final da semana passada, o ex-dirigente do PS reservou um longo elogio dirigido a Eanes. “É, provavelmente, a figura que melhor representa as virtudes éticas da experiência democrática portuguesa.
Uma combinação singular de coragem moral e de austeridade no modo como serviu o país, no desapego ao poder, no sentido patriótico de dever”, disse ao Público, antevendo que o diálogo entre ambos “vai ser muito enriquecedor para as comemorações”.
Super-estrutura para cinco anos
O nome de Adão e Silva foi oficializado no final da semana passada. De acordo com a resolução do Conselho de Ministros que criou a estrutura responsável por organizar e promover as celebrações de 2024-2026, a Comissão Executiva que o professor universitário foi chamado a dirigir deverá “elaborar, até ao final de 2021, uma proposta de programa oficial das comemorações, acompanhada de uma previsão de encargos”. Para isso, conta com uma equipa (quase) ministerial.
Adão e Silva (com uma remuneração de cerca de 4500 euros mensais até 31 de dezembro de 2026) terá consigo um comissário adjunto, que o pode substituir na sua ausência. A Comissão Executiva conta ainda com três adjuntos, três técnicos especialistas, um secretário pessoal para o comissário executivo e um motorista. Mas ainda pode somar mais “quatro técnicos superiores”, que deverão ser recrutados em regime de mobilidade.
Ao contrário dos outros dois organismos da estrutura de missão — e ao contrário do que aconteceu nas celebrações dos 30 e dos 40 anos do 25 de Abril —, os membros da Comissão Executiva são remunerados. Esse foi um dos motivos para as críticas da oposição: “É absolutamente escandaloso, pode perfeitamente ler-se que é um pagamento pelos serviços prestados ao PS com impostos dos portugueses”, acusou o líder social-democrata. Costa foi telegráfico na resposta: “É uma declaração tão insultuosa que, por uma questão de respeito com o líder da oposição, me exige que a ignore”.
Se a Adão e Silva cabe preparar o programa oficial, a Eanes caberá “aprovar o programa oficial das comemorações, mediante proposta da Comissão Executiva e após parecer do Conselho Geral”, além dos relatórios semestrais de acompanhamento dos trabalhos que a equipa de Adão e Silva deverá preparar.
A escolha dos elementos da Comissão Nacional cabe ao Presidente da República, não estando definido na resolução do Governo qual o número máximo de personalidades que a podem compor. E, se já há nomes, Ramalho Eanes não os revela. Mas isso não o impede de definir critérios. “Os nomes são escolhidos como e para quê?”, questiona-se o antigo Presidente da República. Para Eanes, esses membros devem ser chamados “porque se pensa que correspondem às necessidades da organização e são escolhidos porque a organização necessita daquelas competências“.
“O propósito destas celebrações”, refere a resolução do Conselho de Ministros da semana passada, “é juntar, no mesmo ciclo, um arco democrático que se iniciou no 25 de Abril de 1974 e que, ao longo do ano de 1976, passou pela aprovação da Constituição, pelas primeiras eleições legislativas, presidenciais e regionais e que culminou com as autárquicas no final desse mesmo ano”. E essa abrangência explica por que razão o prazo de validade da estrutura de missão só expira no final de dezembro de 2026.