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Mais de 100 anos depois da sua morte, a vida e obra de Eça de Queiroz continua a suscitar debates acalorados. Contudo, por estes dias, não é a vida do autor de Os Maias que tem sido tema de conversa, mas a sua morte – concretamente, o local onde ficarão os seus restos mortais. Várias personalidades, encabeçadas pela Fundação Eça de Queiroz, têm liderado uma iniciativa que visa trasladar as ossadas do escritor do seu local atual, em Tormes, Santa Cruz do Douro, para o Panteão Nacional. Mas os que opõem entraram quarta-feira com uma providência cautelar em tribunal que pode suspender as honras previstas para a próxima semana. Ação legal, aliás, que o Observador já tinha noticiado no início de setembro.
O processo não é novo. Aliás, foi aprovado com unanimidade há mais de dois anos pela Assembleia da República. Contudo, com o aproximar da data em que o processo deverá ser concluído (na próxima quarta-feira, 27 de setembro), a polémica subiu de tom, com um grupo de seis bisnetos de Eça a oporem-se à ideia e a irem para a justiça. Questionam a legalidade do processo, o facto de não terem sido ouvidos e até se uma homenagem destas iria contra a vontade do escritor.
Restos mortais de Eça de Queiroz trasladados para o Panteão Nacional a 27 de setembro
Curioso é constatar que esta não é a primeira vez que os restos mortais de Eça de Queiroz suscitam debate. Mas sim a terceira. Em 1900, ano da morte, o seu corpo foi trasladado de Paris, onde morreu, para o Cemitério do Alto de São João, em Lisboa. Foi lá que ficou ao longo de quase um século, até 1989, quando, por iniciativa da Fundação Eça de Queiroz (a mesma que agora liderou a campanha para o ver no Panteão), saiu de Lisboa e foi para Santa Cruz do Douro. Agora, a viagem é de Tormes novamente para Lisboa, mas para o salão mortal dos nobres.
A sete dias de tudo acontecer, a providência cautelar dos opositores entrou em tribunal, que a aceitou; a Fundação Eça de Queiroz, que fomenta a homenagem, suspendeu as atividades agendadas para o fim de semana, à espera de decisões. E o Supremo Tribunal Administrativo vai ouvir o contraditório antes de tomar uma decisão.
Como é que chegámos aqui?
Eça no Panteão, ou uma homenagem para durar “100 anos”
A ideia de transladar os restos mortais de Eça de Santa Cruz do Douro, onde se encontra o seu jazigo, para o Panteão Nacional partiu do seu trisneto, Afonso Reis Cabral, também ele autor e Presidente da Fundação Eça de Queiroz. Além dele, a iniciativa conta com o apoio da família alargada, do ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro – à época presidente da Câmara de Baião —, e do atual presidente da Junta de Santa Cruz do Douro, António Manuel Vieira.
O tema chegou à Assembleia da República, onde foi debatido e submetido a votação parlamentar, acabando por ser aprovado por unanimidade, em janeiro de 2021. Um grupo de trabalho foi então constituído, liderado pelo deputado do PS Pedro Delgado Alves.
A decisão de conceder honras de Panteão ao escritor surgiu “em reconhecimento e homenagem pela obra literária ímpar e determinante na história da literatura portuguesa”, podia ler-se na altura do requerimento que deu entrada no Parlamento. José Luís Carneiro, um dos principais defensores da iniciativa, afirmou que a homenagem visava não apenas “um dos maiores vultos da cultura e literatura do país, como também um povo e uma região onde ela se inspirou para escrever os seus romances”.
O processo de trasladação sofreu atrasos. De acordo com Delgado Alves, “as dificuldades colocadas pela pandemia e a dissolução da Assembleia da República em finais de 2021” acabaram por fazer com que o grupo de trabalho encarregue do processo só começasse a trabalhar no início de 2022, “já na atual legislatura”. Após um período de deliberação, a data da trasladação de Eça de Queiroz viria a ser fixada a 27 de setembro de 2023. “Daqui a 100 anos, não sabemos como estaremos. Mas sabemos que a memória de Eça estará sempre assegurada”, dizia então à Visão Afonso Reis Cabral.
Os argumentos de bisnetos e opositores
Não foi preciso esperar muito tempo para que começassem a surgir vozes contra a ideia. À cabeça estavam 6 dos 21 bisnetos de Eça de Queiroz, que vieram pôr em causa a legalidade do ato de trasladação e argumentaram que em momento algum tinham sido ouvidos.
“Porque nenhum dos herdeiros, das classes mais-imediatas, de Eça de Queiroz foi previamente consultado, como deveria ter sucedido, entendemos que o processo que culminou na resolução da A.R N.º 55/2021 se encontra inquinado”, argumentaram numa carta enviada a 14 de agosto ao Presidente da Assembleia da República. Por lei, decisões sobre os restos mortais cabem aos familiares vivos mais próximos da pessoa em questão – no caso, os bisnetos sobreviventes. Os familiares que se opõem à trasladação dizem que tal não se verificou, acusando Afonso Reis Cabral e a Fundação Eça de Queiroz de não terem “poder legal para tomar decisões” neste âmbito.
Estes familiares deixaram claro que não estão contra a ideia de Eça receber honras de Panteão, mas sim contra a ida dos seus restos mortais para Lisboa — até porque, lembram, a acontecer, tratar-se-ia da terceira viagem das ossadas do escritor (em 1900 foi transferido de Paris, onde morreu, para Lisboa e, em 1989, foi de Lisboa para Santa Cruz do Douro. “Querem dar-lhe honras de Panteão? Façam uma estátua, uma lápide”, disse José Maria Eça de Queiroz, o bisneto mais velho do escritor.
Também António Fonseca, antecessor de António Manuel Vieira à frente da Junta de Freguesia onde o escritor está sepultado, se insurgiu contra a ideia, constituindo para isso um movimento cívico em Baião, com cerca de 400 assinaturas, que se opõe à trasladação. “O lugar de Eça só pode ser mesmo à sombra de Tormes”, dizia ainda esta quinta-feira à agência Lusa.
Outras figuras, como o escritor e ensaísta Eugénio Lisboa, membro do círculo Eça de Queiroz, e a socióloga e biógrafa do esritor, Maria Filomena Mónica, pronunciaram-se contra a ideia, argumentando sobretudo que o próprio escritor não estaria interessado em receber este tipo de homenagem. Prova disso, argumenta-se, são as ideias centrais à obra do autor.
“Pode olhar-se também para o romance A Cidade e as Serras, onde se pode ver o todo o encantamento dele com este lugar [Tormes, Santa Cruz do Douro]”, argumentou Eugénio Lisboa. “O importante para ele era a altura, o ar limpo, as vistas alargadas. Quando os amigos o visitavam em Paris ele levava-os sempre à parte mais elevada da cidade. É preciso perceber, lendo a sua obra, como ele sempre foi afeiçoado pelas coisas simples”, disse ainda.
O que defendia Eça de Queiroz?
Ironicamente, o tema chegou a ser abordado em vida pelo próprio autor de Os Maias. Em 1892, num texto publicado na Gazeta de Lisboa, intitulado “Os Grandes Homens de França”, Eça de Queiroz expressou a sua opinião sobre as trasladações dos “grandes homens”, por ocasião da decisão do governo francês conceder honras de “Panthéon” a Victor Hugo, celebrado autor de Os Miseráveis e Notre-Dame de Paris.
Em tom irónico, Eça acaba por considerar que os Panteões apenas têm utilidade para o Estado e, atendendo a que os critérios que determinam o que é um “grande homem” são, no mínimo, pouco claros, será sempre humanamente impossível concordar com objetividade quem merece tal distinção.
Seis herdeiros de Eça de Queiroz avançam para tribunal para travar honras de Panteão
No mesmo sentido, o autor português deixou críticas à tendência francesa de honrar os seus “grandes homens” poucos anos após a morte (caso de Victor Hugo, que morreu em 1885). De um modo mais concreto, Eça questiona mesmo a utilidade de “deificar” de todo a figura dos escritores, concluindo que tal só serve para ser “visível e compreensível pelas inteligências simples” – não obstante considere que, a haver escritor merecedor de honras de Panteão, seria, certamente, Victor Hugo, o “Deus único das nossas letras”.
Questionado sobre o artigo escrito pelo seu trisavô, Afonso Reis Cabral defende que as opiniões no texto não são relevantes para a decisão de trasladar ou não, o seu corpo. Para o romancista, “não havendo proximidade temporal (passaram-se 123 anos), nem muito menos dúvidas sobre a qualidade literariamente ‘deífica’ do próprio Eça nas nossas letras, em nada se pode tirar do texto que o próprio se opusesse à ideia. Não só existe em relação a Eça de Queiroz o ‘entusiasmo de multidão’ que assinala a propósito de Victor Hugo, como dele não se necessita o quod est demonstrandum”, defendeu.
O que dizem os defensores da trasladação?
Afonso Reis Cabral não está sozinho. No seguimento da polémica levantada pelos seis bisnetos, outra tantas vozes levantaram-se para questionar os argumentos utilizados pelos opositores e manifestar o seu apoio à trasladação dos restos mortais do autor. Carlos Reis, professor da Universidade de Coimbra, lembra que a homenagem não é em nada diferente à que outros grandes escritores portugueses, de Camões, a Pessoa ou a Sophia de Mello Breyner Anderssen, receberam. “Nestes casos e em particular nos mais recentes (Pessoa e Sophia), não me recordo de ter havido qualquer contestação à panteonização de figuras destacadas da nossa literatura. Fica Eça de Queiroz diminuído por ir para o Panteão? Obviamente que não.”
Também Pedro Delgado Alves veio pronunciar-se sobre o tema. Ainda que ressalvando que o grupo de trabalho a que preside tem apenas como função “executar a deliberação da Assembleia”, o deputado socialista diz que os argumentos contra a trasladação foram considerados, com base na carta enviada a Augusto Santos Silva. Diz Delgado Alves que, ainda que “respeitando naturalmente a posição dos signatários da carta”, esta não é representativa da maioria dos familiares do autor. “Na sequência, aliás, dessa comunicação de oposição, 13 dos demais bisnetos reiteraram, também por escrito, a sua posição de adesão e apoio à homenagem nacional através da trasladação de Eça de Queiroz para o Panteão Nacional. Tendo em conta que os bisnetos são 22, trata-se da maioria”.
Também as leituras sobre a posição de Eça de Queiroz relativamente ao tema suscitaram opiniões diferentes. Carlos Reis apelida mesmo a ideia de que Eça tinha um apego a coisas simples de “simplista” e “salazarista”, e que são várias as ideias literárias em obras como, justamente, A Cidade e as Serras que contradizem essa noção. “Esse tipo de leitura simplista tem a marca ideológica do salazarismo e ignora que os textos de Eça não podem ser lidos como expressão linear de uma vontade com efeitos póstumos. Quem afirma, como parece fazer uma minoria dos herdeiros, que Eça quereria estar sepultado em Tormes (como sabem?) deveria ler ou reler Eça com mais atenção e com menos preconceito.”
A providência cautelar a aguardar resposta
Mesmo perante as objeções de alguns, o processo não sofreu alterações, decisão confirmada pela resposta de Augusto Santos Silva à carta enviada pelos bisnetos dissidentes, na qual reafirmou que a trasladação era mesmo para ir para a frente. Confrontados com este cenário, os descendentes decidiram dar entrada com uma providência cautelar junto do Supremo Tribunal Administrativo (STA), tentando travar pela via judicial a ida de Eça para o Panteão Nacional.
Esta quinta-feira, a instância judicial confirmou ter aceite o pedido de providência – o que levou alguns, incluindo António Fonseca, a afirmar que o tribunal tinha decidido a seu favor, declarando uma “primeira vitória”. No entanto, não é assim. E o próprio tribunal depressa veio clarificar que ainda não deliberou sobre a matéria, esclarecendo que a providência cautelar deu entrada na quarta-feira, estando o processo agora à espera que o Presidente da Assembleia da República se pronuncie, no exercício do contraditório.
Contactado pelo Observador no início deste mês, o advogado e especialista em direito civil Pedro Proença explicou que não é claro que a ação judicial possa impedir a trasladação dos restos mortais a 27 de setembro. Se, por um lado, um órgão de soberania como o Supremo Tribunal serve para “acautelar ou satisfazer interesses carecidos de tutela ou proteção urgente” – o que se enquadra atendendo à proximidade da data – a verdade é que, “tendo em conta a proximidade da trasladação, a utilidade da providência cautelar pode, porém, ficar condicionada à decretação da suspensão da mesma antes de ser dado o contraditório à parte contrária, o que dependerá sempre de decisão judicial”.